Passei horas e horas pensando em tudo que foi dito pela Dra. Miller, por mais que tentasse me sentir indiferente sobre a condição daquela mulher, eu não conseguia, simplesmente não conseguia deixar de me importar com os ferimentos, as dores e a história de vida daquela desconhecida.  Sinto que preciso ajuda-la, não consigo me livrar da imagem do seu corpo inerte quase sem vida, a necessidade de saber mais sobre ela é quase insana, e por mais que eu tente me livrar disso, esse pensamento está agarrado em minha mente de uma forma inexplicável. 

Assim que sai do hospital fui até minha loja, uma floricultura modesta perto do centro da cidade, minha sócia Jennie andou segurando as pontas essa manhã, ela é muito habilidosa com questões administrativas. Temos um bom espaço, e equilibramos bem nosso negócio, nossas flores são conhecidas por sua beleza e originalidade. No primeiro andar fica a loja em si, no segundo o escritório de Jennie, nós importamos e exportamos flores. Temos nosso próprio campo na Holanda, fico a maior parte do tempo na estufa e laboratório, sou botânica estou sempre estudando uma forma de deixar as flores mais bonitas e duráveis, meu ambiente de trabalho é o lugar mais confortável para mim, além da paz que só encontro aqui, tem esse cheiro único e acolhedor. Jennie costuma dizer que me esqueço do mundo lá fora enquanto estou aqui dentro, bem, ela tem toda razão. 

— Emma, você demorou. — O tom de voz de Jennie denuncia sua preocupação exagerada. 

— Fui ao hospital, eu atropelei uma mulher ontem e…  

— Michael me contou e também disse que você desligou na cara dele. Emma, acredito que ele tem razão, você já fez tudo que era possível, devia esquecer essa história. — Reviro os olhos, é bem típico do Michael correr para Jennie, é aquela velha tática de trazer a melhor amiga da sua noiva para o seu lado, isso sempre facilita as coisas para ele, mas dessa vez não cederei. 

— Não vou esquecer, na verdade, continuarei indo ao hospital até descobrir quem aquela mulher é! 

— Você sabe que Michael não irá gostar. 

— Isso é problema dele, eu realmente não me importo.

Jennie finalmente desistiu de tentar me convencer, pelo menos por enquanto. O resto do meu dia passou lentamente, trabalhei como sempre e não sai para almoçar, recebi uma mensagem de Paige informando o estado de saúde da Mulher Mistério, combinamos que ela faria isso diariamente, segundo Paige seu estado ainda não havia mudado, ela continuava em coma induzido, mas pelo menos não apresentou nenhuma piora, seria um processo de recuperação lento. 

Cheguei em casa por volta das 19:00 da noite, Dome estava jogada no sofá vendo uma de suas séries lésbicas favoritas, ela adora tudo que se referente ao amor entre mulheres e preza acima de tudo o realismo empregado nas cenas de sex*. Sentei na poltrona ao fundo e comecei com minha sessão de suspiros, primeiro um leve, depois um mais demorado, porém não ganhei sua atenção, por fim apelei aos suspiros dramáticos. 

— Emma, suponho que você está querendo conversar. 

— Como adivinhou? — Dome revira os olhos e diminui o volume da TV. 

— Fala logo! Conte tudo para a mamãe aqui. 

— Fui ao hospital hoje, falei com a Dra. Paige e…

— Dra. Paige? Ela perguntou por mim? 

— Não, Dome. Ela nem deve lembrar que você existe. 

— Hey! 

— Será que posso continuar? — Ela balança a cabeça positivamente. — Paige me contou algumas coisas sobre nossa Mulher Mistério, disse serem informações que deveriam ser passadas apenas para familiares, mas como ninguém apareceu até agora e eu sou a única que realmente se preocupa com a moça ela resolveu falar. 

— O que ela disse? 

— Que Mulher Mistério foi torturada, que seus ferimentos mais graves não foram causados pelo atropelamento. Ela teve a pele dos dedos arrancada. 

— How… How… Espera, espera. Acha que ela pode ter sido vítima de algum maníaco? 

— Não se sabe nada a respeito dela, absolutamente nada. Ainda estão à procura de parentes. 

— Bem, e se não encontrem ninguém, e se ela não acordar? 

— Não sei Dome, mas farei o possível para ajudá-la, eu sinto que devo. Apesar de Michael e Jennie não apoiarem essa ideia. 

— Você deve fazer o que seu coração julga ser certo, Pi. 

— Meu coração diz que preciso ajuda-la. 

— Então ajude! 

— Obrigada Dome, você é uma ótima conselheira.

— Sou ótima com palavras e com a boca, e com as mãos e com os dedos e…  

— Chega! — Dome cai na gargalhada me levando junto, mas do nada ela para e fica séria. 

— Ela não perguntou mesmo por mim? 

— Quem? 

— A Dra. Gostosa.

— DOME! 

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Oito semanas haviam se passado desde o ocorrido, e as coisas permaneciam praticamente as mesmas, eu deixei de ir ao hospital diariamente, primeiro a Mulher Mistério permanecia na UTI e não era possível fazer visitas, segundo eu não era parente ou possuía qualquer vínculo com ela e isso também me impedia de visita-la. Paige continua me mantendo informada sobre suas grandes e pequenas melhoras. Apesar de todo esse tempo, nenhum parente apareceu, é como se ela não tivesse ninguém no mundo. 

Seguia minha vida normalmente, às vezes me pegava pensando nas palavras que diria a Mulher Mistério, quando ela finalmente acordasse, queria que fossem palavras de apoio e que passassem segurança.  

Nas últimas duas semanas precisei prestar depoimentos a polícia, contei e recontei os acontecimentos daquela fatídica noite. Dome acredita que não terei problemas, o fato de ter sido surpreendida por uma estranha que se jogou em cima do meu carro acabou sendo uma boa defesa. A polícia praticamente me dispensou e agora, assim como eu, espera ansiosamente a bela adormecida acordar para obter respostas. 

Michael chega de viagem hoje, o vi poucas vezes nas últimas oito semanas, ele continua com suas viagens e responsabilidades da empresa. Sairemos para jantar, Dome inventou uma viagem de última hora para sair de casa, os dois não se suportam. Sai mais cedo do trabalho e agora estou na frente do closet dividida entre um vestido preto frente única que vai até o joelho e um branco de alças finas que vai até metade das coxas. Decido vestir o preto, suponho que o branco merece uma ocasião mais especial. Escolho um salto também preto, faço uma maquiagem com tons mais fortes para evidenciar meus olhos e para os lábios um batom avermelhado.  As 20:00 em ponto ouço a campainha, ao abrir a porta me deparo com um Michael sorridente e bem-vestido. 

— Oi amor. — Ele me abraça e me dá um leve beijo.

— Como foi a viagem? 

— Muito proveitosa, conduzi negócios importantes. Conto tudo durante o jantar. O que acha de comida francesa? 

Michael adora comida francesa, ele está sempre procurando um restaurante francês novo para ir, acho que já fomos em praticamente todos da cidade. Apesar de também gostar da culinária francesa, fico imaginando fazer algo diferente, como, por exemplo, comer cachorro-quente em um parque de diversões, mas acho que essa ideia deixaria Michael enjoado. Como sempre comemos a sofisticada comida da França, bebemos o sofisticado vinho da França e até sentamos em cadeiras vindas diretamente da França. Michael me contou de suas reuniões, de seus contratos e de seus novos investidores. Depois voltamos para casa, fizemos sex* por 30 minutos e ele dormiu com uma expressão de satisfação no rosto a qual não cheguei a sentir, mais uma vez foi frustrante, resumindo foi como sempre. 

Acordei ouvindo o toque de chamada do meu celular, me levanto rapidamente, pela hora deve ser Jennie, apenas ela me liga tão cedo, mas ao pegar o aparelho me deparei com o nome de Paige, geralmente ela me manda mensagens, meu coração começa a bater rápido. 

— Alô?

— Oi Emma. Acordei você? 

— Não, não… — minto 

— Bem, só liguei para avisar que a Sua Mulher Mistério já foi transferida para o quarto. 

— Sério? Quando? — Mal consigo conter meu entusiasmo. 

— Ontem, mas só consegui avisar hoje. 

— Posso vê-la? 

— A regra sobre somente visitas de parentes ainda é válida. 

— Então nada mudou. — Digo desanimada. 

— Sabe Emma, o hospital tem um projeto que recruta voluntários para ajudar pessoas em coma. Funciona assim, quando o paciente está em coma e não tem familiares que possam passar o tempo todo com ele o hospital encaminha um voluntário para fazer companhia para essa pessoa, é muito importante conversar com eles, isso estimula o cérebro do paciente. 

— Paige do que está falando?  

— Estou apenas dizendo que você devia se informar sobre esse maravilhoso projeto, mas para todos os efeitos você não soube disso por mim. Ok?! 

— Ok! Obrigada Paige. — Digo sentindo o ânimo voltar. 

Me despedi de Paige e corri para banho, em menos de 20 minutos já estava vestida com jeans e um suéter vermelho, pois o dia está frio. Deixei um bilhete para Dome, mas não contei toda a história, falaríamos disso pessoalmente.  Passei rapidamente em Suzane para o café da manhã. Minutos depois já estava na recepção do hospital perguntando onde poderia me inscrever para o trabalho voluntário. Após provar que não era uma psicopata e passar por uma entrevista acabei sendo aceita no projeto “Seja o Anjo de alguém ". Todos estranharam minha pressa em começar as visitas, mas acreditaram que eu estava sendo movida pelo amor ao próximo. Uma enfermeira simpática de aproximadamente 50 anos, chamada Penélope me apresentou uma lista contendo o nome, estado atual e gravidade do coma sofrido, meus olhos foram diretamente para o código 478, todos os pacientes tinham seu nome e sobrenome naquela folha, então 478 só poderia ser a Mulher Mistério.

— Eu escolho esse. — Mostro o código. 

— Boa escolha, ninguém da família apareceu até agora, acho que de todos aqui, ela é que mais precisará de companhia. — Penélope diz animada. — Venha comigo. — A sigo por enormes corredores, até chegarmos a porta de um quarto. — Emma, procure conversar normalmente, sem medo ou insegurança, é importante que você traga alegria para essas pessoas. Entende? 

— Sim, farei de tudo para que ela se sinta bem. — Por fim Penélope abre a porta do quarto. Observo o ambiente até que meus olhos encontram o corpo inerte da Mulher Mistério, em seu rosto nada de manchas de sangue ou hematomas como da última vez. Agora ela parece dormir tranquilamente, enquanto a mim não consigo evitar a surpresa ao descobrir a quão bonita ela é. 

Fim do capítulo