Eu quero ser...sua namorada
As coisas pareciam estáveis, mas ao mesmo tempo não estavam. Ficar com Amanda no seu tempo livre e aos poucos voltar a desenhar me faziam ocupar a cabeça, mas aquela sensação de que ainda havia uma coisa de errado me perseguia lá no fundo, quando minha mente ficava sem as distrações que eu criava para ela.
Meu pai fingia que não existia. A melhor forma de evitar seu fracasso como pai e provedor de suporte de uma casa era ignorar, segundo o que mostrava sua atitude e minha mãe ao mesmo tempo que se mostrava solícita procurava se manter distante, do seu jeito dual de sempre.
Eu já havia desistido da ideia de fazer a faculdade de Direito, de qualquer forma, e ao menos isso a minha tentativa tinha trazido de bom: com medo da minha provável recaída e a culpa que isso traria para as costas daquele que provocava, até mesmo meu pai acatou a situação, mesmo a contragosto, o que me tirou um sorriso interno.
Estava na varanda, olhando para a tarde quente que fazia naquele dia. As folhas das árvores balançavam no ritmo do vento assim como algumas folhas secas caíam sobre o gramado verde, sempre bem cuidado pela minha mãe. Um passarinho cantava longe quebrando o silêncio que ali fazia, deixando o clima perfeito para que eu emergisse em meus pensamentos, coisas que pouco deixavam desde o acontecido.
O futuro agora me parecia disforme até o ponto de parecer inexistente. Eu queria me ater a ideia de que as coisas iriam melhorar aos poucos, mas ali, não parecia que isso iria acontecer, por mais que eu tivesse o suporte que tenho.
Olhei para as cicatrizes do meu braço. As antigas, as maiores e as recentes. Evito olhar para as que tem na minhas pernas já que são as piores. Uma chateação que essa condição me causava era que das duas, uma: ou eu queria trans*r desesperadamente para tentar suprir o formigamento que tem no meu peito ou eu passava semanas sem conseguir me sentir excitada. Afinal, não há como se sentir excitada se a vida é opaca e sem cor.
Eu estava no momento de não sentir libido de nenhuma forma; nem desenhando, nem ouvindo música e nem quando aqueles braços fortes me envolvem em um abraço apertado e sinto o ar quente que sai da sua boca roçando em meu ouvido de uma forma tão doce que me derreto ali mesmo.
Tinha medo de falar o que sentia para Amanda, já que não sabia explicar como é que eu gostava dela a ponto de dizer que a amava, mas eu simplesmente não tinha amor por mim mesmo. Parecia semanticamente e logicamente impossível, mas era a verdade, e ela sempre vinha com aquela cara parecida a de um cachorro triste e me abraçava, dizendo que tudo ia ficar bem. Meu receio era de dizer que eu sentia que não ia ficar bem e ela entrar em uma crise e se forçar a resolver as coisas quando elas não têm como serem resolvidas por ela, apenas por mim. E esse era o maior problema.
Toda a vez que ela se deitava ao meu lado e eu sentia o nó dos seus dedos correrem pelo meu rosto, acariciando-me, sentia meu peito se aquecer e a vontade de ficar em seus braços só aumentava, mas ao mesmo tempo eu queria me afastar dela por me achar suja e insuficiente, e que sua vida seria melhor sem uma pessoa como eu ao seu lado.
As pessoas, em sua maioria, pensam que só porque você saiu vivo da situação que as coisas vão se resolver porque de uma hora para a outra, você vai perceber o quão a vida é linda e maravilhosa. Sentia raiva de mim por não conseguir sentir isso.
Então a tarde passou como um borrão, como todas as tardes eram, e fui tentara me arrumar para sair com a Amanda, que mais cedo tinha me ligado para falar que queria sair comigo para dar uma volta. Encontrei-a na pizzaria aonde tínhamos combinado e depois de comermos e conversamos, caminhamos um pouco pelo centro da cidade, que estava relativamente movimentado.
— Obrigada por ter me trazido para passear, Amanda – comentei enquanto entrelaçávamos nossos dedos – Estava precisando.
— Falou para seus pais que não vai fazer o vestibular? – ela perguntou receosa, temendo no que levaria a aquele assunto.
— Sim – dei os ombros, parecendo não me importar com o resultado – Meu pai reclamou, mas minha mãe não disse nada.
— Isso é bom, não? – ela deu um sorriso amigável – Significa que pode estudar mais para o teste que você quer.
— Pra ser sincera, Amanda, eu não ando com ânimo para nada...
— Continua com aqueles problemas em casa?
— Sim, mas não é só isso, eu acho.
— Sabe que pode ficar em casa quando quiser – ela falava com firmeza, trazendo sua mão junto a minha para perto do seu peito – Sempre será bem-vinda.
— Não quero te atrapalhar mais do que já estou fazendo...
Amanda parou e me encarou séria. Quando ela fazia isso, costumava fazer um biquinho para frente, deixando claro sua chateação.
— Não sei de onde está tirando que me atrapalha, Hǎi yún.
— Deve ser porque tentei me matar e deixei todo mundo preocupado desde então.
— Sinal de que nos importamos com você – ela agora tinha um olhar suplicante – Você ainda cogita alguma coisa?
Suspirei fundo. Não queria tocar nesse assunto, mas não tinha como não ser transparente com Amanda, principalmente da forma que ela me olhava ali.
— Amanda, minha vida não mudou. Eu vou continuar não sendo aceita pelo meu pai que agora tem certeza que sou um erro, nunca vou ter seu reconhecimento em nada que eu fizer...
— Então é ele que não reconhece a filha incrível que tem – Amanda dizia animosa – Porque tenho certeza que se ele te visse da mesma forma que eu te vejo, veria a grande mulher que você é e que eu me apaixono todos os dias.
Odiava quando ela transparecia seus sentimentos assim. Quase sempre me fazia chorar de tão leve que eu me sentia depois, como me sentia ali ao vê-la se aproximar de mim e beijar meus lábios com ternura e se afastar devagar, voltando a segurar minhas mãos.
— E é exatamente isso que você é.
— Droga, Amanda... – tentava enxugar uma lágrima que insistia em querer descer – Você sempre me deixa sem palavras.
Caminhamos por mais um tempo, e paramos em meio a uma pequena praça que ficava em frente a bares populares e animados, sentando em um dos bancos enquanto encarávamos as pessoas que conversavam ali em seus grupos, e outras que caminhavam pela calçando no que Amanda passava o braço pelo meu ombro, trazendo-me para próximo dela em um gesto protetor ao qual me aconcheguei em seu ombro.
— É que viver de aparências dói.
— O que te faz achar isso?
— É difícil fingir ser uma coisa que não sou. Que não sou lésbica, que não me envolvo com garotas, que quero seguir com os negócios do meu pai, que não sinto a falta deles, que tenho certeza do que faço, essas coisas...
— Hǎi yún – Amanda acariciava meu cabelo – Acho que você se cobra demais.
Dei um sorriso sarcástico, como se risse de uma piada interna que tinha feito comigo mesmo.
— Você tem razão, mas não sei outro jeito de viver. Infelizmente, foi como aprendi a viver minha vida.
— Mas você não gostaria de mudar isso?
— Nossa – balancei a cabeça devagar, assentindo – Com certeza, me sentiria bem melhor.
Então houve uma pausa. Amanda olhava séria para a frente, e senti seu corpo se aquecer e mesmo com a pouca iluminação do local, vi que suas bochechas coravam. Ela respirou fundo e pressionou os lábios como se saísse de um transe e, ao fazer aquilo mais algumas vezes, como se preparasse para algo grandioso da menina em que falasse, disse em um sussurro:
— Eu...espero poder te ajudar nessa mudança, como eu puder.
E enfiou a mão no bolso, tirando um pequeno embrulho.
— Trouxe uma coisa para você – ela dizia nervosa – Pode abrir se quiser.
Encarei-a curiosa, e abri o pequeno embrulho. Nele estava duas pulseiras iguais e no papel, estava escrito uma frase que mal dava para ler, mas que trouxe para perto dos meus olhos.
“Se somos retas paralelas, eu esperaria até o infinito para encontrar você.”
Li aquilo mais uma vez. Amanda ansiava para alguma resposta, e eu encarei aquelas pulseiras novamente. Eram daquelas feitas por alguém a qual teve todo o cuidado com ela, era perceptível. Imaginei que era Amanda se aventurando nesse meio com os materiais de trabalho de sua mãe.
Olhei-a com seriedade, o que fez seu sorriso ansioso se tornar uma feição séria com certa tensão. Agora eu suspirava fundo, mitigando o que falaria.
— Amanda, eu tenho tanta raiva de você que...
— O que fiz de errado? – ela disse urgente, e comecei a rir, e vi que a lágrima que queria fugir acabou dando caminho para outras – Ficou ruim?
— Você me fez sentir a mulher mais feliz do mundo agora – disse ainda rindo, olhando para o pequeno embrulho e seu conteúdo em minhas mãos, deixando-a ainda mais confusa, mas que ria do mesmo jeito.
Então eu a segurei pela gola de sua camisa e a puxei para beijá-la com tanto afinco que a assustou de primeira, mas logo senti suas mãos passando por minha cintura e me beijando ainda mais.
— Eu espero que isso signifique que estamos oficialmente namorando – disse, com um sorriso sugestivo no rosto.
Amanda ficou corada, com o rosto em um tom de vermelho vivo e os lábios pressionados, encarando o chão. Não me contive em rir de ver sua timidez tão evidente ali, respondendo positivamente a minha sugestão.
— Isso foi perfeito, assim como você.
Ela deixou escapar um sorriso tímido, mas animado ao me encarar de volta. Passamos mais um tempo ali abraçadas e envolvemos aquela singela pulseira nos nossos pulsos, e quando ela me deixou na frente de casa, depois de um longo abraço, nos beijamos de forma lasciva e notoriamente apaixonada. Eu estava flutuando, e ver seu sorriso tão próximo de mim me deixava ainda mais.
Ao chegar em casa, vi risos indiscretos vindo da sala de pessoas que não conhecia e quando me aproximei, vi minha mãe bebendo animada com um homem bem vestido, que parecia bem à vontade comendo uma bandeja de frios que ela mesmo deveria ter montado.
— Hǎi yún – ela disse se levantando e trazendo a taça de vinho consigo e me conduzindo até aquele homem, que também se levantou sorrindo – Esse é o Daniel, um colega de trabalho.
Cerrei os olhos e o cumprimentei.
— Sua mãe fala muito de você, Hǎi yún. É um prazer conhece-la.
Assenti com a cabeça e a encarei novamente. Fazia muito tempo que não a via animada assim e, levando em consideração toda a situação, resolvi os deixar ali e seguir para o meu quarto, sem questionar aquela cena. Depois de trocar de roupa, afundei entre as cobertas e me deixei levar pela onda boa de pensamentos que meu encontro com Amanda tinha me trazido, e eu encarava aquela pulseira ali amarrada, tão tímida como a pessoa que tinha me dado e ainda assim, tão significativa.
Resolvi ligar para Amanda para saber como ela estava mesmo imaginando que ela estaria dormindo ou estudando, mas ninguém atendeu, então resolvi dormir.
No entanto, pela manhã, havia uma ligação do número que Amanda costumava usar logo cedo. Quando retornei, ouvi a voz de sua mãe.
— Hǎi yún, minha filha... – sua voz estava cansada e ao mesmo tempo angustiada. Pensei o pior.
— O que aconteceu, dona Maria?
— O Arnaldo, ele...Ele passou mal de madrugada, daí levamos ele para o hospital. Estamos aqui desde agora, por isso ninguém lhe atendeu.
— Não se preocupe com isso – respondia séria, procurando a roupa para trocar – Ele está melhor?
— Não sei te dizer, minha filha. Não pudemos entrar lá onde ele está... – ela pausou um pouco antes de retornar a falar – Minha filha, eu sou uma pessoa de ferro e tenho muita fé no nosso Senhor Jesus que o Arnaldo vai ficar bom logo, mas a Amanda tá muito triste, tá muito abalada. Tá lá na igreja desde cedo rezando....É só o jeito dela de forte, mas ela é frágil para essas coisas.
— Só vou me arrumar e já estou indo para lá.
— Você pode ir mesmo, minha filha? Ela nem comeu nada, nem foi trabalhar, seria tão bom você ir lá conversar um pouco com ela...
— Não se preocupe. Estimo melhoras para o senhor Arnaldo desde já.
— Obrigada, minha filha, até logo – e desligou.
Fim do capítulo
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