E seguimos para a reta final dessa obra...
Pedaços colados formam uma só
Estava segurando minha mochila no braço e olhava ao redor atentamente. A sensação de estranhamento presente ali. Passei tanto tempo em uma ala para parar em outra que era como se tivesse saído de casa.
Tinha conseguido o aval para a ala que chamavam de desmame, que era quando se passava os dias necessários até que voltasse para a casa. O lugar, como boa parte do complexo, era claro e espaçoso, mas a atmosfera dele era diferente. Provavelmente porque você sabia o motivo de estar ali. Porém, o caminho até ali não tinha sido dos mais fáceis.
Depois de muita insistência, comecei a interagir nas sessões de terapia, e comecei a tomar o resto dos medicamentos, depois de muito conversar com Caetano que tentava me incitar em como o cérebro desequilibrado precisa, às vezes, no nosso caso, de muletas medicamentosas.
Poderia ter pensado por muitas vezes que, se tivesse aceito o tratamento logo, teria me livrado daquilo mais rápido, mas a verdade era que não tinha como fazer isso. Não conseguia fazê-lo, e só depois de um tempo, aceitei de que aquilo estava indo no meu tempo. Se eu estava ali só agora, era porque tinha que ser.
Caetano, no entanto, não tinha me acompanhado, mas vibrou a minha ida. Isso não impedia que nos encontrássemos todos os dias, mas a sensação de deslocamento que eu tinha continuava. O tratamento continuava, mas era mais brando, como se eu estivesse saindo da clínica de reabilitação.
E assim a semana se passou, sem maiores efeitos.
No dia anterior a minha saída, tive uma longa conversa com Caetano. Tinha medo de não o vê-lo mais, mas ele, em seu tom despreocupado, dizia que iria entrar em contato comigo, mas que não queria que eu o visitasse. Não precisava voltar para aquele lugar, e que ele em breve sairia também, e que iria ao meu casamento com Amanda. Ele me deu um abraço apertado e me desejou sorte.
Na manhã da saída, eu senti medo. Não queria encarar a realidade, mas se tinha o aval do corpo psiquiátrico de que já podia voltar, seja pelo tempo que não praticava nenhum ato contra o meu corpo ou pelas intensas sessões de terapia que, só depois de um tempo, achou-se adequado a minha saída. No entanto, isso não significava o desligamento total. Segundo a psicóloga, eu teria que continuar o tratamento da forma que fazia ali, mas agora adequado à minha rotina. Ela passou as recomendações em minhas mãos, alegando que acreditava no meu poder de escolha, desejou uma boa vida para mim e nos despedimos com um aceno.
Minha mãe estava na porta, conversando com o corpo do local, agradecendo. O dono do lugar veio até mim para se despedir.
— Fico feliz de que esteja indo embora, senhorita. É sinal de que pudemos te ajudar na medida do possível.
Não era porque eu estava saindo de lugar que eu seria uma pessoa diferente. Dei com os ombros, sem nada dizer e não olhei para trás, guardando minhas coisas e aguardando minha mãe voltar.
Vi a clínica se afastando aos poucos do meu campo de visão. Primeira vez que tinha aquela vista do lugar que era mais amplo do que parecia ser, e gostaria que fosse a última. Encostei minha cabeça no vidro da janela e me senti exausta. Parecia que estava sendo desligada de algo importante, e minha mãe ouvia música baixo no rádio do carro.
— Suas amigas estão montando uma festinha para suas boas-vindas – ela começou a puxar assunto – pediram que fosse lá em casa.
Não respondi nada. Peguei os fones de ouvido, coloquei uma música para tocar[1] e fechei os olhos, mas quando fui fechar minhas coisas, vi um papel entrelaçado com meus fones. Ao abrir e ler, vi uma letra cursiva bem desenhada anotado “Caso não esqueça de mim, ondas do mar, esse é o meu número...” Sorri contidamente e guardei o papel de volta nas minhas coisas. Estava mais cansada do que imaginava, já que quando acordei, já tinha chego em casa.
Era do mesmo jeito que me lembrava, mas parecia ser estranha aos meus olhos. Pelo tempo que tinha passado fora, ou tinham trocado as coisas de lugar, não saberia dizer.
O interior era como eu me lembrava. O jardim, a cozinha, tudo exatamente como era em minha mente. Tirei os sapatos, entrei em casa e fui colocar as coisas em meu quarto.
Quando cheguei nele, tudo estava mudado. Uma mudança que não me desagradou, mas que chamou a atenção. Tinham mudado algumas coisas de lugar, arrumado as paredes junto aos desenhos e fotos em um mural só. Nesse mural, tinham acrescentado mais fotos e quando olhei para a cama, tinha um papel em cima dela.
Meu quarto cheirava bem, mesmo que tivesse tanto tempo desabitado. Alguém fez questão de deixá-lo bem arrumado quando eu chegasse. Ao pegar no papel fechado, havia algumas anotações. Primeiro era a letra de Jude dando boas-vindas, seguido de Sofia e Natália, que falavam que viriam me visitar em breve para me atualizar do mundo e que terminava com Amanda escrevendo que acreditava que a Graça tinha sido alcançada, e que ela estava imensamente feliz com minha volta.
Fechei a anotação e coloquei na minha escrivaninha, que estava do mesmo jeito que deixei. Ninguém tinha mexido nos meus desenhos, papéis ou anotações.
Precisava me olhar no espelho. Não era permitido o uso do espelho na clínica, já que eu tinha o histórico com objetos cortantes. Quando entrei no banheiro, as coisas tinham mudado neles por inteiro, mas não reparei exatamente o quê.
Quando encarei minha imagem no espelho, tive a convicção de que não nos davam espelhos para não reparar no nosso próprio rosto e se chocar com a imagem.
Primeiro, eu sabia que tinha ganho peso, tanto pela alimentação que tínhamos no lugar quanto pelo medicamento que tomávamos. Minhas bochechas estavam mais coradas e menos sinuosas, entrando em detalhe com todo o resto do meu corpo. Não era uma diferença gritante, mas era o suficiente para que se percebesse, já que como usava roupas mais largas a maior parte do tempo, não precisei me preocupar tanto com os ajustes. Não era ruim, só era diferente.
No entanto, minhas olheiras estavam mais evidentes, e meu rosto tinha manchas de acne, também por conta dos medicamentos que mexiam com a taxa hormonal do corpo. Caetano também tinha o mesmo problema, mas ele falou que já não ligava mais. Era muito tempo lidando com aquilo.
Meu óculos estava desgastado e torto, mas o que mais me incomodava era meu cabelo. Grande, sem cor e com as pontas secas, longo demais, passando dos meus ombros. Como Amanda conseguia me achar a garota mais bonita de todas como ela mesmo dizia, eu não entendia, mas eu me vi quase urgentemente querendo mudar essas coisas.
Mas principalmente, eu queria dormir na minha cama, no meu quarto. Coloquei as coisas no chão e deitei. Macio e acolchoado até melhor do que nas minhas lembranças, não demorou muito para que eu dormisse novamente. Quando acordei, já estava de noite, e quando fui para a cozinha, vi que minha mãe cozinhava, e pelo cheiro, era gyoza.
Meu estômago fez um barulho alto no mesmo instante que senti aquele cheiro. Fazia meses que não comia aquilo, tanto tempo que parecia outra vida, uma antes de ir para a clínica. Minha mãe, ao perceber que estava ali parada, gesticulou para que eu sentasse e, em um prato, colocou a gyoza com acompanhamentos, tudo organizado.
— Eu imaginei que estivesse com fome – ela dizia voltando para o fogão – então preparei umas coisas que você gosta. Eu fiz também pão doce de ovo e tortinha, faz tempo que não comemos, não é?
Encarei a gyoza, que ainda levantava vapor. Peguei os hashis e dividi no meio, sem deixar de encarar o prato que ainda levantava vapor.
— Onde está o bàba?
Ela parou por um minuto, e virou para a mesa.
— Como disse a você, ele foi embora.
— Bàba não sairia de casa assim – comecei a comer. A gyoza derretia devagar na minha boca, e senti que poderia chorar de felicidade em comer aquilo novamente – Nunca abriria mão de um bem dele assim.
— Ele quer conversar com você, Hǎi yún – minha mãe suspirou, cruzando os braços – Depois que todos nós conversamos, podemos ver o que podemos fazer e...
— Mal saí do hospício e já querem me mandar para lá novamente? – disse com desdém – Posso ao menos ver minhas amigas antes disso?
— Faz quase quatro meses que seu pai não te vê e...
— Porque não quis.
Virei para olhá-la e depois voltei a comer.
— Dê uma chance pro seu pai para...
— Não – tentei me concentrar na comida – Não sou obrigada a falar com ninguém que me faz mal só porque você quer.
— Mas ele é seu pai, Hǎi yún.
— As coisas acontecerão no meu tempo. Se eu quiser falar com ele, eu falarei, se não, não falarei. É simples.
Continuei a comer. Minha mãe não parecia convencida.
— Pensei que o tempo na clínica fosse te fazer bem.
Comecei a rir.
— Mas fez. Foi ótimo passar quatro meses contra a minha vontade em uma clínica psiquiátrica. Serviu para que eu visse que não dependo da vontade de ninguém pra seguir com minha vida.
Encarei-a de imediato.
— A gyoza está maravilhosa e provavelmente os doces também, mas nem eles apaziguam a mágoa que ainda tenho de vocês. Nem eles, nenhum remédio e nenhuma palavra amiga.
Terminei de comer, coloquei o prato na pia, tomei o medicamento e voltei para o meu quarto. Minha mãe nada disse o tempo inteiro. Liguei o computador e nele fiquei até a hora que senti sono de novo.
No outro dia, me levantei mais cedo que o esperado. Ainda estava funcionando no ritmo da clínica, então me espreguicei e fui até a cozinha. Como tinha me acostumado a tomar café, preparei para mim uma pequena dose e comi com algumas bolachas. Não estava com fome o suficiente, e a letargia matinal ainda estava presente conta do meu corpo. Procurando me distrair, liguei a televisão e busquei por meu telefone, que estava desligado por todo esse tempo. Onde eu estava, não permitiam que usássemos qualquer comunicação por fora, já que podia trazer problemas em falar com pessoas não permitidas.
Estava no sofá lendo as mensagens que recebi quando o interfone tocou.
— Oi? – disse ao atender.
— Hǎi yún – a voz rouca tão familiar a mim disse – é você?
[1] Broken, Seether feat. Amy Lee
Fim do capítulo
Comentar este capítulo:
Sem comentários
Deixe seu comentário sobre a capitulo usando seu Facebook: