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CAPÍTULO 46 – LIÇÃO 40: SEU TESOURO É ONDE ESTÁ O SEU CORAÇÃO
A urgência de voltar ao Brasil não permitiu que Ivy me acompanhasse. Eram muitos os compromissos de trabalho, mas, principalmente os compromissos com Ben. Apesar de sua ex-mulher se prontificar a cuidar do filho no período da sua ausência, Ivy fazia questão de estar presente em todos os eventos escolares do garoto, algo que eu respeitava e admirava. E toda essa urgência teve que esperar pelo menos três dias, até que eu conseguisse embarcar para o Brasil, nesse tempo, meu pai fora transferido para o Rio de Janeiro, e fora operado no Hospital Pró-Cardíaco, e desde então estava em um leito de terapia intensiva.
Minha chegada ao Brasil foi bem diferente do que eu esperava, depois de quatro anos fora do meu país. Ao menos o rosto conhecido que me esperava no Galeão me trouxe a sensação familiar de voltar para casa: Cris me aguardava com sua leal devoção de amiga, atendeu ao meu pedido de me levar imediatamente ao hospital onde meu pai estava internado.
Abracei minha mãe assim que a avistei, compartilhamos a angústia de não saber o que nos esperaria nos próximos dias. Rapidamente avistei Clarisse, que me abraçou forte e me puxou para um dos cantos do saguão, para me atualizar sobre a situação do meu pai:
-- Luiza, o infarto foi extenso, apesar da cirurgia ter sido exitosa, o estado dele ainda inspira cuidados, ele continua sedado e entubado, a prioridade é evitar infecções, seriam drásticas no estado dele. E devido ao dano ao músculo cardíaco, seu pai pode ter sequelas.
-- Sequelas? Que sequelas, Clarisse?
-- Insuficiência cardíaco congestiva... Você pode supor quantas limitações seu pai terá com um dano tão importante.
Balancei a cabeça e deixei as lágrimas caírem, enquanto Clarisse me acolhia no seu abraço.
-- O mais importante é que ele se recupere da cirurgia, depois você conversa com a equipe que o acompanha, o dr. Marcos, professor da universidade é o chefe, ele sabe que o Sr. Antônio é seu pai, conversei com ele após a cirurgia.
-- Sim... Obrigada, Clarinha.
Logo após a visita a UTI, quando entrei com minha mãe, encontrei o médico do meu pai que reforçou os detalhes do estado clínico dele, e o que esperar nos próximos dias, ao final recomendou:
-- Vá descansar, doutora, e leve sua mãe, seu pai pode passar dias na terapia intensiva, qualquer alteração no estado dele, me comprometo pessoalmente em avisar a você. Ele está recebendo a melhor assistência, te garanto.
Acenei em acordo, e com muita resistência, levei minha mãe para meu apartamento. No tempo que passei fora do Brasil, optei por não fazer contratos longos de locação, deixei-o disponível no Airbnb, Ed e Cris se revezavam na manutenção dele e do meu carro, já que misteriosamente, eles sempre tinham uma cópia da chave de lá. Entrar de novo naquele espaço me absorveu por segundos, trazendo à tona várias lembranças misturadas, mas, uma delas era predominante: a imagem de Marcela em cada canto.
Contudo, não havia clima para lembranças, o momento era outro, e minha mãe ali, carecia de atenção.
-- Mãe, venha tomar um banho, descansar um pouco. Pedi a Cris que pegasse suas coisas no hotel, e trazer para cá.
-- Agradeça a sua amiga, mas, vou volta ao hotel, deixe minhas coisas lá.
-- Mas, mãe... Estou aqui, é minha casa, é da senhora também. Para que hotel?
-- Não vim sozinha, a Valentina está me acompanhando, o hotel é mais perto do hospital, melhor que eu fique lá.
-- Já que eu cheguei, Valentina pode voltar para Petrópolis, vou ficar com a senhora todo o tempo.
-- Agora você vai ficar comigo todo o tempo? Você nos larga por anos e eu devo me desfazer de quem me apoia por que você está aqui?
-- Mãe... Eu não larguei vocês, estava trabalhando, é uma pesquisa, nós conversamos tantas vezes...Mas o apartamento é grande, se a minha querida prima quiser vir, tem espaço suficiente para ela também, melhor ficar aqui do que em um hotel.
-- Discordo, ficarei mais à vontade no hotel.
-- Mãe?! Prefere um hotel a ficar na casa de sua única filha?
-- Por que eu ficaria à vontade aqui? Quantas vezes estive aqui, quatro, cinco vezes?
-- Sério, mãe? Vamos falar sobre isso agora? Vamos falar sobre o fato de a senhora não fazer nenhum esforço para vir passar uns dias com sua única filha na casa dela?
-- Seja menos dramática, Luiza. Até parece que você é do tipo de precisa da companhia da mãe. Sempre fez questão de bater no peito para falar da sua independência e que não precisava de mim para nada, sempre foi do jeito que você quis, e seu pai fazendo suas vontades.
-- Do jeito que eu quis? Ah mãe... Sempre foi do jeito que a senhora quis, segundo as suas regras: “você pode viver suas escolhas, mas longe dos meus olhos”, “faça o que quiser, mas debaixo do meu teto, as coisas serão diferentes”, “se for para me envergonhar, prefiro que fique longe de mim”.
-- Você tem a memória muito boa para alguém que esquece de ligar para os pais no aniversário, ou responder uma mensagem, ou sequer para lembrar que eles existem.
-- Mãe a senhora está fugindo do ponto fundamental de nossas questões: a senhora não aceita quem eu sou.
O que poderia ter permanecido no acordo tácito de não se falar na minha identidade sexual para evitar desconfortos e desentendimentos pareceu não mais poder ser contido. A fragilidade da vida do meu pai, expôs a fragilidade da minha relação com minha mãe, o que nos mantinha equilibradas nesse acordo, a cola da tranquilidade familiar era o meu pai. Desde a minha adolescência, minha sexualidade era o ponto de tensão entre minha mãe e eu, algo natural quando se trata das descobertas próprias da idade versus a decepção de uma mulher tradicional com seus inúmeros sonhos héteronormativos igualmente tradicionais para sua única filha.
-- Ora, não aceito quem você é? Maria Luiza, tenha paciência! Eu tenho muito orgulho da mulher que você é, uma mulher inteligente, bem sucedida, uma cientista!
-- Sou tudo isso, mãe, e sou também uma mulher que ama mulheres. Ser lésbica, faz parte de mim também. Mas, eu nunca pude falar nisso claramente, era tudo na base de evitar a palavra amaldiçoada, você se referia a minha “situação” a minha escolha, nunca quis conversar comigo exceto para me pedir que eu fosse discreta, o que eu entendi perfeitamente como um pedido para que eu vivesse escondido a minha sexualidade.
-- O que obviamente você não fez! Teve caso com artista, com aluna, até processo levou, e depois quis nos empurrar goela abaixo outra mulher que você arrumou do outro lado do mundo, falando que você tinha uma família lá! E o que fez com a sua família? Ia lá chorar suas lamúrias no colo do seu pai, me colocando como uma vilã, tive que receber aquelas mulheres em minha casa, como visitas de honra, graças às suas chantagens emocionais.
As palavras de mágoa da minha mãe não denunciavam só sua incapacidade de me aceitar, evidenciavam também o cansaço de aguentar calada toda sua insatisfação que não podia ser demonstrada para não desagradar meu pai.
-- Acho que essa nossa conversa não tem propósito, mãe, só está nos magoando no pior momento. Se a senhora não se sente à vontade aqui, não se sinta obrigada a ficar.
Deixei minha mãe na sala, e me refugiei em meu quarto, um assunto nunca encarado por mim mostrava sua face na pior hora, ou seria na hora certa? Aprendi a reconhecer que os acasos mais impróprios são excelentes oportunidades de desfechos, inícios ou recomeços. O fato é que estávamos ali quase que obrigadas a conviver uma com a outra, partilhando da incerteza sobre a vida do homem que amávamos. Talvez por isso, não voltamos a nos atacar, falamos o absolutamente necessário, diálogos reduzidos a poucas sílabas como resposta.
Permanecemos assim nos dias que se sucederam, nos encontrávamos no hospital nos horários de visita, como anunciado, minha mãe foi para o hotel. A única exceção foi no dia em que recebemos finalmente uma boa notícia sobre o estado do papai, nos abraçamos quando o Dr. Marcos comunicou que ele fora extubado e que nas próximas 48h seria transferido para o quarto se permanecesse evoluindo bem.
Assim aconteceu, dois dias depois que saiu da ventilação mecânica, papai foi transferido para o quarto e pudemos enfim ouvir sua voz, ainda muito frágil, e aos menores esforços ele se sentia cansado, faltava-lhe o ar.
-- O quadro de insuficiência é grave, seu pai terá que aprender com essas limitações, mas, ainda temos um longo caminho de recuperação, reabilitação respiratória, temos que ver quais os melhores caminhos para o tratamento.
Dr. Marcos fez algumas colocações que me fizeram tomar decisões sobre minha permanência no Brasil por mais tempo, tempo incerto. Ivy foi compreensiva, presente, apesar de longe fisicamente, se mantinha preocupada e comprometida, nas nossas chamadas de vídeo sempre colocava o Ben para me ver. Pedi licença da pesquisa para me dedicar aos cuidados com meu pai. Passava praticamente todo meu tempo no hospital, lutando uma guerra silenciosa com minha mãe: olhares penetrantes, risos sarcásticos quando eu falava sobre a Ivy e o Ben com o papai, perguntas sem respostas. Com dificuldades para falar, papai se esforçou e sussurrou:
-- Saudades filha
-- Também estava, paizinho... – Apertei sua mão – Acho que o senhor aprontou tudo isso para me fazer voltar da Inglaterra voando né? Confessa paizinho.
Papai sorriu, se sua voz estivesse mais forte, certamente gargalharia.
-- Pode avisar a sua equipe de comparsas, que você já alcançou seu objetivo, sua filhinha está de volta, você não está com cara de quem tem o coração fraco. Desfaça sua armação e eu te levo na praia agora!
-- Maria Luiza! Pare de dizer sandices, pare de provocar seu pai, ele precisa descansar. Poupe suas energias, meu querido.
Meu pai me olhava cúmplice, sabia que era pura implicância da mamãe. Ela só se aquietava quando recebia a família, minhas tias e primos que fingiam intimidade comigo, a encenação de família perfeita era cansativa, a ponto de me fazer sair do hospital quando eu sabia que viria mais algum parente.
Como a evolução clínica do meu pai caminhava bem, tratei de adaptar meu apartamento para acolhê-lo, uma vez que a reabilitação seria longa, e as demandas do tratamento também. Contratei uma empresa de home care, e meu quarto de hóspedes se transformou em um leito, com todo o suporte que meu pai precisaria ao sair do hospital.
Mas os planos de minha mãe eram outros. Quando tivemos uma previsão de alta do papai, ele testemunhou outra batalha nossa, dessa vez menos silenciosa:
-- Finalmente vamos voltar para casa, meu querido! O João está preparando tudo para mudar nosso quarto para o térreo, nada de escadas, nada de esforço.
-- Mãe, como assim voltar para casa? O tratamento do papai será aqui no Rio, pra que submetê-lo a esse vai e vem da serra pra cá?
-- Acha que em Petrópolis, não tem fisioterapeutas, enfermeiros, médicos? Em casa seu pai terá tudo, e o melhor no conforto da casa dele.
-- Mas mãe, ainda é muito cedo para ele ir, a equipe do Dr.Marcos é a melhor do estado, eu preparei tudo no meu apartamento, pelo menos esse primeiro mês, vamos ficar aqui no Rio para facilitar esses exames...
-- Você preparou seu apartamento? Mas, seu pai tem casa! Você não tem que voltar pra sua pesquisa lá na Inglaterra?
-- Mãe, chega de implicância. Sabe que estou aqui para cuidar do papai, quero o melhor tratamento para ele, não volto a Inglaterra até o papai estar bem.
-- Acha que eu não quero o melhor tratamento para seu pai?
-- Eu não disse isso, mãe, só estou dizendo que aqui temos uma equipe pronta, a melhor, seria mais adequado...
-- Maria Luiza, quem decide o mais adequado para seu pai sou eu!
Papai puxou o suporte de soro e o derrubou no chão, provocando o barulho que nos calou:
-- Pai!
-- Eu...ainda não estou morto!
-- Meu querido...
-- Chega Helena...eu decido.
Papai ainda falava baixo, mas era firme, apesar de falar com as palavras entrecortadas.
-- Ficaremos com a Luiza.
Ainda bem que a mamãe não era uma vingadora, por que seu olhar queimaria meus olhos até me cegar. Saiu do quarto pisando firme, quando me aproximei do papai:
-- Pai, é o melhor para o senhor, confio na equipe do Dr. Marcos, a Clarisse conhece os fisioterapeutas, ele acompanhará o senhor pessoalmente...
-- Filha, eu sei que sim. Sua mãe vai se conformar.
A mamãe não se conformou, reclamou todos os dias, de tudo. Do clima, do prédio, da faxineira, da comida, da técnica de enfermagem, do fisioterapeuta, do fonoaudiólogo, das ligações da Ivy, do meu carro, do trânsito... Eu e papai já nos divertíamos comentando sobre o mau humor dela, a cada risada dele eu desconfiava que todos os fármacos que ele utilizava não estavam surtindo o efeito esperado.
Depois de dois meses de tratamento, e de refazer alguns exames, na consulta com o Dr.Walter, cardiologista da equipe do Dr.Marcos, tivemos más notícias.
-- O infarto não deixou somente a insuficiência como sequela, seu pai apresenta também arritmias importantes, o tratamento ideal seria a colocação de um marca-passo, mas, é muito arriscado na condição dele hoje.
-- Então qual é a opção doutor? – perguntei angustiada.
-- Doutora Luiza, a senhora sabe o que é um Cardiversor desfibrilador implantável?
-- Receio que não, doutor.
-- O desfibrilador implantável foi desenvolvido para monitorar o ritmo cardíaco 24 horas por dia. Se o coração está batendo muito rápido ou de forma irregular, o dispositivo envia primeiro pequenos sinais elétricos indolores para corrigir o ritmo cardíaco. Se o ritmo cardíaco continuar acelerado, o desfibrilador aplica um choque para trazer o ritmo cardíaco de volta ao normal.
-- É uma opção para o Antônio? – Minha mãe quis saber.
-- Temos excelentes resultados com ele, não resolveria, por que temos a lesão do infarto comprometendo grande parte da atividade cardíaca. Mas, hoje no Brasil, temos um estudo clínico muito robusto, com uma adaptação dessa tecnologia, para uma mais moderna, que aumenta a força de ejeção do sangue, e com certeza ajudará a tratar também a insuficiência.
-- Que estudo? Onde está sendo feito? – Perguntei curiosa.
-- No HCor em São Paulo. Tomei liberdade de entrar em contato com a equipe que está a frente do estudo, o senhor Antônio tem o perfil certo para o estudo, se vocês tem interesse, posso marcar uma avaliação com a equipe.
-- Por favor, doutor! Nós queremos, não é pai? Não é mãe?
Meus pais acenaram em acordo, pela primeira vez, não houve implicância, apertamos nossas mãos e concordamos com o próximo passo do tratamento em São Paulo.
Fim do capítulo
Oi meninas!
Capítulo necessário para o desenlance da história, espero que curtam! Quem ai arrisca a próxima reviravolta da história?
Beijos e bom feriado!
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theycallmeangel
Em: 16/11/2021
Parece que o grande reecontro se aproxima. Ansiosa por esse momento!
LeticiaFed
Em: 14/11/2021
Ah, que seja o reencontro com Marcela,por favor! E que elas se entendam, definitivamente. Só isso a pedir pra querida autora ;)
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