O caminho da aceitação
Passar muito tempo imersa naquele mundo me fazia esquecer de que tinha um mundo diferente da rotina que levava. Um mundo que tinha as pessoas que eu gostava, as coisas que eu gostava, e que tinha deteriorado minha mente a ponto de me querer fazer acabar com a minha própria, como Caetano. Apesar de ter desistido da ideia por estar cansada de sempre dar errado por ser impedida, aquilo ainda rondava a minha mente, em um canto que poderia aparecer a qualquer momento.
Eu estava impregnada com uma maldição chamada depressão. Ela tinha se apossado da minha vida de tal forma que quando percebi, eu já estava imersa por mais que eu não quisesse, por mais que eu não desejasse, por mais que eu tivesse lutado contra. Era uma luta desigual, no qual sempre estava fadada a perder e quando eu caía no chão, derrotada, o chão me empurrava de volta para viver naquele ciclo.
Sentia meu corpo tingindo de preto, como uma gota de nanquim toca a água e mancha toda aquela superfície em que toca, espalhando-se rapidamente até deixar tudo de uma cor. Ele tinha começado com o incomodo que sentia ao meu redor, depois eu me via triste, então tão cansada que não tinha mais força para nada.
Tirei os óculos, e fechei os olhos. Na minha mente, coagida pelo cheiro que entranhava em meu nariz, eu via Amanda como na primeira vez que eu a vi. Usava essa mesma jaqueta, o cabelo com seus cachos bagunçados, a mochila a tiracolo, o olhar tímido e envergonhado de ter chego tarde.
Lembrei de Jude chegando na sala, enquanto eu ouvia música sentada em um canto esquecido da parede ao fundo e bradando contra as garotas que mexiam comigo sem parar, batendo no próprio peito para afirmar tudo o que dizia, e me olhando, deu uma piscadinha e sorriu para mim.
Veio-me na mente a minha vó, que tinha visto em um sonho o qual jurei que tinha morrido e estava no que chamavam de pós-vida. Mal me lembrava do seu rosto, só tinha a lembrança de quando eu o tocava e ela sorria de volta para mim, mas tudo pareceu tão verdadeiro, sobretudo as suas palavras.
Eu ouvindo música enquanto caminhava em uma tarde ensolarada, apenas olhando a movimentação das pessoas na rua, e como eu sentia que os raios do fim de tarde me faziam sentir completa. O barulho da chuva que batia nos cascalhos no jardim de casa, minha mãe cuidando de suas plantas, sempre bem arrumada.
A primeira vez que uma garota me tocou. A primeira vez que Amanda me tocou, e suas mãos se entrelaçaram na minha, me encarando com tanta intimidade que senti que ela não me via, mas encarava o meu íntimo, o que tinha por detrás dos meus olhos.
A livraria do seu Ivan. As idas à papelaria, em tocar o papel novo e sentir seu cheiro e sua textura entre meus dedos. Os encontros que tinha com Jude, seu horrível cheiro de cigarro misturado com perfume amadeirado, encontrar com nossas colegas de escola. Rir.
Caetano e sua sobrinha, brincando no gramado. Ela, com seus cabelos ondulados correndo em seu vestidinho florido, gargalhando enquanto ele a pegava nos braços e fazia cócegas em sua barriga. Ele e seu cheiro parecido com de Jude, mas ainda assim parecido.
Quando ele segurou minha mão e disse que tudo iria ficar bem, e eu acreditei. Só que Caetano tinha perdido seu grande amor. Um Romeu que ficou sem sua Julieta. Caetano se enforcando, sozinho, sem se importar mais com as pessoas que ficariam. As pessoas que se importavam com ele e o queriam bem.
Por um momento tive raiva dele, mas descobri que tinha raiva de mim. O que me diferenciava dele? Nada. Éramos parceiros e cúmplices por um motivo principal.
Éramos duas almas atormentadas que se acalentavam no caminho. Ele queria dar o fim à vida, e eu também. Eu também não estava me importando com nenhuma dessas coisas que estava lembrando com tanto afeto. Eu iria abrir mão de todas delas e atestando de que a mácula da minha alma tinha sucumbindo a maldição.
Um vazio na vida de todos o qual participei. Caetano nunca se curou do que sentia. Provavelmente eles também não se curariam. Provavelmente nos chamariam de egoístas, hipócritas, ou o que quer que fosse, sem entender o que estava acontecendo conosco.
Mas se estava aqui, era porque queriam resolver isso.
Não deveria ser normal sentir tanto ódio por si mesmo. Não era esperado que a pessoa tire a própria vida, um ato considerado tão extremo para uns mas que, para quem está ao lado de que faz, é apenas o fim de um caminho cruel, que pesou tanto a ponto de que quando caiu, não mais levantou.
Não é normal ter sua namorada e a família dela humilhados e expulsos. Não é esperado que seu pai te destrate e bata em você e em sua mãe. Não é normal se machucar por ter tanta raiva, e não é esperado que você não receba ajuda quando está mal.
Abri os olhos e em seguida, em um ato instintivo para criar coragem, respirei fundo.
Peguei minha prancheta e voltei para a sala da psicóloga. Estava aberta, mas não me importei. Assustada, ela se retraiu atrás da mesa onde estava. Joguei meu caderno na mesa e apontei para ele.
— Eu espero que você realmente me tire desse lugar.
E fechei a porta sem dizer mais nada. Estranhamente, me senti aliviada, como se tivesse que ter feito isso naquele momento. Como se tivesse apenas esperando aquilo. Voltei para o meu quarto, peguei meu MP3, coloquei meus fones de ouvido e fechei meus olhos, me deitando na cama.
Pelo menos, por um momento, queria fingir que estava tudo bem e eu ainda era, bem no fundo, a mesma pessoa de antes.
Fim do capítulo
Será que agora vai?
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