CAPÍTULO 4: MINHA CULPA, MINHA TÃO GRANDE CULPA
Desliguei meu celular e me recolhi-me em minha culpa durante todo o dia. Remexi nas fotos de Camila, nossos vídeos, promovendo a catarse da minha punição. Maculei o corpo que se entregou por amor a mulher mais incrível do mundo, e as lembranças desse amor me faziam sentir impura pelo meu comportamento na noite anterior.
O luto estava de volta à minha vida, acrescido da culpa arrasadora que me classificava como a mais desleal das mulheres. Imbuída desses sentimentos densos, cheguei à capela as 17horas, pontualmente. Ainda me pergunto se no meu coração eu pedia perdão a Deus ou a Camila. Evitei encarar Márcia e o Vô Elias como se meus olhos denunciassem o estado de minha alma.
Saímos da capela em direção ao cemitério, no túmulo de Camila e lá prometi ao meu eterno amor que não a desonraria mais daquela forma, meu pedido de perdão sincero, teve o poder sobrenatural que só podia vir de Camila, seja de qual fosse a dimensão que ela se encontrava. Não se tratou de uma remissão, mas de uma oferta de compaixão, compreensão que sempre tive de minha mulher.
O final de semana acabou e meu retiro também. Bernardo foi a primeira cara que vi ainda no estacionamento e sua expressão não foi nada amigável.
-- Você pode me explicar que palhaçada é essa de desligar os telefones e não atender a porta dona Isabela?
-- Desculpa Bernardo, eu precisava ficar sozinha...
-- Precisava o que? Isabela ficar sozinha é tudo que você tem feito há mais de um ano!
-- Bernardo... Preciso trabalhar, conversamos depois.
-- Você me deve explicações, espero você na cantina no almoço.
Eu sabia que não poderia escapar por muito tempo do interrogatório de meu amigo, de certa forma me preparei a manhã toda para ouvir o que Bernardo me diria, mas estava segura sobre o meu momento de reclusão, retroceder no que dizia respeito a novos relacionamentos. E no horário de almoço, Bernardo já me esperava na mesa cativa:
-- Agora doutora, o que aconteceu no Colors?
-- Baixou uma sapata biscate em mim, que dá na primeira noite pra uma loira espetacular e sai fugida no dia seguinte com consciência pesada...
-- Han? Como assim mona?
-- Ai Bernardo, comportei-me como uma... Sei lá o que... Alguém que não parece nada comigo, dei a impressão errada sobre mim a Clara, estou com vergonha de mim mesma...
Dei detalhes da minha noite com Clara, sobre minha crise de culpa, sobre o aniversário de Camila... Bernardo não manifestou reação diante do meu relato, conteve-se em apenas me ouvir, ao final demonstrou um momento raro de sensatez e ponderação de sua personalidade efusiva, talvez reflexo da convivência com Renato:
-- Isa não se martirize tanto. Realmente acho que nos precipitamos, eu e o Renato em forçar uma situação e você embarcou nessa, e vejo que só se machucou e pior, pode ter comprometido uma possível relação com uma pessoa que realmente pode te fazer muito bem, mas é um processo difícil esse de superação, a gente comete erros, se atrapalha mesmo na busca de nossa felicidade... O importante é tirar lições disso...
-- Bernardo? Você está aí ainda? Quem é esse homem centrado que está falando comigo? – Brinquei.
-- Ai não tem como ninguém me levar a sério né? Quando eu tento ser comedido cutucam a Lady Gaga que vive em mim...
-- Desculpa amigo... Você não imagina como é bom ouvir coisas desse tipo de você, mostra o quanto você está bem, equilibrado, fico feliz por que isso evidencia o quanto Renato te faz feliz, te fez crescer. Isso me lembra o que Cami fez comigo e o quanto distorci meu momento com Clara...
-- Isa, sempre desejei ter na minha vida o que você tinha com Camila, vocês me fizeram acreditar que era possível um amor pleno. Eu sei que Camila sempre será a referência de amor na sua vida, mas não deixa que um passo errado impeça sua caminhada. Ainda tem que haver espaço pra o amor na sua vida.
A nova versão de Bernardo foi uma boa surpresa no meio do momento de expurgação que eu experimentava, mas ainda me mantive firme na decisão de me resguardar da vida social, assim, aproveitei o feriadão para sair de Campinas e visitar minha tia e minha irmã em Valença. Antes de embarcar, uma semana depois do meu encontro com Clara, uma ligação de um número desconhecido me surpreendeu:
-- Isabela?
-- Pois não?
-- Oi, é Clara, você pode falar agora?
-- Ah... Oi Clara, posso falar alguns minutos sim.
-- O Renato me deu seu telefone, não tive tempo de pedir a você, já que...
-- Eu sumi do seu loft sem explicações não é...
-- Pois é... Aconteceu alguma coisa? Eu fiz ou disse alguma coisa errada?
-- Oh não... Você não fez nada de errado Clara, por favor, desculpe-me. O problema foi comigo mesma.
-- Eu pensei que... Você me procuraria...
-- Clara, eu sinceramente peço desculpas, mas, não agi corretamente naquela noite, fui precipitada...
-- Não me diga que você se arrependeu...
-- O arrependimento não é por sua causa Clara... Só acho que eu não estava pronta... Não fui coerente com meus sentimentos, com meus valores, acho que poderia ter dito isso pessoalmente a você, mas estou viajando daqui a pouco para ver minha família em Minas, quem sabe conversemos outra hora e posso te explicar melhor o que aconteceu, acho que te devo isso.
-- Você não me deve nada Isabela, acho que o equívoco foi de nós duas... Quem sabe conversemos outro dia. Boa viagem, beijo.
O tom chateado de Clara fez minha consciência pesar. Embarquei pensando nela, na sua beleza, no seu perfume, no seu toque, sorriso, mas principalmente na sua voz magoada. Cheguei à Belo Horizonte a noite, Lívia e seu noivo já me esperavam.
Douglas fez de tudo para me agradar, chegava a ser cômica sua dedicação, Lívia se divertia com o esforço do noivo que me paparicava sem limites. Tia Sílvia e o padrinho me cobriram de carinho, como se eu fosse a mesma menina que saiu de Valença há mais de dez anos. Meu avô em nada lembrava aquele homem forte que percorria a cavalo sua fazenda, depois da morte da vovó seu ânimo não era o mesmo, o que afetou inclusive sua saúde. Os dias em Valença pacificaram minha alma, me devolveram o eixo em meio aquela auto-punição que me impus. Lembrei algumas vezes das palavras de Clara, da nossa noite, e por mais que me censurasse pelo meu comportamento, não podia negar a memória do meu corpo, o quanto tal momento satisfez meu desejo.
No domingo, na fazenda, nostálgico, Vovô me mostrava as fotos da festa das suas bodas de ouro, saudoso da alegria da família, mas não esqueceu de comentar a reação de vovó com a presença da minha primeira namorada: Suzana.
Relembrar esse fato despertou em mim várias lembranças que se misturaram com sentimentos confusos em relação ao meu luto e a Clara, talvez por isso, naquela noite sonhei com Suzana, experimentei uma saudade estranha, como se o pensamento nela a atraísse para mim, e tal sensação me despertou medo, ansiedade, mas o cuidado de minha família, e o carinho deles, dissipou minha angústia, afastando da minha mente os meus polêmicos sentimentos.
Voltei para Campinas renovada, entretanto meus dias continuaram a se concentrar no apenas no trabalho. Bernardo pareceu entender meu momento, e me chamava para programas mais amenos, evitando me levar ao Colors.
Procurava me inteirar das atividades do grupo de pesquisa no hospital, mas definitivamente os residentes do grupo não me agradavam, não se dedicavam como o esperado, consegui intervir e abrir a seleção para quatro novas vagas para o grupo de pesquisa instituindo o intercâmbio com a residência de neurocirurgia e neurologia da UFRJ, o mesmo intercâmbio que eu fiz quando mudei para Campinas.
Os dias se passaram, quase um mês e até então não tive notícias de Clara. Algumas vezes pensei em ligar para ela, mas algo mais forte me impedia. Passei a visitar o vô Elias mais de uma vez por semana, notando que seus últimos dias se aproximavam. Na minha rotina não havia espaço para nada mais que não fosse o trabalho, aproveitava o tempo disponível para formatar trechos da minha tese de doutorado em artigos, e foi um período bastante produtivo.
Seguindo minha maratona diária ambulatorial e de pesquisa, certo dia perdi a hora no consultório do hospital, o que acabou me expondo a uma torrencial chuva, típica de final de ano em São Paulo. Conhecendo o comportamento do meu organismo a esse tipo de mudança de clima, tratei de me apressar para chegar a casa, afim de não precipitar uma crise de asma. No entanto, as ruas estavam completamente intransitáveis, em determinado ponto do centro de Campinas, entrei em pânico a me ver cercada de água em níveis perigosos, e meu carro praticamente sendo arrastado pela correnteza.
Liguei para Bernardo, pedindo ajuda, meu amigo apavorado avisou que estava a caminho, mas o meu pânico só aumentava enquanto o aguardava. Achei mais seguro deixar o carro quando notei-o se movendo, algumas pessoas me ajudaram a sair, refugiei-me em baixo de uma marquise, com frio, com as roupas encharcadas, olhei em volta e para minha surpresa, identifiquei que ali era a rua do Colors.
Pensei em ir até lá me proteger da chuva, mas não tive coragem, devo ter permanecido assim com o olhar fixo na placa luminosa do bar a uma quadra dali, por alguns minutos, até sentir sobre meus ombros um casaco seco e quente. Era Clara envolvendo-me com um sobretudo, segurava um guarda-chuva e tinha no rosto aquele sorriso que me encantou.
Clara estava linda, correspondi ao seu sorriso, e ela me disse:
-- Você costuma sair na chuva assim?
-- Assim como?
-- Linda assim...
-- Linda? Você está zombando de mim? Estou ensopada, olha meu estado!
-- Os cabelos molhados dão um charme e seu sutiã é uma graça!
Ruborizei, e cruzei os braços inocentemente a fim de cobrir minha lingerie evidente pela roupa molhada. Iniciei uma sessão de espirros persistente, e foi nesse momento que Clara sugeriu:
-- Vamos até o loft, vestir roupas secas, beber algo quente.
-- Não obrigada, estou esperando Bernardo, ele vem me buscar.
-- Isabela você vai ficar resfriada, ligue para ele e avise onde você está, ele te pega lá.
-- Mas meu carro...
-- Olha só Isabela, só estou querendo ajudar, se você prefere que ficar aqui ensopada, vendo seu carro ser inundado, esperando horas até Bernardo chegar aqui, tudo bem por mim, pode ficar com o casaco.
Clara afastou-se em direção ao bar, quando chamei:
-- Clara espera!
A loira voltou, colocou o braço em volta do meu ombro, acomodando-me abaixo do seu guarda-chuva e disse:
-- Quer carona?
Sorri e balancei a cabeça positivamente, caminhamos até o loft praticamente abraçadas, o perfume de Clara era inebriante, por várias vezes no percurso fui flagrada olhando-a com encantamento. Muito educada, Clara me deu um roupão, e pediu minhas roupas apontando-me o banheiro para que eu ficasse à vontade:
-- Vou colocá-las para secar, e preparar um café.
Clara avisou com um sorriso gentil. Tomei o café que ela me serviu, observando-a com atenção, em cada detalhe dos seus gestos delicados preparando algo para me servir: como ela era linda, feminina, educada.
-- Prove esses biscoitos de leite condensado, aprendi com minha avó.
-- Delicioso... Já pode casar!
Clara sorriu sem jeito.
-- Casamento pra mim? Nunca mais!
-- Nunca não é tempo demais?
-- No meu caso, é o tempo necessário...
-- Seu último relacionamento foi tão ruim assim?
-- O final dele apagou qualquer coisa boa que passei com minha ex...
-- Roberta é o nome dela não é?
-- É...
-- A pessoa com a qual você estava falando naquela noite no celular...
-- Isso, ela está voltando para o Brasil, e já começou a me infernizar.
-- Ela quer voltar?
-- Eu não sei o que ela quer de mim Isabela, mas... Eu não gostaria de falar nisso, desculpe-me.
-- Tudo bem, eu entendo.
-- E o café, está bom?
-- Muito bom também... Senti um gostinho de chocolate...
-- Bom paladar o seu... Tem algumas gotas de chocolate derretido...
Trocamos olhares, eu fugi várias vezes daqueles olhos que pareciam querer entrar em minha alma.
-- E como está o projeto de transformação desse estúdio? Pelo que vejo você vai perder a aposta...
-- Ainda faltam cinco meses, não cante vitória antes do tempo.
Conversamos amenidades até Bernardo dar as caras por lá. Para meu alívio, Clara não se insinuou em nenhum momento, considerando o teor do nosso último encontro, temi que a loira me enxergasse como uma mulher fácil que não tinha o menor compromisso sentimental com o sex*, visto que foi assim que me comportei. Agiu como uma mulher gentil e educada como ela era de fato, oferecendo apenas a acolhida em meio aquele temporal, o que me deixou à vontade na presença de ela e me encantou ainda mais.
Bernardo não fez comentários maldosos acerca dos trajes que ele me encontrou na casa de Clara, deixou-me tranqüila para tecer comentários fofos sobre o comportamento impecável da loira charmosa.
-- Você acha que ela se chateou comigo?
-- Como assim Isa?
-- Ah Bê... Meio que dei um fora nela depois de...
-- Dar pra ela no primeiro amasso né?
-- Ai Bernardo! Não fala assim!
-- Por que não? Ah por que você não é passiva?
-- Bernardo!
-- Tudo bem... – Sorriu como se não ligasse para minha indignação.
-- Então, você acha que ela perdeu o interesse? Se chateou comigo?
-- Ai não sei Isa. A Clara é uma mulher séria, acho que ela também não agiu da maneira mais convencional...
-- Como assim?
-- Pelo que Renato comentou comigo, a Clara não é do tipo de mulher predadora, que faz o que fez com você...
-- Então eu a assustei?
-- Ai mona sei lá! Não entendo nada de mulher! Esqueceu que meu babado é outro?
-- Bernardo deixa de ser chato, você entende sim!
-- Tudo bem, vou falar o que acho: primeiro, no lugar dela também estaria chateada, você estava toda disponível, bem dada né... – Estapeei o braço do meu amigo indignada – Ai! É verdade ué, aí depois você deu uma de cafajeste fugindo do local do crime, e pior, pra finalizar posou de viúva pura quando ela te ligou...
-- Então... Você acha que ela perdeu o interesse em mim?
-- Quem sabe... Agora é hora de você decidir se vale a pena correr atrás do prejuízo, ou simplesmente deixar pra lá e continuar no seu momento de recriação de si mesma...
A indagação de meu amigo me deixou pensativa por dias, Clara não saiu do meu pensamento mas, não tive coragem de procurá-la. A oportunidade de revê-la surgiu em um convite descompromissado de Louise, uma das residentes que estava fazendo aniversário. Nem sabia que a jovem médica “sapateava”, mas comemorar o aniversário em um bar gay deixava a possibilidade bastante evidente.
Cheguei sozinha, não usei a super produção que utilizei na última vez que fui ao Colors, mas dei uma disfarçada básica na minha expressão cansada depois de um dia inteiro de trabalho. O pessoal do hospital ocupou a pracinha do bar, minha presença chegou a surpreender a todos, já que sempre recusei os convites para festinhas e happy hours. Sentei junto aos outros, mas meu olhar procurava Clara. Beberiquei o chopp impaciente, e meu coração acelerou quando vi andando pelo bar a dona do Colors distribuindo sua simpatia entre os clientes.
Hesitei, mas me aproximei do caixa no balcão, onde ela estava entretida mexendo no computador, o barulho da música me obrigou a falar mais alto:
-- Você é a dona desse bar?
-- Sim, por quê? – Clara não desviou o olhar do monitor.
-- Minha conta está errada, não vou pagar isso!
Meus berros anunciando um erro de caixa chamaram a atenção da loira que só nesse momento tirou os olhos do monitor e me encarou surpresa:
-- Isabela?!
-- Foi só eu falar em não pagar a conta e você olhou pra mim não é?
Clara sorriu.
-- Que surpresa você por aqui... – Clara disse se afastando do caixa para me cumprimentar.
Deu-me dois beijinhos na bochecha, e como boa anfitriã perguntou:
-- Está bebendo o que?
-- Chopp, estou naquela mesa ali, com o pessoal do hospital... É aniversário de uma residente.
-- A Louise trabalha com você?
-- Você a conhece?
-- É... Conheço...
Notei Clara sem graça, logo deduzi que a resposta dela ocultava uma intimidade maior entre ela e a residente, e isso, assustadoramente despertou meus ciúmes.
-- Você a conhece daqui do bar? Ela freqüenta muito?
Clara franziu a testa, com uma expressão de quem não entendia meu interesse na ligação entre ela e Louise.
-- É... Nesse mundinho você sabe, sempre tem alguém que conhece alguém... E nos esbarramos por aqui...
-- Sei... Esbarraram...
Clara desconversou escondendo um sorriso nos lábios.
-- Então, não ficou doente depois da chuva?
-- Não... Acho que seu café fez milagre, por que eu sempre tenho crise de asma se a chuva me pega...
-- Que bom então... Você vai demorar por aqui? Ou está cumprindo tabela pra agradar a Louise?
-- Eu não preciso agradar a Louise, ela que tem que fazer isso, afinal sou a preceptora chefe dela.
-- Ui, que poderosa!
Nem percebi o quanto fui esnobe no comentário, Clara sorriu, e continuou:
-- Bom... Então aproveite a noite... O DJ é ótimo... Estou de saída, hoje é dia do Mateus aqui...
-- Ué você não vai ficar por aqui?
-- Minha folga... Vou aproveitar e fazer supermercado... Com a reforma do loft não tive tempo essa semana, e minha geladeira está vazia!
-- Ah...
Minha decepção ficou óbvia. Meu impulso era me oferecer para ir com ela, mas ficaria ridículo, Fiquei parada ali perto do balcão imaginando alguma desculpa que justificasse uma nova aproximação, quando percebi Mateus conversando com um dos funcionários:
-- A Clara já foi?
-- Acabou de sair...
-- Ai que lesada! Esqueceu a carteira aqui... Como ela vai pagar as compras eu não sei... Vai ter que voltar...
-- Com licença Mateus, eu ouvi você falando... Estou indo para os lados do supermercado do shopping, é lá que ela faz as compras?
-- Sim, ela sempre faz lá sim, é o mais perto daqui.
-- Se você quiser posso levar para ela.
-- Ai jura Isa? Vai me poupar de escutar as lamúrias dela por não ter mandado um funcionário entregar, qualquer um que se ausente hoje vai fazer falta.
O universo conspirou, e fui feliz da vida de táxi até o supermercado, já que estava sem carro, depois da chuva, meu automóvel ficou na oficina. Com a carteira de Clara na mão, entrei no supermercado procurando-a, sem sucesso na sua busca, pensei até em ligar para Renato pedindo o número do celular dela, saquei meu celular andando com a cabeça baixa esbarrei em um carrinho de compras:
-- Aiii, desculpa moça... Eu estava distraída...
-- Distraída com o que doutora?
Atrás de mim, a voz familiar de Clara, voltei meu corpo e a encontrei com seu sorriso peculiar iluminando seu rosto.
-- Clara! Encontrei você!
-- Estava me procurando?
-- Sim... Vim retribuir o favor que você me fez no dia da chuva...
-- Retribuir? Acaso está acontecendo um dilúvio lá fora e você veio me resgatar?
-- Não... Vim evitar que você passasse pelo constrangimento de não ter como pagar suas compras...
-- Olha só, eu te falei que estou economizando, mas ainda posso pagar o supermercado.
-- Você pode me dizer como?
Exibi sua carteira em minha mão e ela arregalou os olhos, abriu sua bolsa e apertou os olhos se dando conta da sua distração.
-- Deixei a carteira no caixa do bar não foi?
-- Ahan... Mateus comentou com um funcionário e me ofereci para vir deixar.
-- Nossa... Muito obrigada Isabela, você foi um anjo!
-- Por nada, estava te devendo essa.
-- Já que você está aqui, me faz companhia? Depois podemos jantar aqui no shopping mesmo, o que acha?
-- Acho um convite irrecusável.
As compras de supermercado nunca foram tão divertidas desde Camila. Clara parecia uma criança nas escolhas de produtos. Ela tinha uma classificação estranha de prioridades para escolher uma marca ou o sabor dos alimentos. Sempre escolhia as marcas de embalagens mais coloridas, as frutas e verduras tinham principalmente que ser cheirosas e segundo a classificação dela: felizes.
-- Mas o que são frutas e legumes felizes?
Perguntei com um ar de deboche.
-- Nem vem com esse risinho debochado... Sempre acerto na escolha, frutas felizes são aquelas cheirosas, brilhantes, coloridas... Olha esse melão, sua casca parece arte moderna...
-- Parecem mais capilares arteriais... – Sorri discordando da loira.
-- Não seja chata! Ele é lindo!
-- E quem disse que os capilares não são?
-- Olha aquela penca de bananas... Está sorrindo para mim... São bananas felizes...
-- Mas... Toda banana tem esse formato uai...
-- Elas são felizes uai!
Notei Clara zombando do meu deslize no sotaque.
-- Olha aquele pepino! Lindo também... Aquela cenoura então...
-- Nossa... Você tem um gosto duvidoso...
-- Por que duvidoso? Você como médica deveria me apoiar na minha alimentação saudável...
-- Duvidoso por ser muito heterossexual... Se eu não soubesse o quanto você é boa de... Enfim... Diria que você gosta de outra coisa... Pepino... Banana... Cenoura...
-- Doutora Isabela! Como você é maliciosa!
Ruborizei disfarçando com um sorriso.
-- Então você me achou boa de cama foi?
Fiquei nervosa com a pergunta. Quando Clara me perguntou isso eu estava encostada na barraca de laranjas, ao ser abordada com tal indagação, desequilibrei-me sobre as laranjas, derrubando-as me atrapalhando para recolhê-las pelo chão enquanto outras continuavam a cair sobre minha cabeça. Clara agachou-se para me ajudar e por um breve momento nossas mãos e olhares se cruzaram, e ela lançou seu feitiço mais uma vez sobre mim com seu sorriso arrebatador. Estremeci, mas, retribui seu sorriso.
Depois das compras, como combinado, jantamos em uma pizzaria na praça de alimentação do shopping, e o clima descontraído misturado ao flerte persistiu. A companhia dela era maravilhosa, leve, nem percebia o tempo passar. Diverti-me com as manias dela. Clara cortava os pedaços de pizza de forma triangular, derramava o azeite sobre a fatia fazendo um zig zag perfeito, percebendo que eu não desviava a atenção dos seus gestos ficou tímida:
-- Você já deve ter me dado o diagnóstico de TOC não é?
-- Por que me diz isso? Alguém já fez isso?
-- Profissionalmente não... Mas minha ex se irritava com essas minhas manias...
-- Pra falar a verdade, nem pensei em doenças psiquiátricas quando estava te observando... Estava admirando seu jeito de achar arte em tudo...
Notei os olhos de Clara brilharem.
-- Você foi a primeira pessoa que enxergou minhas manias de uma forma poética... E real para mim. Eu procuro mesmo ver arte e beleza em tudo, no meu trabalho, no que visto, no que como...
-- É uma maneira interessante de ver a vida.
Sorri e a imitei com o fio de azeite na fatia de pizza e no corte triangular, arrancando um sorriso da loira. Ao final do jantar, quando nos despedimos, anunciei que sairia por outra porta para pegar um táxi.
-- Táxi? Você veio de táxi deixar minha carteira?
-- É... Meu carro está na oficina desde aquela tempestade...
-- Deixo você em casa então, faço questão.
-- Não é preciso, imagina Clara, você mora tão perto, moro no outro lado da cidade, não se preocupe.
-- Não estou oferecendo carona, estou dizendo que te levo em casa doutora!
No trajeto, em meio a comentários sobre as músicas que tocava no mp3 player do carro, trocávamos olhares de desejo, mas não um desejo puramente libidinoso, era um desejo de prolongar aquela noite, de não sairmos da companhia uma da outra.
De frente ao meu condomínio, Clara estacionou, já era tarde, a rua como de costume estava deserta, olhou pelo portão e disse:
-- Uau... Você mora bem doutora...
-- É um lugar seguro, agradável... Compramos ainda na planta... Camila adorava o bairro...
Pausei como se tocasse em um assunto sagrado e proibido ao mesmo tempo.
-- Camila é sua ex?
-- Sim... Era minha mulher.
Baixei a cabeça e tom de voz também. Clara segurou minha mão posta sobre o joelho e disse:
-- Todas nós temos um passado dolorido não é?
-- Meu passado com Camila não é dolorido, mas meu presente sim...
-- Ainda sente muito a falta dela?
-- Quase todo tempo...
-- E por que vocês não estão mais juntas?
Meus olhos encheram-se de lágrimas e respondi ainda de cabeça baixa.
-- Camila estava no vôo da AIRFRANCE que caiu ano passado.
-- Oh meu Deus... Sinto muito Isabela, eu não sabia...
-- Tudo bem... É até bom saber que Bernardo e Renato não falaram nada sobre mim a você...
-- Renato só me falou que você é uma mulher apaixonante, mas isso nem precisava ele me dizer... Você me parece auto-explicativa...
Sorri do comentário dissipando as lágrimas.
-- Sabe que esse adjetivo pra mim é novo? Nunca me chamaram de auto-explicativa.
Clara colocou as mãos sobre o rosto.
-- Meu Deus... Eu perdi mesmo o jeito para paquerar mulheres! Não soou nada sedutor não é?
-- Na verdade me senti uma ilustração de um manual de instruções de uma televisão...
Gargalhamos.
-- Desculpa Isabela, é que... Agi tão errado com você na minha primeira oportunidade, acho que te assustei, sei lá... E estou ansiosa pra não perder essa chance do acaso de fazer as coisas de um jeito diferente...
-- Você agiu errado? Nossa... Acho que eu fui uma cafajeste... Eu pensei que eu tinha te decepcionado...
Rimos juntas e quando nossos olhares se cruzaram mais uma vez, Clara me encarou com aquele brilho como quem está entrando em minha alma e sondando meus desejos me desestruturando, aproximou-se de minha boca, roçou seus lábios nos meus despertando arrepios na minha pele. Segurei seu rosto e a beijei delicadamente, sem pressa, saboreando o gosto de seus lábios e língua, sentindo sua respiração acelerar, abri os olhos e vi diante de mim aqueles olhos cinzas tomarem uma cor esverdeada com o reflexo da luz da rua, e meu coração quase saiu pela boca, tamanha a emoção que me invadia. Clara acariciou meu rosto, e antes que se instalasse o impasse entre convidá-la ou não para entrar ela se adiantou:
-- Boa noite Isabela, durma bem...
-- Boa noite Clara.
Saí do carro e antes de partir Clara me chamou:
-- Isabela! Tem planos para amanhã?
-- Amanhã?
-- É... Sábado...
-- Não que eu me lembre...
-- Almoça comigo?
-- Sim, claro.
-- Então, te ligo amanhã para combinarmos o lugar.
-- Fica marcado então.
Entrei no condomínio com uma sensação maravilhosa de esperança que há muito não experimentava. Clara não era uma conquistadora barata, e o melhor não me julgava pelo equívoco de nossa primeira noite juntas, algo muito verdadeiro e bom poderia nascer entre nós, e minha solidão poderia estar com os dias contados.
Fim do capítulo
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