Desde já, peço desculpas pelo sumiço!
É que compartilhar essa história não é muito fácil. Como acabamos adentrando na história querendo ou não, isso acaba afetando um pouco, pelo menos a mim, que preciso de uns bons dias para me recuperar rs.
O bom é que eu já escrevi até o final! Então vou postando aqui a história de uma vez.
Cristais partidos
— Então, HÇŽi yún, você parece bem melhor do que nosso último encontro.
Continuei fitando o clima seco que fazia naquele dia. O jardineiro, com uma feição sempre complacente, aparava as gramas com o cortador, o chapéu grande que o protegia do sol, e o cantar de pássaros que soavam de fundo.
— Talvez.
Quando ouvi o som da minha voz na sala, estranhei. Era a primeira vez que tinha falado durante toda a sessão de terapia que tive lá desde quando entrei, com exceção da vez que não suportava mais a voz dela e sai bradando o que me veio à cabeça. A psicóloga sorriu entusiasmada e anotou no seu caderninho.
— Amanda veio te visitar?
Olhei para ela, que sorria para mim de volta, mesmo com minha cara de poucos amigos. Talvez minha mãe tivesse falado para ela, ou ela estava tirando essa conclusão por algum gesto meu, afinal tinha estudado para isso. Como já tinha falado, não vi problemas em continuar a responder da mesma forma monossilábica.
— Sim.
— E como foi o encontro?
Resposta elaborada demais para falar. Resolvi dar de ombros e olhar para a janela novamente. O jardineiro não estava mais lá, e agora um dos pacientes da ala mais grave caminhava com roupas leves juntos a um cuidador.
Ela continuava a anotar no seu caderninho, mas em um dado momento parou de escrever, colocou ele na mesa e me olhou diretamente. Sua pose mudou, assim como seu ar, que parecia ser sério, sem a casualidade de sempre, forçando uma proximidade entre nós.
— HÇŽi yún, você pode não acreditar, mas quero muito te ajudar a sair desse lugar e...
Comecei a rir. O que ela sabia sobre mim para alegar que era minha amiga ou coisa do tipo?
— Mas gostaria de que você me...
— Ajudasse a te ajudar. Mesmo blábláblá de sempre.
Encarei seus olhos, mas ela continuou impassível.
— Mas fica difícil se você não confia em mim.
— Por que eu confiaria?
— Porque é meu trabalho te ajudar, assim como outras pessoas.
— Se quer tanto me ajudar, tinha dito para minha mãe me tirar do inferno desse lugar e eu seguir com a porr* da minha vida sem ninguém se met*ndo nela.
— HÇŽi yún – seu tom de voz tornou-se ainda mais sério – você está doente, psicologicamente falando. Se você voltar para seu convívio social, tem o risco de...
— Se matar? – respondia com ironia – E isso não é problema meu?
Ela respirou fundo. Fechou os olhos por um segundos. Parecia tentar voltar para seu estado controlado. Depois de respirar pausadamente por um tempo, abriu e voltou a falar.
— Você só acha que essa é a solução porque sua mente está te convencendo disso – ela já em um tom sem exaltação – e a função do corpo psiquiátrico da clínica é restabelecer isso.
— Eu quero que vocês se fodam – apontei para ela – Todos vocês. Eu odeio todos vocês.
A psicóloga pegou sua agenda novamente, analisando algumas anotações.
— Você não percebe, mas a cada dia que se abre para o tratamento, está melhorando – ela continuava olhando para o caderninho e olhou para mim novamente, como se me comparasse com o que estava lendo – Sei que você não gosta tanto de se expressar com palavras, então...Você teria problema em mostrar os seus desenhos para mim?
— Por que eu faria isso?
— É só uma sugestão – ela colocou a agenda entre as pernas cruzadas – se você se sentir à vontade, claro.
— Não.
— Tudo bem, então... – ela suspirou fundo – Podemos ir para o método mais convencional. Como você se sente com o seu pai não aceitando seu lado homoafetivo?
Cerrei os olhos e sai da sala sem dizer nada, fechando a porta e indo caminhar no jardim. Caetano deveria estar vageando por lá, de peito para cima, olhando as nuvens enquanto traga um cigarro, com um livro ao seu lado para passar o tempo.
Mas não encontrei ele em lugar nenhum. Nem nos lugares que era esperado ele estar. No salão, encontrei um conhecido nosso ao qual sempre jogávamos carta no final do dia. Se não me engano, o nome dele era Roberto, mas antes que eu chegasse para falar com ele, ele notou a minha presença, parou de organizar seu jogo de tabuleiro e me olhou, com as bochechas saltadas em seu rosto.
— Boa tarde, HÇŽi yún, procurando o Caetano?
— Boa tarde. Isso mesmo, você o viu em algum canto?
— Vi – ele continuava a organizar as peças uma por uma, respeitando ao seu TOC, mas não disse mais nada além disso.
— E onde foi? Você se lembra?
— Na ala de risco – ele falava com uma curiosa paz.
Franzi as sobrancelhas, peguei a cadeira ao lado dele e continuei vendo-o organizar as peças de forma milimetricamente calculada, sem nada dizer também. Provavelmente por ainda estar repassando comigo mesmo o que tinha acabado de ouvir. Ir para a ala de risco não era, em nenhuma hipótese, sinal de coisa boa.
— Ele tentou se matar?
— Sim – ele não desviava os olhos do que estava fazendo – fez uma corda com as roupas e se pendurou. Só escutaram porque ele usou a escrivaninha para se apoiar e quando ele empurrou, ela caiu e fez um estrondo.
A ala masculina, naturalmente, era separada da feminina. Os espaços de convivência eram o mesmo, e homens e mulheres viviam juntos o tempo todo, menos na hora de dormir, por questões que não é necessário pensar muito, mas não evita que um ou outro se encontre no quarto de cada um, ou quem, assim como eu, tem preferência pelo mesmo lado, por assim dizer, não vê muitos problemas para burlar essa regra.
Por isso não ouvi ou soube do atentado de Caetano consigo mesmo. O assunto suicídio, como esperado, é tabu de ser comentado entre nós, os residentes da clínica psiquiátrica, já que, segundo o corpo que administrava o local, isso seria o gatilho perfeito para que um lugar repleto de suicidas e tendenciosos fossem incentivados por aqueles que praticaram o ato. O que não impedia de que alguém como eu, ou como tantas outras pessoas durante os dias, não tivesse uma crise e tentasse se matar, seja no seu quarto, em um lugar mais afastado ou para todos verem.
Mesmo com a ideia de que o espaço entre os que estão em tratamentos é comum para todos, sem distinção, haviam os níveis o qual você chegava. Normalmente você ficava onde eu cheguei, na área comum, onde se fica em observação e fazem o tratamento mais brando, com alguns medicamentos de acordo com a doença que eles diagnosticavam ou que iam descobrindo aos poucos, já que, usando a minha condição por exemplo, precisava de mais tempo para fechar um diagnóstico preciso, isso quando o fazem. Também tem a conversa em grupo, ao qual não participo, é incitado que nos ocupemos com exercícios ou algo voltado para a arte, para o que também dizem, manterem nosso cérebro ocupado e ajudar a ficar saudável, como um corpo sedentário que começa a ir para a academia.
Caso você se sinta melhor e não precise mais disso, é colocado em uma pequena casa do complexo para ficar o tempo necessário para que volte ao convívio da sociedade. De lá, você vai direto pra casa, mas quando em vez disso, você piora muito e começa a perder a sanidade de forma visível, você vai para o que chamam de espaço de reabilitação ao qual, segundo os que vieram de lá, faz onde vivemos na área comum um verdadeiro paraíso.
Salas acolchoadas, camisas de força, eletrochoque. Lá é o lugar que faz jus ao lugar ser, apesar da fachada de residência terapêutica, ainda assim ser um hospital psiquiátrico às escondidas. Roberto tinha ido para lá há poucas semanas porque tentou matar um homem que sentou ao seu lado. Ninguém sabe o real motivo dele ter feito isso, mas Caetano achava que era porque Roberto, em um momento de crise, acreditou que ele não estava fazendo um passo direito para comer, manchando todo o ritual ao qual Roberto tinha preparado para almoçar.
Ele falou que de lá, dava pra ouvir gritos dos quartos separados, gente batendo na grade, o zumbido das máquinas de choque, pessoas desmaiadas ou outros que não resistiam e acabavam se matando nos seus quartos e, na calada da noite, levados da clínica.
A clínica em si não era um lugar ruim, insalubre ou assustador. Por muitas vezes, sentia como se estivesse em férias forçadas em um lugar de boa aparência, mas o tal lugar era sinistro. Era considerado como a última alternativa da pessoa. Continuava a olhar para Roberto mexer em suas peças, bagunçar tudo de uma vez e recontar, tudo de novo, murmurando números consigo mesmo que só faziam sentido para a linha dele.
Não imaginava que Caetano estivesse tão mal. Ele esteve com a família há pouco tempo, amava os pais, as irmãs, a sobrinha, ria e se divertida, me fazia rir, me dizia palavras de esperança e ainda assim ter tentado se enforcar...
Como eu, ele tinha tendências para a automutilação, como chamam o ato de se machucar para expiar toda a dor que sente, normalmente por culpa, mas como no lugar não nos disponibilizavam nada cortante, quando estava em crise, procurava outros meios de sanar essa vontade excruciante. Para se enforcar com as próprias roupas, ele calculou aquilo calmamente para assim o executar. Ainda assim, continuava pensando em como achava que Caetano estava bem, e de que provavelmente em breve ele ia para a casa de repouso e sairia de lá para seguir sua vida.
Desisti de ficar ali olhando os movimentos repetitivos de Roberto, agradeci pela informação, mas ele estava muito absorto no que estava fazendo e fui para o meu quarto. Não tinha nada para fazer lá fora, a chuva começava a cair por conta do clima seco que estava dando trégua para o calor, vesti a jaqueta da Amanda e afundei nos lençóis arrumados da cama. O cheiro dela ainda estava ali. Não saía mesmo comigo usando aquilo nos últimos dias. Às vezes, achava que aquele item era a única coisa que me ligava ainda ao mundo real, aquele lá de fora.
Fim do capítulo
Comentar este capítulo:
Sem comentários
Deixe seu comentário sobre a capitulo usando seu Facebook: