E aqui, a redenção
De cabeça baixa, bem arrumado, o corte rente, entrou em casa sem dizer nada. Colocou a maleta de lado, e sentou no sofá.
— Tem chá? – perguntou.
— Tem, vou fazer pro senhor.
Parecia estar nervoso, mas nada disse. Nada expressei, nada sentia com a presença do meu pai ali, comigo. Levei o chá até a mesa de centro da sala e servi o chá para ele, que agradeceu com um gesto na cabeça. Deu um gole rápido nele e suspirou fundo.
— Sua mãe falou que você já estava em casa.
Não respondi nada. Servi um pouco de chá para mim também e ali fiquei soprando o vapor que saía do recipiente, encarando o fundo verde claro, balançando devagar.
— Gostaria de conversar.
— Não temos nada que conversar, bàba.
— Acho que temos, Hǎi yún – ele disse enfático.
— Se quisesse conversar comigo, sabia onde me encontrar – dei com os ombros, dando um gole no chá sem encará-lo.
— Não tive coragem de ver você – ele engoliu em seco enquanto falava, respirando fundo antes de voltar a falar – parecia que era a certeza de que tinha fracassado como pai e o homem da família.
Parei de encarar o chá e o encarei. Sério, com o olhar compenetrado, segurando a xícara de chá firmemente, com os braços apoiados na perna. Não olhava diretamente para mim, e sim para a sua frente. Tínhamos o mesmo gesto de não conseguir encarar diretamente as pessoas, principalmente em situações tão delicadas.
— Foi decisão nossa colocar você em clínica. Não queríamos que você fizesse mais aquelas coisas. Nem eu e nem Yǎ qín sabíamos o que fazer.
— Não venha com essa conversa para meu lado, bàba – o interrompia, deixando transparecer o desgosto que sentia ao ouvir aquelas palavras – Vem com essa desculpa de arrependimento pra que eu lhe perdoe ou coisa do tipo?
— Não, Hǎi yún – ele respondia pausadamente – estou falando isso porque eu conversei muito com sua mãe o tempo que esteve longe daqui. Coisas mudaram.
— Eu tive que enlouquecer pras coisas mudarem, certo? – dizia em um riso sarcástico – Nossa, agradeço muito por ter que sacrificar minha sanidade pra que percebessem o que já tinha falado há tanto tempo.
— Eu não poder mudar passado, Hǎi yún – ele lançou o olhar para mim – não posso mesmo. Se pudesse, tinha feito muita coisa diferente. Eu me arrependo, mas não me fazer de coitado. Você saber bem disso.
Quando meu pai ficava nervoso, seu português começava a ficar confuso, entrando em discordância e por conta disso, preferia falar em nossa língua natal. O que me desagradava em parte por eu me sentir mais próxima ao português por viver a vida toda nessa terra, e talvez ele tivesse insistindo, mesmo com as palavras confusas, por respeito ao que eu sentia. Pelo menos era essa a impressão que tinha.
— Parece que eu fazer tudo isso como vilão, mas eu sou seu pai, Hǎi yún. Você é nossa filha muito esperada. Talvez esse seja o problema.
— Problema?
— Querer tanto que você fosse minha sucessora que esquecer que você é diferente de nós – ele olhava para o chá novamente – Viveu em uma terra diferente, com ideias diferentes de mim e sua mā.
Ficamos em silêncio por um bom tempo. Terminei o chá e coloquei em cima da mesa. Ele continuou balançando o seu, olhando para as ondas que os movimentos faziam.
— Yǎ qín me falou que você nos odiar. Eu não tirar sua razão, mas... – ele respirou fundo mais uma vez – Eu não queria perder minha filha. Continuo sem querer perder Hǎi yún. Eu e sua mãe, mas acho que não podemos fazer nada.
Ele mexeu mais uma vez na gola da sua camisa, onde ficava a sua gravata. Respirou fundo, parecendo estar cansado.
— Mas disse pra ela que ainda insistia em querer ver você. Pra saber como você estar. Pra falar o que eu pensava.
Continuei sem dizer nada, e sem nem o encarar. Não conseguiria olhar para o seu rosto naquele momento.
— Nada que falar pra você, você vai acreditar – ele pausou mais uma vez antes de continuar – mas quero que saiba de algumas coisas. Você não querer seguir com loja, tudo bem. Isso ser coisa minha e de sua mãe. Você querer desenhar e ser artista, tudo bem, não posso impedir isso.
Ele deu um gole no chá antes de continuar.
— Eu fiz o que achava que deveria fazer, Hǎi yún – meu pai pressionava os lábios, pensativo – eu quis muito que as coisas estivessem certas, mas não estavam. Eu fazer besteira com você, com sua mãe, com a garota e a família dela. Vocês não deveriam pagar por minha frustração de ter falhado como pai e marido.
E respirou fundo mais uma vez, como se tentasse submergir na água. Fazia aquilo a cada vez que começava a falar.
— Mas não pensar que não ter sentimentos, Hǎi yún. Eu sofro muito com meus atos, mais do que você pensar. Yǎ qín também está muito mal. Acha que foi mal mãe também. A única coisa que nos unir agora é querer que você ficar bem.
Passou a mão no rosto antes de continuar a falar, de um lado a outro.
— Não quero que você sofra mais, Hǎi yún. Nem eu nem sua mãe.
Abaixou a cabeça, e ali ficou por uns segundos antes que deixasse o ar escapar devagar por seu nariz.
— Então, tudo bem você querer ficar com garota. Garota não deixou você nenhum momento. Sua mā falou pra mim. Diferente de mim, que sou seu bàba...
Nunca tinha visto meu pai falar aquelas coisas. Na verdade, nunca nem o tinha visto falar tanto assim sobre seus sentimentos.
— Eu não fazer tão bem assim – ele passou a mão no rosto mais uma vez – ainda mais pra você. Você precisa de apoio. Por isso, achamos melhor que eu saísse. Vou passar uma temporada em Hubei também. Ver seus avós. Colocar cabeça em lugar.
Suspirei fundo, olhando para o jardim que estava à nossa frente.
— Eles nunca falaram palavras de amor pra mim, pouco demonstraram gostar de nós, seus filhos – ele deu um riso sarcástico – pensei por muito tempo que não estava sendo suficiente, mas você é mais sensível. Descontei tudo por não ter tido isso em vocês, ou se você é diferente de nós, ou os dois.
Meu pai colocou a xícara na mesa de centro, e colocou o corpo mais para a frente, com as mãos entrelaçadas e apoiadas no joelho. Senti seu olhar diretamente para mim.
— Wǒ ài nǐ[1], Hǎi yún.
E se levantou, indo pegar a sua maleta.
— Sinto muito se não fui melhor pai, se não fui melhor companheiro. Não é justificativa, mas pensei que estava fazendo certo, mas afastei você e sua mãe ainda mais.
Ficou ao meu lado, e beijou a minha cabeça, apoiando sua mão grossa e úmida em meu ombro.
— Obrigado por ouvir, Hǎi yún. Não conseguiria continuar se não falasse com você ou te visse. Você tem sido maior presente da vida. Dinheiro nenhum paga ver você bem.
Saiu da sala sem dizer mais nada, abriu a porta de fora que conhecia bem e foi embora. Suspirei fundo. Retirei os óculos, e fitei o nada por um tempo e quando percebi, comecei a chorar copiosamente. Um choro que se pega soluçando alto, com as lágrimas transbordando em seu rosto.
Não eram lágrimas de tristeza, mas não sabia enquadrar em que tipo de sentimento era o que sentia. Era uma mistura de alívio com a expiação de cansaço.
Era um maldito jogo no qual os vilões tinham seus traços de bondade, e isso me deixava furiosa. Continuava a sentir raiva dos meus pais, mas nunca esperaria que ele deixasse seu trabalho para ir na manhã o mais rápido possível ao meu encontro e falasse sobre seus sentimentos.
Meu pai nunca falava dos seus sentimentos. Sempre fora um homem sério que não expressava reações, ocupado em manter seus negócios. Nunca mais o tinha visto como o pai, desde a minha infância.
Mas ele foi ali, com suas palavras nervosas. Eu esperava que ele tivesse me deserdado, mas não tinha feito nada disso. Meu pai era sério demais para dizer que se arrependia do que fazia. Nunca tinha visto ele expressar algo além da fúria e cobrança.
O que ele tinha feito não seria apagado, mas ele parecia estar disposto a fazer um futuro diferente, pois como ele tinha dito, não tinha nada a fazer além de ajudar de agora. Talvez isso valesse mais do que qualquer tipo de desculpas.
Minha mãe chegou na hora do almoço, mais cedo do que o previsto. Me viu ainda chorando, sentada no sofá, e correu em minha direção.
— O que aconteceu, Hǎi yún? – ela segurou meu rosto, tentando enxugar minhas lágrimas.
— Nada, só o bàba que foi sentimental demais e me pegou desprevenida – respondi entre os soluços.
Minha mãe levantou as sobrancelhas, surpresa e me abraçou, pegando desprevenida.
— Bǎobǎo, nós te amamos muito – ela afagava minhas costas, com a voz trôpega como se chorasse – Ver você bem é tudo o que vale para nós, não importa como.
Ela me abraçou firmemente sem dizer mais nada e por um momento, abracei-a de volta, selando uma espécie de pacto velado em nosso silêncio. Encostada com a cabeça em seu ombro enquanto ela continuava a me afagar, tinha a sensação de que, depois de uma intensa tempestade, os ventos da bonança aproximavam-se.
[1] “Eu te amo”< em chinês: 我爱你.
Fim do capítulo
Acho que era mais que merecido que H?i yún tivesse apoio depois de tudo que ela passou...
E agora, o que será que acontecerá depois de tudo isso?
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