CAPÍTULO 21: MEMÓRIAS
Suzana era puro nervosismo no vôo.
-- Amor, ainda acho que eu não deveria ter vindo.
-- Suh para de bobeira, é claro que você tinha que vir.
-- Acho que você deveria primeiro preparar o terreno, conversar, explicar à sua tia sem minha presença.
-- Suh, Tia Silvia está mais do que preparada. Quando elas vieram para o velório do Vô Elias, eu contei sobre nossa volta.
-- Você contou? Nunca me disse isso!
-- Pois é contei, e logo depois eu flagrei você com Pietra...
Suzana fez uma careta demonstrando seu arrependimento.
-- E a reação delas?
-- Digamos que não foi das melhores...
-- Ai Bela! Pare esse avião eu vou descer!
Suzana brincou fazendo menção de se levantar da poltrona.
-- Deixa de ser covarde doutora! Tá com medo é?
-- Não é medo, é só... Tá é medo sim.
Gargalhei enquanto Suzana escondeu o rosto com as mãos.
-- Tia Silvia e Lívia só querem minha felicidade e verão que estou feliz... Portanto, trate de me deixar muito feliz, aí você não terá problemas.
Sorri depois de dar uma piscadela marota.
Ainda em BH percebi o clima não seria dos mais harmoniosos. Nem tia Silvia, nem Lívia vieram nos recepcionar como de costume, ao invés disso um funcionário da fazenda nos aguardava. Disfarcei minha decepção.
-- De certo estão muito atarefadas com os preparativos para as festas.
Ponderou Suzana. Acenei em acordo, e apertei sua mão, mas no fundo eu sabia que mesmo com todos os afazeres Tia Silvia e Lívia não mediriam esforços para manter a tradição de me buscarem no aeroporto, a ausência delas era o prenúncio da hostilidade que minha noiva sofreria.
Meu quarto estava arrumado à minha espera, mas a chácara estava vazia.
-- Sua tia mandou avisar que só chegaria à noite, está na fazenda organizando as coisas da festa. A menina Lívia vem para o almoço.
O jardineiro avisou.
Suzana não estava nem um pouco à vontade, estava mais tensa do que na primeira vez que esteve ali. Tentei minimizar seu desconforto com afagos e sorrisos, mas a minha própria tensão impediu que aquelas carícias fossem amenas o suficiente.
Minha irmã chegou pontualmente quando a mesa do almoço já estava posta.
-- Livinha!
Abracei-a apertado.
-- Desculpa maninha tem tantos detalhes para resolver... Estava vendo a hospedagem dos convidados...
-- Ah tudo bem, relaxa. Aquilo que te pedi deu certo?
-- Ah sim, tudo acertado. Como vai Suzana?
Lívia cumprimentou-a formalmente com um aperto de mão.
-- Bem Lívia e você? Nervosa?
-- Um pouco, mas tudo dentro do esperado. Vamos almoçar? Estou morrendo de fome!
Lívia foi educada, mas nem de longe tratou Suzana com a simpatia que lhe era tão peculiar. A noite reservava a tradicional despedida de solteira, que uma das madrinhas organizou em sua casa.
-- Amor, a gente precisa mesmo ir?
Suzana perguntou enquanto se arrumava em meu quarto.
-- Meu amor é a despedida de solteira de minha irmã, faz parte...
-- Amor você sabe o que vai ter lá hoje não é? Aquele monte de homens saradões seminus dançando com seus músculos cheios de óleo exalando testosterona, e as mulheres ensandecidas beliscando, alisando, se esfregando neles. Amor para mim a visão do inferno!
-- Você se esqueceu de acrescentar as notas de cinqüenta reais nas cuecas fio-dental dos go go boys...
Fizemos cara de nojo juntas.
-- Amor não quero ir!
-- Ah, mas, se fosse uma despedida de solteira lésbica você bem que ia querer ver uma gostosona fazendo stripper pra você não é?
-- Lógico! Você sabe que adoro lingeries rendadas...
Suzana lançou seu sorriso mais cafajeste. Atirei-lhe um travesseiro no rosto.
-- Por falar em despedida de solteira... Eu posso ter a minha não é Bela?
-- É o que Suzana?
-- É amor, despedida de solteira...
Encarei-a com as mãos na cintura, apertei os olhos e respondi:
-- É uma boa idéia... Você terá a sua e eu a minha.
-- Como assim? – Suzana perguntou intrigada.
-- Ué, as duas vão casar não é? Então, também tenho direito a uma.
Observei-a pelo espelho enquanto me maquiava, Suzana balançava a perna, sinal de seu nervosismo e reprovação à minha idéia:
-- Acho melhor fazermos nossa despedida juntas.
-- Assim não tem graça! Ia até te pedir um... Como que a Virginia chama... Ah! Um “vale-night”. E poderia até ser com ela... Sabe como é né? O fogo dessas meninas jovens... Ui!
-- É o que Isabela?
-- É amor, tipo um passe livre pra noite...
Controlava meu riso observando as caras e bocas de Suzana.
-- Eu sabia que uma hora a influência dessa menina ia aparecer! Que mané vale night! Não vai ter despedida de solteira “à vulsa” não! Já fomos solteiras por muito tempo, não precisa despedida dessa fase não!
-- Fale por você minha querida, eu passei pouco tempo solteira, estava sempre comprometida...
-- Isabela Bittencourt!
Suzana me interrompeu.
-- Sem despedida de solteira!
Suzana me deu as costas, e não me viu deixando escapar o riso. Aproximei-me dela por trás e a provoquei:
-- Ow amor, nem o vale night rola?
Suzana voltou-se rapidamente com olhar de reprovação. Não segurei o riso, acabei por contagiá-la e ela se entregou.
-- Seu vale night é comigo, aliás, todas as suas noites serão só minhas você está me entendendo doutora? Sua vida de solteira acabou desde que te escolhi para minha mulher.
-- Não preciso me despedir da vida de solteira meu amor, não tenho saudades dela.
Suzana sorriu e me roubou um beijo delicado.
-- Mas, da despedida de solteira de sua cunhada você não vai escapar!
Antes de sairmos de casa para a festa, encontramos Tia Sílvia chegando a casa.
-- Titia! Pensei que não lhe veria hoje!
-- Olá meu pedacinho de céu... Como está?
Tia Sílvia me cumprimentou com a mesma expressão carinhosa que me dirigia desde criança, mas sem a alegria efusiva típica de nossos reencontros.
-- Tudo pronto na fazenda? – Perguntei.
-- Ainda faltam alguns detalhes, mas, amanhã tudo estará pronto.
Tia Silvia falou nos dando às costas entrando em casa.
-- Tia Silvia?
-- Sim querida?
-- Não viu Suzana? Não vai cumprimentá-la?
Tia Silvia olhou fria para Suzana, uma frieza que me feriu e foi seca:
-- Boa noite Suzana, como vai?
-- Muito bem Silvia e a senhora?
-- Bem obrigada.
Olhei magoada para minha tia. Acompanhei-a até a entrada de casa, segurei-a pelo braço e exortei-a em tom de sussurro:
-- É assim que você vai tratá-la?
-- Isa eu já estou fazendo muito a recebendo em minha casa depois de tudo que ela te fez, não venha exigir de mim cordialidade e simpatia.
-- Tia Silvia se é assim que minha noiva será tratada pela senhora, se julga um sacrifício recebê-la em sua casa, talvez seja melhor procurarmos um hotel.
-- Espera aí, noiva? Como assim Isabela?
-- É tia, estamos noivas, casamos em dois meses.
-- Isabela essa mulher só pode ter te enfeitiçado...
-- Quem sabe tia, não há como não se encantar se enfeitiçar por ela. Mas não é feitiço, é amor, eu esperava que a senhora respeitasse isso.
-- Respeitar? Isabela eu tenho dever de cuidar de você, você é minha menina!
-- Titia! Sou uma mulher, a senhora nunca se meteu na minha vida, por que isso agora?
-- Por que você nunca fez uma besteira dessas!
-- Olha só tia, vou sair da sua casa com Suzana, não quero clima entre nós num dia tão importante para Livinha.
-- Isa! Essa é sua casa! Que absurdo é esse você sair daqui?
-- É a primeira vez que não sinto essa casa como minha não senti isso nem quando meus pais morreram e fomos trazidas para cá...
-- Isa...
Os olhos de tia Silvia cintilaram de lágrimas.
-- Estamos atrasadas para a despedida de solteira de Livinha, quando voltarmos não se preocupe, procuraremos um hotel.
Não encarei Tia Silvia. Dei-lhe as costas e segurei Suzana pela mão levando-a até o carro de Livinha.
-- Está tudo bem meu amor?
Suzana perguntou enquanto eu continha meu pranto. Meneei minha cabeça em desacordo.
-- Amor, não se desentenda com sua tia por minha causa. Isso só vai aumentar a raiva dela de mim.
-- Suh me doeu o jeito que ela te tratou. Não vou permitir que você seja maltratada de novo por minha família.
-- Você não vai poder me proteger da hostilidade de todos meu amor. O que importa é como sou tratada por você.
Suzana beijou minha mão, o seu olhar me transmitiu a fortaleza para enfrentar os possíveis ataques silenciosos que possivelmente sofreríamos em Valença.
Na chegada à festa, já sentimos o quão fatídica seria aquela noite. Na recepção nos entregaram tiaras decoradas com uma réplica de um p*nis de silicone. Contrariada coloquei o acessório enquanto Suzana tentava tirar minha cara emburrada:
-- Amor eu nunca imaginei que algum dia te veria com um p*nis na cabeça...
A festa transcorria como esperávamos. Mulheres bebendo horrores, as brincadeiras obscenas tendo a noiva como protagonista sempre envolvendo p*nis e artefatos de sexy shop não parecia para nós tão divertido como para as demais convidadas, para mim era constrangedor ver minha irmã caçula cercada por aquelas fantasias pornográficas e piadas eróticas. Certamente a Isabela puritana veio á tona no papel de irmã mais velha.
Eu e Suzana nos mantivemos relativamente afastadas do centro das brincadeiras pouco interessantes para nós, especialmente quando os stripers fantasiados de bombeiro, policial, garçom, mais parecidos com o Vilage People entraram em cena. O mundo hetero não sabe o quão gay isso é!
Nossa diversão estava centrada nas bebidas exóticas servidas, depois de algum tempo, já estávamos animadas, e mais desinibidas também, nos permitindo trocar carícias naquele culto heterossexual.
-- Amor... Quero você agora!
Sussurrei ao ouvido de Suzana, que sorriu maliciosamente.
-- Mas Bela, aqui?
-- Aqui e agora!
Puxei-a pela mão e a levei até uma parte mais escura do jardim da mansão de Maysa, madrinha de casamento de Lívia.
-- Acho que colocaram algo nessa bebida...
Suzana disse surpresa constatando minha libido exacerbada. Beijei-lhe faminta, explorando seu corpo com minhas mãos. Encostei Suzana contra a árvore, abri espaço entre suas pernas com minha coxa completamente excitada pelo calor do seu corpo.
-- Bela, adoro você assim... Imagina como eu estou...
A fala cortada, ofegante de Suzana me excitava ainda mais.
-- Não quero imaginar, quero sentir!
Sem cerimônia abri o zíper de sua calça e posicionei minha mão sobre seu sex* deliciosamente encharcado e abri um sorriso voluptuoso.
-- Amor você é muito lésbica... – Suzana comentou ao contemplar minha satisfação.
-- Sou... Adoro isso aqui...
Mexi meus dedos arrancando um gemido rouco de Suzana. Sua expressão de prazer me incentivava a continuar meus movimentos até conseguir o gozo de minha noiva se derramando por minha mão provocando em mim a mesma sensação.
Suzana fechou os olhos se refazendo daquele orgasmo enquanto eu abraçava forte seu corpo, surpreendentemente senti braços me envolvendo por trás e uma voz pouco conhecida:
-- Vocês são tão lindas, sensuais, gostosas... Que tal continuar essa festinha com mais uma convidada?
Afastei-me abruptamente e me espantei com o que meus olhos viam, era a dona da casa, Maysa, símbolo da resistência heterossexual, a madrinha de casamento de minha irmã, nada menos do que a procuradora do município, filha de políticos influentes de Minas Gerais. Suzana arregalou os olhos e eu perdi a fala. Maysa se aproximou de nós com um sorriso nada inocente e continuou:
-- Então? – Passou a língua pelos lábios – Como vocês preferem as coisas?
Suzana tomou as rédeas da situação. Recompôs seu estado ajeitando sua roupa, segurou-me pela mão e respondeu educadamente:
-- Preferimos as coisas a duas e só, desculpe-nos, mas já estávamos de saída.
Saiu me puxando altiva sob olhar indignado da tradicional promotora:
-- Não sabem o que estão perdendo! – Maysa falou alto.
Suzana balançou a cabeça negativamente, enquanto eu permanecia atônita.
-- Bela essa festa não é para nós, vamos embora?
-- Ahan...
Demos uma desculpa qualquer a Lívia, sob o olhar atento de Maysa, que praticamente devorava Suzana com os olhos, e deixamos a festa.
Estava decidida a deixar a casa de tia Sílvia quando acordei. Não despertei Suzana, fui até a cozinha depois de organizar nossas malas, encontrei meu padrinho, Tio César, agora marido de Tia Silvia.
-- Minha criança!
Abraçou-me tenramente.
-- Oi Tio, tudo bem com o senhor?
-- Vendo você aqui, está tudo ótimo! Sua tia comentou algo ontem que me deixou muito triste, mas estou aliviado de te encontrar nessa casa.
-- A Tia então falou que eu vou para um hotel com Suzana?
-- Isa... Não faça isso.
-- Eu vou tio, estou apenas esperando Suzana acordar. Não dá pra tolerar a minha família desprezando minha noiva.
-- Você não acha que está exagerando?
-- O senhor não viu como sua mulher tratou a minha...
-- Isabela, menos... Sente aqui, vamos tomar um café fresquinho.
Tio Cesar demonstrou sua insatisfação com meu tom.
-- Sua tia só se preocupa com você. Apesar de você já ser uma mulher, realizada, decidida, forte, para ela você e Lívia sempre serão as crianças que ela criou como filhas.
-- Mas tio, ela se recusa a aceitar um fato consumado. Amo Suzana e vou me casar com ela. Ou ela aceita isso ou me afastará dela.
-- Minha querida ela vai aceitar, no tempo dela. Até pouco tempo atrás até mesmo para você era inconcebível reatar com Suzana, pelo que sei, ela não foi correta com você no passado.
-- Não foi, mas o que sentimos é forte o suficiente para superar nossas mágoas do passado.
-- Ótimo, deixe que sua tia enxergue isso, mas dê um tempo a ela para que ela também supere a mágoa que ela tem de Suzana.
-- Eu não sei tio César...
-- Se você sair daqui com Suzana, vai perder uma oportunidade de mostrar a sua tia o quanto ela está errada em continuar condenando sua noiva.
Sem que percebêssemos Tia Silvia entrou na cozinha.
-- Não vá Isa, eu prometo me esforçar para ser cordial com aquela mulher... Digo com Suzana.
Consenti. Enquanto esperávamos a mesa do café ser posta, o motorista de minha tia me avisou:
-- Dona Isabela, sua amiga já está acomodada.
-- Obrigada Juvêncio.
O café-da-manhã foi uma demonstração de esforços para aparentar um ambiente harmonioso. Esforço de tio César, de Tia Silvia, meu e de Suzana e apesar de tanto esforço o clima estava parecido com uma reunião de líderes do Oriente Médio de tão tenso que inspirava.
No final da manhã eu e Suzana seguimos para BH a fim de buscar Bernardo, Renato e Olívia, todos convidados para o casamento.
-- Ai Isa eu não acredito que vou ficar sozinha num hotel! – Olivia falou cruzando os braços emburrada.
-- Lili, o quarto de hóspedes lá de casa está lotado com os presentes da noiva, deixei você no quarto vizinho ao quarto do Bernardo. A julgar pela bicha escandalosa que ele é você vai achar que ele está no mesmo quarto.
Brinquei sob protestos de Bernardo.
-- Ai Isa, que consolo! Pensei que ia ficar com vocês poxa... Você sabe que não estou numa fase legal ficar sozinha é um tortura pra mim!
-- Se você quiser a gente te arranjar uma companhia... Recusamos ontem uma promotora...
Suzana falou faceira.
-- Que babado é esse? Vocês foram convidadas para uma ménage? – Bernardo perguntou com tom bisbilhoteiro.
-- Pois é pra você ver que nós duas despertamos desejos libidinosos em outras mulheres... – Suzana respondeu.
-- Ah, só despertam né? – Olivia deixou escapar.
-- Como assim Olivia? Você também tem essas fantasias conosco? – Freei o carro de supetão surpresa com a declaração.
-- Ai Isa! – Olivia exclamou.
-- Responde Li! – retruquei.
-- Não né... – Olivia respondeu sem graça. – Não desconversem, vocês toparam?
-- Pirou? Claro que não! – Respondi exaltada.
-- Ah... Não sabe o que perderam. – Bernardo disse se arrependendo imediatamente ao observar a expressão do marido. – Amor, não me olha assim, eu estava solteiro na época.
-- Quero conhecer essa promotora ousada aí... – Olivia disse.
-- Esqueça! Essa mulher é casada, referência de tradição heterossexual, acho que ela só fez essa proposta por que estava bêbada.
-- Sei... O álcool às vezes é soro da verdade...
Chegamos ao hotel onde nossos amigos ficariam na recepção me certifiquei do número do quarto deles entregando-lhes as chaves.
-- Olivia, nós temos um problema de vagas no hotel. Você se incomoda em dividir o quarto com uma amiga de Lívia?
-- Ai, claro que não Isa, pelo menos me faz companhia.
Suzana e eu nos entreolhamos cúmplices, prendendo o riso. Acompanhamos nossa amiga até a suíte, batemos à porta e adentramos o quarto sendo seguidas por Olivia que pálida arregalou os olhos ao se deparar com a companheira de quarto que preparamos para ela: Virginia.
-- Espero que vocês se entendam bem. Passamos aqui depois para apanhá-las para o jantar no restaurante do tio César.
Disse puxando Suzana pela mão, saindo do quarto. Antes de fechar a porta cochichei ao ouvido de Olivia que permanecia catatônica:
-- Nossa surpresa para você é um presente.
Deixei o hotel com a sensação de dever cumprido, mais que isso, fazendo as pazes com minha consciência por me sentir responsável pelo desentendimento entre minhas amigas e conseqüentemente pela tristeza de ambas.
A noite reservava um jantar das famílias de noivo e noiva no restaurante do tio César, fechado para a ocasião. O desconforto de minha noiva era evidente, impossível não se lembrar da sua primeira visita à Valença e seu primeiro contato com minha família. O clima ficou ainda mais tenso quando meu primo Artur se aproximou de nós com seu jeito asqueroso de sempre.
-- Ora se não é minha priminha preferida, acompanhada de... Espere, deixe-me lembrar o nome, não é a doutora do Nobel por que ela está no fundo oceano... Ah, então é a outra doutora biscatinha que quase matou a vovó de desgosto!
-- Artur não ouse citar o nome de Camila, se aproximar de mim ou de Suzana, não ouse sequer me cumprimentar porque eu não tenho o menor pudor em te deixar humilhado de novo na frente de todos.
-- Vejo que irritei minha priminha...
-- Artur, eu não vou repetir, fique longe! Se você incomodar Suzana ou a mim, se prepare para as conseqüências.
Artur conseguiu se tornar ao longo dos anos um ser ainda mais desprezível que na juventude. Casou-se com a filha do prefeito da cidade, e os comentários acerca da fidelidade de sua esposa não inspiravam a boa conduta desta. O tempo não foi nada generoso com ele, a genética da calvície acometeu-o precocemente, e seu corpo antes tão cultuado por ele mesmo agora constituía o estereótipo de homem descuidado e barrigudo. Entretanto, se tornara influente na cidade, não só pelo casamento de conveniência, mas também por ter se tornado delegado de Valença.
-- Você acha mesmo que está na condição de me ameaçar Isabela?
Colocou a mão na cintura, exibindo sua arma sob o paletó. Suzana apertou minha mão e cochichou:
-- Não vale à pena o desgaste Bela.
Apesar de não temer a demonstração de valentia do meu primo, minha noiva tinha razão, o jantar ainda nem havia começado, instalar animosidade em um clima festivo não valia à pena. Aproveitei a chegada de Olivia, Virginia, Bernardo e Renato para me afastar de Artur e me acalmar do mal que a presença asquerosa do meu primo me causava.
-- Ai que bom que vocês chegaram! Desculpa não ter ido pegar vocês, saímos atrasadas. – Disse abraçando-os.
-- Ah sossega Isa, está tudo bem. – Renato falou.
-- Vamos para nossa mesa. Aceitam beber alguma coisa?
-- Água gelada para essas duas, por favor!
Bernardo disse apontando para Virginia e Olivia. Imediatamente os olhares na mesa se voltaram para o casal. Virginia ruborizou, Olivia fez cara de paisagem enquanto Bernardo continuou o relato:
-- Perdi meu posto de bicha escandalosa pra essas duas rachas aí viu. Estou com medo de sermos expulsos daquele hotelzinho familiar. Ai Olivia você gozou quantas vezes mona? Ai viada chata!
As gargalhadas tomaram de conta da mesa com o jeito afetado de Bernardo.
-- Sabe que eu odeio isso nas sapas? – Bernardo simulou indignação.
-- O que Bê? – Perguntei.
-- Essa disposição sem fim! Vocês deviam simplesmente goz*r ao mesmo tempo, mas não né, tem que ter o troca-troca, e ainda assim, vocês não cansam nunca?
-- Ah Bernardo não me decepcione! Viados cansam?
-- Amor você está acabando nossa reputação. – Renato brincou.
Foi inevitável não olhar para Virginia e Olivia com sorrisos radiantes.
-- Então Lili, gostou do meu presente?
-- Isa você... É a melhor amiga do mundo!
-- Você aprontou tudo à surdina não é danada? – Olivia perguntou.
-- Se eu dissesse que Virginia estaria aqui, corria o risco de você inventar uma desculpa e não vir, e eu sabia que bastava vocês se encontrarem para se entender. Pedi a Lívia que reservasse o quarto para vocês duas, e Virginia chegou antes para não ter o risco de cruzar com vocês no aeroporto.
-- Minha noiva é um excelente cupido não é Li?
-- Ainda bem que ela assumiu essa função, porque o meu cupido fuma baseado todo dia!
Olivia sorriu, apertando minha mão carinhosamente demonstrando sua gratidão. Virginia piscou o olho para mim, confirmando seu sentimento.
-- Já fiz minha boa ação do dia, agora vamos beber a isso!
O bom astral de meus amigos salvou a noite que começara tão mal. Fui convidada a fazer o discurso para o brinde aos noivos, e confesso minha emoção ao desejar à minha irmã caçula a felicidade no seu casamento:
-- Há mais de vinte anos sem que ninguém me pedisse ou me desse essa missão eu abracei a responsabilidade de cuidar de uma menina linda de olhos verdes com cachos dourados, de longe a criança mais parecida com um anjo que já vi. Eu não era mais do que uma criança também, mas por essa menina eu aprendi a ser uma pessoa melhor, alguém que ela pudesse contar pra sempre, correr pro meu colo quando uma farpa ferisse seus dedinhos ou pra me contar ansiosa que seu primeiro namoradinho segurara sua mão. Por essa menininha, eu amadureci e ambicionei ser para ela referência. A minha surpresa foi que ela não precisava de colo, nem de referências. Ela se tornou uma pessoa melhor do que eu, mais segura, mais bonita, mais inteligente, mais carinhosa, mais generosa e tenho certeza que será infinitamente mais feliz por mérito próprio. Livinha tem luz própria, e quem convive com ela é agraciado por ser iluminado por ela. Portanto, Luiz, você é um agraciado, amanhã você não estará só sacramentando uma união, estará assinando contrato com sua felicidade, por que é essa a essência de sua futura esposa. Trate de não macular essa essência, posso não ser promotora, nem policial, mas sei providenciar sua punição! Livinha, te amo maninha! Sejam muito felizes!
Todos riram e se emocionaram com minhas palavras, especialmente a noiva e tia Silvia. Suzana cochichou quando sentei entregando-me um guardanapo para enxugar minhas lágrimas:
- Duvido que alguém seja mais feliz do que você quando casarmos meu amor, vou te fazer a mulher mais feliz do mundo!
Eu não duvidava que Suzana fosse capaz disso. Mas, algo no meu interior me dizia que minha felicidade com Suzana sofria ameaças.
No dia seguinte, chegamos cedo à fazenda. Tia Silvia e Lívia estavam lá desde a noite anterior. Descemos do carro e senti a mão de Suzana gelar.
-- Está tudo bem meu amor?
-- Essa fazenda... As lembranças que tenho dela...
-- Eu sei meu amor, memórias ruins não é?
-- Memórias ruins e boas também amor. Aqui fui humilhada, execrada por sua avó, seu primo nojento te assediando nos ofendendo... Mas, também foi aqui que te vi me defendendo publicamente, assumindo nossa relação diante de sua família, e principalmente, foi a primeira vez que você disse que me amava.
Sorri acenando em acordo.
-- Tive tanto orgulho de você, da sua garra, da sua segurança em cada palavra que você dirigia à sua avó...
-- Seu amor me deu essa força Suh.
-- Você é a pessoa mais forte que conheço Bela. Quando te ouvi falando da Lívia ontem tive a mais completa certeza da mãe incrível que você será.
-- Não se chateie com o que vou comentar, mas, Camila dizia o mesmo, e eu não sei onde vocês enxergam esse instinto maternal em mim, por que eu particularmente desconheço.
-- Bom, então é algo que eu e Camila concordamos. Ela sabia das coisas, mente privilegiada, ganhou um Nobel! Você não ousa discordar dela não é?
-- Ai eu não acredito que estou ouvindo isso.
Desabafei revirando os olhos.
- Não pude deixar de escutar, e desculpa Isa, mas também concordo com Suzana. Você tem esse instinto materno de proteção mesmo, até eu mesma me senti protegida por esse seu jeitinho de cuidar das pessoas...
Virginia disse inocentemente.
-- Ah não Virginia! Vai me dizer agora que o que você sentia por mim era carência materna?
Perguntei indignada despertando o riso de todos.
-- Sabe como é né Isa? Longe de casa, tanta atenção e cuidado que você me dava...
-- Vá-te catar pirralha!
Entrei no quarto onde Lívia se aprontava, e tive que me segurar pra não cair no choro, tamanha foi minha emoção. Desconfiei que meu tal instinto materno existisse mesmo ao olhar minha irmã caçula vestida de noiva.
-- Maninha você está linda!
Segurei as mãos geladas de Lívia com os olhos marejados.
-- Ai Isa não vai chorar! Já expulsei tia Silvia daqui depois que tive que refazer minha maquiagem!
-- Pode deixar! – Franzi a testa fingindo fortaleza. – Então, muito nervosa?
-- Uma pilha mana. Cheia de medos, até medo que chova e a decoração se perca.
-- O dia está lindo! Cenário perfeito para você dar mais um passo para sua felicidade.
-- Isa, eu estou sem graça de pedir isso, mas, não quero que nada estrague ou abale minha festa... Eu sei que Artur vai provocar vocês, mana, fique longe dele, evite situações, eu sei perfeitamente que você não agüenta nada calada...
-- Ei! Fique tranqüila, não se preocupe com isso. Não temos a menor intenção de chegar perto daquele nojento.
Os convidados já lotavam o campo lateral da fazenda transformado em altar quando Lívia adentrou pelo tapete vermelho, conduzida por Tio César até Luis, sob olhares encantados com sua beleza, e sob as minhas lágrimas e de tia Silvia que compartilhávamos lenços de papel providenciados por Suzana.
A cerimônia foi linda. Noivos e família emocionados e voltados para desejar toda felicidade para o casal. Do altar eu olhava para Suzana que me observava com seus olhos que radiavam o amor que tanto me fazia feliz.
A sociedade mineira estava em peso. Inclusive da capital. A família de Luiz era de importantes juristas do cenário nacional, assim, personalidades de destaque no meio político também compunham a lista de convidados.
Depois das tradicionais e intermináveis fotos, acomodei-me na mesa onde Suzana e meus amigos conversavam animados, pelo que eu conhecia de Bernardo e Olivia, certamente estariam enumerando os trajes e maquiagens bizarros das dondocas plastificadas da festa.
-- Gente, aquela dali exagerou no botox, prestem atenção nos olhos dela, estou observando há cinco minutos, eu juro que ela não piscou! – Olivia apontou com os olhos.
-- Vou dizer uma coisa gente... Daqui a umas duas horas, vocês ouvirão “creco-creco”, não se assustem, não é a cadeira quebrando, é a maquiagem das peruas rachando! Elas não usam base, usam concreto pra tapar os buracos e pés-de-galinha da cara de maracujá velho delas! – Bernardo comentou depois de dar um gole no proseco.
-- Vocês são horrorosos! – Surpreendi-os sentando à mesa.
-- Ai Isa! Que susto! – Bernardo falou segurando o peito com a mão.
-- Amor, meu avô quer te ver, vamos falar com ele? – Convidei Suzana.
Meu avô apesar da idade avançada mantinha seu requinte no tratamento com todos, o pulso firme de fazendeiro tradicional fora abalado pela velhice, mas não apagada.
-- Como vai seu Antenor?- Cumprimentou Suzana.
-- Olá doutora, como vai minha querida?
-- Muito bem senhor. Estou vendo que o senhor também está muito bem!
-- Ah minha filha, estou sobrevivendo como o tempo me permite. Pedi para Isabela te trazer aqui por que eu precisava te falar uma coisa.
-- Pois não senhor Antenor.
-- Nunca tive oportunidade de me desculpar à altura da ofensa que você sofreu aqui em minha casa. Já fazem anos, mas eu nunca me esqueci aquele desagradável episódio, imagino que nem você.
-- Pra falar a verdade senhor Antenor, eu tenho memórias que compensam o episódio desagradável como o senhor descreveu.
-- É bom isso, prova que você não é rancorosa, isso vai te render mais alguns anos de vida.
-- Tomara vovô, não quero ficar viúva outra vez antes dos cem anos. – Disse olhando para Suzana.
-- Era isso minha querida, cuide bem de minha neta, e lembre-se: se alguém te ofender com a mínima ofensa que seja, será punido pessoalmente por mim!
Meu avô apertou os ombros de Suzana. Minha noiva beijou o rosto de meu avô tenramente. Tudo parecia caminhar para a perfeita harmonia. Minha família se esforçou para tratar bem minha noiva sob pena de atrair a ira do patriarca da família.
A tarde avançou depois do almoço servido. As festas na fazenda tinham a fama de não ter hora pra acabar. E como era de se esperar, quanto mais se prolongava a festança, mais aumentava a porcentagem de pessoas entregues aos efeitos do álcool, entre elas, Maysa, a madrinha de casamento de Lívia, e Artur, meu primo indesejado. Por esse fato, ir ao banheiro se tornou uma atividade perigosa na prevenção de escândalos, mas com a demora da festa foi inevitável.
Minha ida ao banheiro interior da casa resultou em uma grande surpresa. Ao perceber um barulho vindo de um dos quartos do andar superior adentrei e dei de cara com Maysa e Heloísa, mulher de Artur, em um amasso ferrenho, daqueles que era difícil distinguir quem era quem. Maysa encostava Heloísa contra a parede com sua mão por baixo do vestido da mulher de meu primo que gemia com aparência de puro prazer.
-- Ops... Desculpem...
Disse completamente constrangida quando notaram minha presença.
-- Isabela! – Heloísa exclamou empurrando Maysa.
-- Estou de saída, não se preocupem...
-- Isabela você não vai comentar nada...
-- Não se preocupe Heloísa...
-- Não quer se juntar a nós Isabela?
A expressão de Maysa era pura malícia.
-- Com licença.
Disse me retirando do quarto praticamente fugida. Não demorou para as duas voltarem à festa com a culpa estampada no rosto de Heloísa. Maysa provavelmente por estar muito bêbada disfarçava muito bem seu ato furtivo.
-- Amor aconteceu alguma coisa? – Suzana perguntou.
-- Nem te conto amor... Maysa atacou novamente, flagrei-a com a mulher de Artur. – Desabafei cochichando.
-- Bem que eu desconfiei que aquele filho da mãe não fosse capaz de satisfazer uma mulher.
Suzana disse destilando veneno me arrancando risos. Observei nesse momento Heloísa nos observar de longe, com olhar apavorado. Senti um calafrio quando notei Heloísa conversar com Artur que reagiu como um louco levantando-se da mesa e caminhou em direção a nós.
Antevi o escândalo quando o cantor da banda anunciou no microfone:
-- Atenção pessoal os noivos estão partindo para a lua-de-mel, uma salva de palmas para o casal!
Apressei-me em ir ao encontro do casal para me despedir deles, no alvoroço que se instalou perdi Artur de vista, mas esse privilégio não durou muito tempo, senti uma mão pesada segurando meu braço quando eu caminhava de volta para minha mesa.
Artur me arrastou com violência para os fundos da casa, e disse com ódio nos olhos:
-- Sapatão safada! Vai aprender uma lição agora pra aprender a não passar a mão na mulher dos outros!
Partiu em minha direção furioso com a mão erguida, deferindo um tapa em minha face tão violento que me desequilibrou, caí espatifada na grama assustada com o ódio que meu primo me dirigia.
-- Você está louco Artur? Que absurdo é esse que você está falando seu verme?!
-- Cala essa boca suja! Minha mulher me conta tudo! Acha que não me falaria de seu assédio?!
-- Meu o quê?!
Artur não respondeu me levantou com brutalidade, empurrei-o com toda minha força, o que não adiantou muito, ele me continha com uma força visceral, eu me debatia para me desvencilhar de suas mãos, completamente aturdida. Estapeou meu rosto outra vez gritando insultos:
-- Vadia! Não me faça de idiota!
-- Fazer você de que? Você é um idiota sem precisar de auxílio pra isso!
Limpei o sangue que escorria do canto da minha boca, e quando Artur ousou me tocar mais uma vez, eu estava preparada me desviando de sua mão, me apoiei nos próprios ombros dele e dei-lhe uma joelhada nos genitais do enfurecido marido enganado. A pausa dada por ele por incapacitação foi o suficiente para que eu fugisse dali para o interior da casa de meu avô. Fui seguida por ele que se mostrava fora do seu juízo.
-- Você acha que pode fugir assim de mim? É hora de retribuir a humilhação pública que você promoveu contra mim!
Surpreendeu-me segurando meus cabelos, arrastou-me para fora da casa novamente. A lateral da casa dava acesso às tendas que abrigavam as sobremesas. As pessoas obviamente se assustaram com a cena, a essa altura, minha valentia se transformara em um constrangimento doído por descumprir o que minha irmã me pedira, meu rosto estava banhado em lágrimas quando Artur me lançou brutalmente na mesa lotada de guloseimas. Antes que me alcançasse para dar início ao que provavelmente seria uma surra, Bernardo abordou-o com uma gravata conseguindo contê-lo.
-- Acha bom bater em mulher seu doente?
Bernardo devido à sua vaidade tinha seus músculos fortes, prendeu meu primo com força a tempo de Suzana chegar me socorrendo em meio aos doces espatifados no chão.
-- Qual é seu problema seu verme asqueroso?! – Suzana berrava revoltada.
-- Essa sua namoradinha aí, estava assediando minha mulher! – Artur se debatia.
-- Faça-me o favor seu doente! Só sendo mesmo muito burro pra acreditar nisso, corno cego! Não me admira sua mulher procurar em outras, satisfação, por que você é incapaz de dar prazer a alguém! - Ora sua... – O ódio de Artur aumentou, se desvencilhou dos braços de Bernardo.
-- O que? Vai me bater também? É assim que você resolve seus assuntos com mulher? Merece os chifres que tem!
Suzana entrou no clima de escândalo, discutindo à altura de Artur, mesmo com meus insistentes pedidos para que ela se controlasse. Mas, meu primo conseguiu superar o baixo nível já confirmado.
-- Essas lésbicas tem muita inveja disso aqui. – Apontando para seus genitais.
-- Você está se vangloriando de que? Deve ter o pinto pequeno no mínimo! Ou não funcional!
Artur se enfureceu ainda mais, sacou sua arma da cintura apontando para nós. Suzana ficou à minha frente num gesto de proteção. A essa altura, as pessoas já cercavam a tenda. Artur se aproximou com a arma em punho, com os olhos cintilando ódio. Mas, Suzana se manteve fria, não demonstrando intimidação diante da pistola.
-- Perdeu a língua sapatona nojenta? Não tem culhões pra me enfrentar agora não é?
-- Não tenho isso, e não preciso disso pra ter coragem de enfrentar um covarde como você. Vai atirar?
A bravia de Suzana cutucou ainda mais os brios de Artur, destravou a arma lentamente, quando ouvimos o grito de Heloísa:
-- Artur chega!
A mulher de meu primo se aproximou e deixou escapar entre os dentes quase trincados:
-- Deixe-as em paz, eu menti, Isabela me viu com alguém, eu só não queria que você acreditasse no que ela podia lhe dizer.
O efeito da revelação foi inesperado. Artur revoltou-se ainda mais, provavelmente pelo riso que Suzana não escondeu. Engatilhou a arma, apontada para minha noiva, quando Heloísa o puxou:
-- Largue essa arma!
Com a distração, Suzana se aproveitou para tentar desarmá-lo e nesse momento os dois se engalfinharam com a arma entre eles, me desesperei com ao ver a cena, gritos tomaram de conta do ambiente. O meu desespero se transformou em catatonia quando o estampido seco inundou o local: a arma disparou entre Suzana e Artur.
Silêncio.
O alvoroço de vozes, a chegada de tia Silvia e tio César, e de outras pessoas da família até poderia passar despercebido não fosse a mãe de Artur aos berros:
-- Ela matou meu filho!
Uma fração de tempo de pura angústia, desespero imaginar por um milésimo de segundo que o corpo de minha namorada fora o destino daquela bala. Os olhos de Suzana e Artur arregalados, assustados obviamente pelo disparo acidental antecederam um sonoro:
-- Aiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii.
Artur berrou como uma criança pulando num pé só.
-- Sapatão desgraçada, atirou no meu pé!
Suzana continuava com a arma em punho, apontada para o chão. Estava em choque, assim como eu. Um misto de alívio por não vê-la ferida, e apreensão sobre como repercutiria tal fato diante da minha família. Depois do choque, Suzana teve uma reação inusitada: uma crise de risos incontrolável com o bico de choro de Artur que correu para os braços da mãe.
-- Ela tentou me matar mãezinha, todos estão de prova.
-- Isabela essa mulher de novo causando confusão na nossa família?!
-- Alto lá Salete, seu filho é que protagoniza vexames há muito tempo, agora armado se tornou um perigo à segurança pública. – Defendi.
-- Eu vou processá-la por tentativa de homicídio! – Salete berrava – Alguém chame uma ambulância!
Suzana parecia alheia às ameaças e insultos rindo incontrolavelmente do choro infantil de Artur no colo da mãe. Olivia e Bernardo se ofereceram para examiná-lo até o atendimento hospitalar.
-- Suh pelo amor de Deus para de rir...
Pedi trincando os dentes segurando o braço de Suzana. Levaram meu primo para o interior da casa, tio César tratou de dissipar os olhares curiosos dando ordem para que a banda tocasse, dispersando as pessoas, autorizando a coordenação do buffett limpar a bagunça que foi gerada.
Vovô já no interior da sua casa parecia nos esperar, pediu que eu subisse até um dos quartos. Suzana finalmente mais calma pediu material de curativos para os empregados e me seguiu.
-- Artur entrou gritando que vai processar vocês, o que aconteceu de fato? – Vô Antenor perguntou sério.
-- Vô... Artur é um louco, me acusou de assediar a mulher dele, e me agrediu fisicamente por isso, ele só queria uma desculpa para se vingar de nós por causa da festas das bodas de ouro do senhor e da vovó.
-- Terei que tomar providências drásticas com esse rapaz. Não se preocupem, não haverá processo nenhum.
-- Eu é que tenho que processá-lo por calúnia e difamação, ele e a mulher dele! Auu Suzana!
Reclamei enquanto Suzana apertava as gazes no canto da minha boca me advertindo a não revelar toda a verdade. Bernardo entrou no quarto dando notícias:
-- O tiro não atingiu nenhum osso aparentemente. O sangramento está contido, mas é necessário fazer um raio X, administrar antibiótico, enfim... Minha vontade era de apertar o pé dele enquanto aquele covarde gritava que nem um bebê chorão, xingando vocês, ai Isa que família que você tem!
Franzi a testa e Bernardo percebeu a gafe quando olhou para meu avô:
-- Ai seu Antenor, me referi ao Artur...
-- Tudo bem rapaz, eu entendi.
Suzana conteve o riso com a expressão de arrependimento do Bernardo enquanto meu avô deixava o quarto. Heloísa bateu à porta e adentrou depois de autorizada:
-- Isabela, eu gostaria de falar com você um minuto.
-- Pois não Heloísa.
-- Eu lhe devo desculpas, mais do que isso, peço que você me perdoe. Menti ao meu marido para me defender, temendo que você espalhasse o que viu. Nunca imaginei que a reação dele seria aquela.
-- Essa confusão poderia ter acabado em tragédia Heloísa, seu marido é um covarde violento. Minha chateação só não é maior, porque felizmente Lívia deixou a festa antes desse escândalo.
-- Eu entendo e me sinto muito mal por isso. Mas, Artur nunca foi violento comigo, não esperava que ele se comportasse dessa forma.
-- Além de me espancar, de ameaçar a mim e a minha noiva, ainda se julga no direito de nos processar.
-- Eu me comprometo a fazê-lo desistir dessa idéia. É um absurdo, até mesmo porque o ferimento não é grave.
Percebemos a movimentação no corredor, junto com a voz alta de Salete:
-- Filhinho não se preocupe, a mamãe vai com você!
-- Onde está Heloísa?
Era a voz de Artur perguntando por sua mulher. Heloísa saiu abrindo a porta deixando-a aberta o suficiente para Artur e Salete nos ver.
-- Preparem-se vou colocar as duas na cadeia suas cadelas! – Artur destilava seu ódio apoiado por sua mãe.
-- Não vai fazer nada Artur! Vai sair dessa casa, calado e nunca mais vai incomodar nem Isabela nem Suzana! – Vô Antenor bradou.
-- Mas, vovô o senhor não viu o que essas vagabundas fizeram comigo?
-- Meça suas palavras para falar de minhas netas! O que eu vejo é um borra-botas que não se envergonha de bater em mulher nem muito menos de ser traiçoeiro com uma arma de fogo!
-- Suas netas?! Eu sou seu neto mais velho vovô!
-- Até você se desculpar publicamente de Isabela e Suzana não é mais meu neto e não é benvindo nessa casa.
-- Que absurdo senhor Antenor! Artur é seu neto de sangue...
-- Cale a boca Salete, essa minha casa e minhas vontades terão que ser respeitadas aqui até a minha morte!
Os dois saíram enfurecidos em direção à ambulância estacionada nos fundos da casa. Meu tio, o pai de Artur estava no exterior a trabalho, sua presença certamente atenuaria a situação, entretanto, o desfecho não poderia ser mais desagradável. Suzana, profundamente emocionada pela defesa de meu avô se aproximou dele, apertando forte suas mãos.
-- Muito obrigada senhor Antenor.
-- Estou remediando, compensando você pelo que não fiz anos atrás. Agora vá cuidar de minha neta.
Vovô voltou para festa como bom anfitrião para se despedir dos convidados que aos poucos deixavam a festa. Tia Silvia depois de colocar panos quentes no escândalo chegou ao quarto preocupada com o ocorrido. Enquanto narrávamos o que se passara, Maysa pediu licença para entrar e anunciou:
-- Isabela, eu vim te assegurar que Artur não processará vocês.
-- Assegurar?
-- Esqueceu que sou procuradora do município? Tenho minha influência, além de saber muitos podres do nosso caro delegado, se ele insistir nesse despautério usarei de minha posição para colocar Artur no seu lugar.
-- Sendo assim, muito obrigada doutora Maysa.
-- Não me agradeça, considere uma troca de gentilezas em prol da discrição.
Percebi o teor do acordo nas entrelinhas. Tia Silvia obviamente ficou curiosa sobre o porquê de tanta solicitude da procuradora.
-- Isso também é por obrigação de madrinha? – perguntou Tia Silvia.
-- Deve ser por consideração a Livinha tia. – Ponderei.
-- Sei... Vocês duas não podem passar despercebidas pela cidade? Tem que ser estrelas de uma confusão?
-- Pois é tia Silvia, no fundo essas duas são barraqueiras! Adoram descer do salto e rolar no morro! – Bernardo brincou.
-- Eu não criei minha sobrinha pra protagonizar essas cenas Bernardo. Francamente Isabela...
-- Tia pelo amor de Deus! Não tivemos culpa! Você viu que até o vovô ficou do nosso lado. O Artur enlouqueceu.
Minha tia não parecia convencida, seu olhar de censura especialmente para Suzana me desconcertou, especialmente por saber que ela ouvira a discussão entre ela e Artur e pior ainda sua crise de risos depois do disparo.
-- Mas, quer saber? O Artur bem que merecia um tiro no pé!
Pausa para assimilar a frase de tia Silvia nos entreolhamos e nos surpreendemos com o ar de riso no rosto dela. Parecia enfim que entre mortos e um pé ferido tudo estava bem.
Fim do capítulo
Comentar este capítulo:
Deixe seu comentário sobre a capitulo usando seu Facebook:
[Faça o login para poder comentar]