Gosto de pensar no começo desse capítulo com a música "Sunday Morning", do The Velvet Underground. Acho que dá o clima proprício para o que acontece.
Domingo de manhã
Era domingo de manhã e estava imersa entre o sono e o despertar quando Caetano bateu na porta do meu quarto. Tinha acabado de acordar, mas ainda assim ele me arrastou para o café da manhã, mesmo que eu ainda estivesse parcialmente dormindo.
Depois de tomar café, peguei meu material de desenho e fui para o lado de fora. Era dia de visita, e a manhã estava fria o suficiente para sair com minha camisa por cima da camiseta, como sempre gostara de usar.
A paisagem estava especialmente bela por conta do sol da manhã com o nevoeiro que não se dissipava. Caetano esperava animado pela visita dos pais junto aos irmãos, o qual queriam me apresentar.
Eu não esperava ninguém. Meu pai não iria me visitar e a única pessoa que tinha acesso a chegar lá e que sabia onde estava era minha mãe. Tinha certeza que ela não tinha avisado nem a minhas amigas onde eu estava, inventado qualquer desculpa sobre eu ter viajado para a casa de algum parente, mesmo não tendo contato com eles. Não queria vê-la, por mais que insistentemente ela fosse todo domingo, falasse sobre sua semana e depois de um longo período em silêncio, deixava algo que eu gostava e ia embora.
E a solitude daquele momento era ótima. Coloquei meus fones de ouvido e comecei a fazer o rascunho do que estava aos meus olhos. Fiquei ali, absorta pelo desenho que fazia, sem pensar nas horas que passavam. Porém, em certo momento, senti que alguém se aproximou de mim, mas nada disse. Curiosa, pausei a música que tocava e continuei a desenhar, esperando que se fosse alguém de fato, falaria comigo.
— O que está ouvindo?
Quando ouvi essa voz, larguei meu lápis no mesmo instante. Meu corpo contraiu e foi tomado por uma onda gélida. Não podia tomar uma atitude precipitada, talvez eu só estivesse tão desligada que estivesse ouvindo coisas, mas não custaria nada tirar a dúvida que corroeu de imediato meu peito.
— Amanda?
— Sim?
Puxei o ar no mesmo instante. Minhas mãos tremiam e meu ar escapava pela boca. Por mais que quisesse virar, entrei em um estado de choque tão intenso que, até que eu voltasse a mim e olhasse para trás, demandou um grande esforço.
Aos poucos virei o corpo, olhando de canto de olho, engolindo em seco. Tive medo, e fechei os olhos até que eu tivesse virado de fato para a pessoa que estava atrás de mim. Não conseguia acreditar que era ela, e quando abri os olhos, meu coração disparou.
Encaramo-nos por um longo período. Ela parecia não acreditar que eu estava ali assim como eu não acreditava no que via. Levantei, deixando o material de lado e fiquei ali parada, com os olhos arregalados, vendo se cada detalhe dela ainda estava ali. Sim, era Amanda que estava ali.
Andei até ela, que parecia tão apreensiva quanto eu. Seu sorriso tímido não era contido no largo sorriso que brotava em seu rosto, suas mãos trêmulas que iam em direção ao meu rosto, que não acreditavam no que viam, teriam que tocar pra ter certeza.
Só tive a absoluta certeza que era Amanda quando ela me tocou. Suas mãos grossas que me tocavam com tanta delicadeza, e que se encaixavam tão perfeitamente a mim, assim como seus olhos que me encaravam com todo o amor que nutrimos uma pela outra.
— Amanda...
Corri até ela, sentindo meu corpo se liquefazer em seus braços que pressionavam o meu corpo no seu abraço. Seu corpo quente e convidativo estava ali, junto ao meu, me apertando com mais firmeza contra ela, sem querer que eu fugisse.
Não pude me conter e comecei a chorar no seu ombro. Um choro audível, que ela controlava colocando sua mão na minha nuca e acariciando meu cabelo, como costumava fazer e eu, que mal me lembrava além das minhas lembranças, chorei ainda mais. O tempo naquele lugar longe das pessoas que amava havia me transformado em uma pessoa emotiva, mas pouco me importava. Amanda estava ali. Tudo nela estava ali. Seu cheiro amadeirado, sua pele quente mesmo naquele clima frio, suas mãos que me acariciavam e seu abraço que me fazia sentir que estava no meu verdadeiro lar.
— Eu estou aqui – ela segurou meu rosto e começou a beijar ele por inteiro, com sua voz trêmula e tão afável, mas ainda queria confirmar uma coisa.
Beijei seus lábios mesmo em meio a lágrimas causadas por aquele momento.
— Senti tanto sua falta, HÇŽi yún – Amanda sussurrava para mim, mas não queria deixar de beijá-la ainda assim.
— Eu também, você não sabe o quanto – sussurrei de volta para ela, que me abraçava.
Descansei minha cabeça em seu ombro, como fazia quando estávamos juntas relaxando na minha casa, ou na sua, ou depois que transávamos e caía exausta ao seu lado e vice-versa, ou depois de falar sobre tudo e ainda assim não se cansar. Ela me abraçou como sempre fez, desde a primeira vez, me fazendo sentir realmente acolhida em seus braços.
Encarei ela mais uma vez. No meio do que tinha se tornado minha vida, tinha esquecido de um dos mais belos detalhes que tinha nela, que se chamava Amanda. Ela, que era dona de um dos sorrisos mais lindos que já tinha visto, detentora dos meus mais tenros sentimentos e que me fazia pensar que, quando veio falar comigo em uma tarde qualquer no meio da aula de um cursinho que detestava, me fez sentir a garota mais sortuda de todas por tê-la ao meu lado.
*
Após ter matado a saudade que tinha do seu toque, do seu abraço, do seu cheiro e do sussurrar de sua voz próxima a minha, resolvi levar Amanda para conhecer o espaço. Mostrei onde costumava pintar no meu tempo livre, e as esculturas modernistas que tinham ali perto. Ela ouviu tudo atentamente, sem soltar à minha mão no caminho todo.
Ao chegarmos próximo do espaço de convivência, vi Caetano segurando a mão de uma garota, parecendo animado em nossa direção.
— HÇŽi yún, essa que é a Amanda?
— Sim – gesticulei para ele – Amanda, esse é o Caetano, um colega...
— Prazer em finalmente te conhecer, Amanda – ele deu um breve sorriso, cumprimentando Amanda – HÇŽi yún fala muito de você
— É um prazer conhecer você também – Amanda disse timidamente e apontou para a garotinha, que estava tímida, com o olhar escuso – é sua filha?
— Não – ele deu um riso amigável – é a minha sobrinha, Catarina. Cacá, diga oi pras tias.
A garota parecia com Caetano, e não devia ter mais do que doze anos. Com os cabelos ondulados claros que caíam sobre seus ombros indo até a cintura, usava óculos de armação grossa como os meus. Era tímida, e estava o tempo todo perto do tio, desviando o lugar. Aquele lugar estava longe de ser propício para uma criança, mas pelo que ele dizia, para ela não tinha problemas contando que visse o tio. Caetano, no entanto, deu um tapinha em seu ombro como se dissesse que estava tudo bem, e assim ela nos cumprimentou.
— Cacá é como uma filha para mim – ele assentiu com a cabeça enquanto ela se afastava de nós, voltando para a família e ele olhando para se certificar de que estava tudo bem – e vocês, pensam em ter filhos?
Amanda abaixou o olhar rapidamente, e eu ri nervosamente, o que fez Caetano gargalhar.
— Eu estou brincando, meninas – e colocou a mão no nosso ombro – agora com licença, que tenho que ouvir o sermão da minha família lá atrás.
Ele seguiu o caminho junto com a garotinha, que ia segurando a sua mão. Amanda e eu nos entreolhamos e seguimos o caminho pelo jardim, olhando as minúcias do local.
— Como você sabia onde eu estava?
— Sua mãe entrou em contato comigo – ela dizia com sua voz rouca, séria – falando que não sabia mais o que fazer.
— Ela te mandou pra me convencer a falar com ela?
— Longe disso, HÇŽi yún – Amanda cerrou as sobrancelhas – vim porque se eu passasse mais um dia sem saber de você, eu ia enlouquecer, sério.
— Não mais do que estou enlouquecendo nesse lugar – respondi com ironia.
— Pensei que estivesse melhor – Amanda dizia pesarosa, como se sua expectativa de uma iminente melhora minha fosse por terra – você até arranjou um colega por aqui...
— O Caetano é legal, me ajuda muito aqui, mas estou longe de me sentir ao menos bem, entende? – virei para olhar em seus olhos, como gostava de fazer para sentir sua presença mais íntima a minha – É como se eu estivesse só sobrevivendo.
— Estão te tratando bem aqui?
— Até que sim – dei com os ombros.
Amanda desviou o olhar para os meus braços, que ainda tinham marcas recentes do atentado que tinha cometido comigo mesmo. Engoliu em seco, e voltou a caminhar.
— Eu sinto muito a sua falta, HÇŽi yún – Amanda confessou entre os dentes, e entrelaçou os dedos contra os meus novamente – ao mesmo tempo que quero você de volta, eu quero você bem.
— Não sei se ficarei bem, Amanda... – respondi de forma taciturna, e ela me olhou apreensiva.
— É claro que você ficará bem – ela dizia séria, pausadamente, como se chamasse a minha atenção – Tenho muita fé na sua melhora. Você está em todas as minhas orações, inclusive na novena.
Concordei sem nada dizer. No quesito religioso de Amanda, não tinha no que intervir, afinal nada conhecia daquilo.
— Mas também acredito que os médicos entendedores vão te ajudar – Amanda continuou séria – eles já sabem mais ou menos o que está acontecendo contigo?
— Depressão – continuei sem falar com a devida importância – ou coisa assim.
Amanda parou por um momento antes de continuar a falar.
— É o que faz você se machucar? – Amanda dizia com tristeza.
— Segundo a psicóloga tem uma série de fatores que leva a eu fazer isso, só que isso só agrava.
— Essa psicóloga ajuda você com isso?
— Não, ela enche a porr* do meu saco todo dia. Essa é a função dela.
Amanda ficava acuada quando usavam palavrões na sua frente, mas entendia a minha frustração. Levantou os dedos até o meu rosto e acariciou meu rosto com o polegar.
— Você é a pessoa mais bonita que eu já conheci em toda a minha vida – Amanda falava com a voz suave, parecendo estar envolta e levada por uma espécie de sentimento etéreo – Tenho muita sorte em ter você na minha vida, ainda mais sendo a minha namorada.
Senti meu rosto queimar instantaneamente. As palavras de Amanda, sempre tão simples e sinceras, faziam meu corpo derreter não importasse a situação, e antes que notasse, ela segurou minhas mãos contra o seu peito, a ponto de que pude sentir seu coração batendo rápido.
— Eu te amo HÇŽi yún, e tenho certeza de que você vai passar por isso, e eu estarei ao seu lado em todo esse trajeto.
Não queria responder à Amanda porque não tinha palavra à altura para o que eu sentia quando ouvia sua voz proferindo palavras tão bonitas para mim. Por mais que eu sentisse que não era merecedora disso, ao mesmo tempo me sentia a pessoa mais grata do mundo em ter ela ali, falando aquelas coisas, afirmando de que estaria ao meu lado quando nem mesmo eu estava do lado do meu.
Amanda via meu lado bom e ruim em todos os seus extremos, como nunca tinha mostrado à ninguém, mas ainda assim estava lá. Ela permanecia ali, segurando minhas mãos contra o seu corpo, me fitando com seus singelos olhos, com a inocência que por muitas vezes só ela tinha.
Aquilo mexia tanto comigo, em engrenagens sentimentais que estavam travadas, que segurei seu rosto e a beijei, sem dizer nada antes. Amanda me beijava com tamanho sentimento que sentia que meu coração fosse sair do meu peito, como na primeira vez que nos beijamos há um tempo que parecia ser em outra vida, mas em todas elas, ela estaria comigo.
Passamos a tarde como gostávamos de passar. Desenhei um pouco com ela ao meu lado, que falava de como estava sendo sua vida fora dali, no trabalho, na escola, das desventuras de Luiza e Judite, que tinham brigado na frente da escola e Amanda acabou virando a ponte para apartar a briga, de que tinha saído para comer com os pais, ou de que tinha saído para pedalar com os amigos do seu bairro e tomar sorvete na esquina como não fazia há tempos.
Deitamos no gramado, em cima da esteira que o local disponibilizava caso quisesse tomar sol, e nos encaramos por um longo tempo, debaixo das árvores, sentindo o clima frio que fazia e o vento que batia, com Amanda dando um largo sorriso vez ou outra ou me beijando, exatamente como eu lembrava dos nossos momentos a sós, ou até mesmo melhor, já que ela estava ali, e eu estava experienciando tudo aquilo.
Depois fomos comer, e encontramos Caetano e sua sobrinha novamente brincando de amarelinha. Amanda também se met*u na brincadeira e me levou no meio, revelando que eu era um verdadeiro desastre em brincadeiras infantis. Com a sobrinha exausta dormindo no colo da mãe, fomos caminhar para que ele acendesse seu cigarro, o primeiro do dia, e nos interrogasse com perguntas bastante pessoais.
O fim da tarde chegou, e com ele o final das visitas. Caetano despediu-se de sua família, beijando a testa da sua sobrinha que ainda dormia, não quis a acordar. Eu e Amanda nos abraçamos por um longo tempo, e depois que nos beijamos, ela se despediu prometendo que voltaria na outra semana.
E me vi sozinha novamente e, vendo que eu ainda encarava a porta por onde Amanda tinha saído, Caetano deu uma batidinha no meu ombro. Usava uma pulseira de continhas no pulso, provavelmente dado por sua sobrinha.
— Ei, HÇŽi yún, como está se sentindo?
— Acho que até bem. Pelo menos por agora.
— Ela é uma boa garota – ele assentiu indo ao meu lado – gostei bastante dela.
— É, ela é uma boa pessoa – dei um sorriso tímido, e ele voltou para mim, cruzando os braços.
— Sabe, HÇŽi yún, eu sou um péssimo amante, mas sei reconhecer um amor genuíno só de ver – ele olhava para os próprios pés, desviando o olhar para o meu lado.
— E acha que é o meu caso com a Amanda?
— Não acho – ele deu um riso contido – tenho certeza. Pode apostar que vocês vão se casar no final das contas e terão uma linda criança.
Revirei os olhos, sorrindo comigo mesmo. Caetano tinha um idealismo para certas coisas que me fazia ter inveja dela por várias vezes, e essa era uma.
— Claro... – respondi com desdém, o que fez ele continuar rindo.
— Vamos dar uma volta lá fora antes do jantar – ele apontou para fora – eu adoro ficar com a Cacá, mas confesso que passar o dia inteiro e fumar só um cigarro está me matando...
Dei com os ombros, aceitando o convite. Não tínhamos nada melhor para fazer naquele lugar além de conversar e passar o tempo enquanto não estávamos em conversas comunitárias, sessões de terapia, exercícios físicos e medicamentos tarja preta. A noite era fria, sem estrelas ou luar. Dividi um cigarro com Caetano e não trocamos mais palavras. Gostávamos de compartilhar o silêncio um do outro, principalmente depois de um longo dia. Voltamos para o jantar e logo que terminamos, nos despedimos apenas com um gesto da cabeça.
Entrei no quarto, e vi o que Amanda tinha deixado comigo. Sua jaqueta, que tinha seu cheiro marcado e um livro, provavelmente mandado por seu Ivan, já que era um título que ele tinha me recomendado há pouco tempo. Coloquei a jaqueta de Amanda, suspirei fundo e me deitei na cama, debaixo das cobertas, e peguei o livro para começar a leitura.
Tudo dela ainda estava ali, sem vestígios de que iria embora. Seu cheiro impregnado, tão marcante, que me fez suspirar uma ou outra vez mais para sentir ele mais uma vez. Usar sua jaqueta, a mesma que ela costumava usar durante os dias que nos conhecemos, era como voltar a um pedaço da minha vida que tinha esquecido que existia. As partes boas que tinham nela, as pequenas coisas as quais te tiram sorrisos bobos e boas lembranças que te aquecem como a jaqueta de Amanda fazia ali comigo. Era como estar, mais uma vez, abraçada aos seus braços e descansando neles e, vencida pelo cansaço do dia tão divertido como há tempos não tinha, e envolta nas boas memórias que me apareciam e sem perceber, acabei dormindo.
Fim do capítulo
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