Venha para casa
Era estranho voltar para casa, já que nem pensava que voltaria e meu quarto, como imaginava, estava interditado até que arrumassem tudo e se tornasse, como minha mãe dizia, apropriado para minha condição, e isso incluía limpar toda a bagunça que tinha feito e trocar por outra.
— Hǎi yún – disse Jude me passando o balde de pipoca. Ela fazia a função de reparar em mim durante os próximos dias. Recomendação médica.
— O quê?
— Não acha que deveria procurar um psicólogo? – ela mastigava com a boca entreaberta, assistindo a série que passava na televisão.
— Psicólogo?
— Sim, para ajudar a arrumar o emaranhado que está na sua cabeça.
— Minha mãe disse que não preciso – dei os ombros, pegando algumas pipocas com a ponta do meus dedos – Que foi só uma situação de estresse.
— Cara, você retalhou seus braços – ela apontava com a pipoca em minha direção antes de comer – Encontrou seus antepassados e tudo, e a tia me diz que isso é stress? Não é, Hǎi yún.
— Então o que seria?
— Acho que você está profundamente deprimida – ela me encarava com seriedade – E isso adoeceu sua cabeça.
— Deprimida é meu estado normal.
— Mas não deveria ser – ela se aproximou de mim, passando a mão pelo meu ombro – Não normalize uma coisa que não deve ser.
— Por que além de gay eu tenho que ir pra camisa de força – dizia com ironia – Perfeito. Meus pais vão adorar isso.
— Hǎi yún, a Julia faz terapia, e ela não é gay e se dá bem com nossos pais. Eu sou gay e brigo com meus pais direto e não frequento, então?
— Mas volta com sua ex maluca, que é a mesma coisa que se matar – retruquei em tom irônico do mesmo jeito.
— Não confunda isso com carência, e falando nisso – ela voltou para a posição onde estava – E a Amanda?
— Chega daqui a pouco. Quer que eu passe o final de semana na casa dela.
— E você vai? Claro, né?
— Ela quer me levar pra missa, Jude – dizia com certo sarcasmo – Acha que vou me sentir melhor lá.
— Deixa de ser chata, Darium – odiava que ela me chamasse assim – Ela faz isso porque é o que deixa ela bem, e quer que você se sinta melhor.
— Com que cara eu vou entrar em uma igreja, Judite? – jogava a pipoca em cima dela – Eu nem sei como funciona aquela ritualística.
— O máximo que pode acontecer é jogarem água benta em você – ela deu com os ombros – A parte da fogueira ficou no passado. E outra...
— O quê?
— Depois ela pode te dar uma benção no privado, se é que me entende – e arqueou as sobrancelhas, sugestiva.
— Nossa – tentava controlar meu riso – Jude, você é horrível.
— Vejo o lado bom da coisa sempre. Vá, Hǎi yún, ao menos pra se distrair um pouco – ela voltava a comer a pipoca, olhando para a televisão – Os pais dela gostam de você, tenho certeza que vai se sentir melhor.
— Eu tenho vergonha de toda a situação.
— Eles já não sabem? – ela olhava com um tom óbvio – Então pronto, não complica as coisas.
Suspirei, e voltei a olhar para a televisão.
— E seu pai, cadê?
— Não quis voltar para casa – disse em tom distraído – Fala que é muita coisa pra ele absorver, e prefere que minha mãe resolva isso. Mas deve estar voltando semana que vem, falou que quer conversar comigo.
— Vai te levar pra China com ele, suponho – ela se aproximou de mim – Não vou deixar, está ouvindo?
— Não vou pra canto nenhum, Jude – revirava os olhos, voltando a olhar para a televisão.
O interfone tocou.
— Pelo visto, só pros braços de uma certa garota – ela ria, levantando-se – Vou lá abrir pra você, e enquanto isso, vai se familiarizando com o Canção Nova[1].
— Desculpe, prefiro ver profanação entre mulheres[2] – levantava as sobrancelhas sugestivamente, olhando para a tela.
Amanda chegou e com ela, um sorriso largo vindo até mim para me abraçar e consequentemente, beijar meu rosto.
— O que vocês estão assistindo? – Amanda cerrou os olhos e ao perceber, ficou assustada, dando um passo para trás – São duas mulheres...?
— Dando uns pegas? – levantei uma das sobrancelhas – Sim.
— Onde você conseguiu isso? – ela ficou constrangida, com o rosto vermelho, sentando-se ao meu lado – Nem sabia que existia.
Ela começou a assistir televisão conosco, mas nas partes mais íntimas, ela desviava o olhar.
— Amanda, você tá com vergonha de quê? – Jude dizia passando a pipoca pra ela – Não precisa ter vergonha de nós.
Amanda abaixou a cabeça, ainda mais constrangida.
— Ver é uma coisa totalmente diferente – ela dizia ainda tímida.
— Mas fazer é bom, não é? – ela levantou as sobrancelhas mais uma vez.
— Jude, para de importunar a Amanda – disse em tom sério.
— Eu não estou...
— Eu prefiro ouvir – ela respondeu, levantando a cabeça, surpreendendo-nos.
— Por essa eu não esperava, Amanda – Jude apontou para ela, animada – Você é das minhas, gostei de ver.
Ela deu os ombros, olhando para mim tomada pela vergonha, mas, ainda assim, tomou minha mão com a sua, entrelaçando seus dedos ao meu.
*
Estar com a família da Amanda era uma situação no mínimo, inusitada. Eu tentava me manter séria, mas tinham situações que eu achava engraçadas, sobretudo a respeito das feições que as pessoas tomam quando estão naquele lugar.
Amanda se mantém séria, recitando a missa inteira consigo e sua mãe do mesmo jeito, com até mais afinco e emoção. André era um fervoroso frequentador, a ponto de tocar na missa, mas a contragosto, tinha ficado para trabalhar. Amanda dizia que ele era professor de eucaristia ou algo assim, e que seu sonho era ser padre, mas que acabou se perdendo no meio do caminho. Seu pai não era um frequentador nato, e preferia ficar fazendo o almoço, mas que na outra semana, sem falta, iria. Amanda dizia que não precisavam ir pra missa para a igreja estar em nós. Não entendia bem o conceito, mas concordava.
E emoção era o que gerava tudo aquilo: olhar para aquela imagem crucificada, sangrando com uma coroa de espinhos não me causava comoção, mas sim desconforto. Como podia adorar uma imagem que estava notoriamente sofrendo? Amanda dizia que era um sinal para não esquecer de que ele morreu por todos nós. Admiro Jesus por ter se sacrificado por pessoas que o apedrejaram e ainda dizer que as amava. Será que ele me amava mesmo que eu nem me amasse? Amanda dizia que ele nos amava sem distinção de nada, só amor, mas que as pessoas distorciam o discurso. Também dizia que ele me conhecia mais do que a mim mesmo, e que por isso ele ia me ajudar.
Jesus morreu por nós, e ainda assim iria ajudar uma pessoa que tenta acabar com a própria vida? E quando vi Amanda ajoelhada de olhos fechados com aquele pedaço de farinha de trigo e água na sua boca. O corpo de Cristo, ela dizia. Então além dele dar a sua vida, ele dá seu corpo e seu sangue? Olhar para aquela imagem me causava mais desconforto ainda. Seria essa a culpa cristã que falam?
— Querida, o que achou da missa? – perguntou a mãe dela, no final.
— Interessante... – tentei disfarçar o choque que sentia com toda aquela ritualística autoflagelante.
— Vamos falar com o padre?
Por que eu deveria falar com o padre? Quanto mais caminhávamos em direção a aquele altar, mais sentido as loucuras de Jude fazia.
O homem de toga branca e roxa nos recepcionou com um sorriso fraternal, abraçando Maria e seus filhos.
— Então, você é nova por aqui – ele disse em minha direção, ainda sorrindo.
— Sim, seu padre – Amanda dizia animosa – Essa é a Hǎi yún.
— Prazer em lhe conhecer, senhorita... – quando ele estendeu a mão para me cumprimentar, olhou atento para meus braços, mas nada disse – Seu nome é um pouquinho complicado, pode repetir?
— Hǎi yún.
— Não sei o que aconteceu com você, mas... – ele estendeu as mãos até minha cabeça, sem encostar, fechando os olhos – Jesus está contigo.
Perguntei-me se aquele era o momento em que eu seria evangelizada.
— E todo o mal interno que te assombra irá se dissipar.
Aquela pose me deixava reticente, mas não me assustava. Pelo menos não como achei que iria acontecer.
— Amém – sua mãe disse por fim.
— Vá com Deus, Hǎi yún – disse o padre fazendo um sinal na minha cabeça, assim como fez na delas – Espero por você semana que vem.
— O que aconteceu? – perguntei a Amanda quando nos viramos.
— Nada, ele só te abençoou – ela respondeu, balançando meu cabelo.
— Se sente melhor, minha filha? – Maria perguntava animada, segurando meu braço – Falar com o padre sempre é bom. Ele me traz paz.
Não tinha como falar que eu não senti nada, então apenas assenti com a cabeça.
*
— Então, Hǎi yún – o pai dela dizia enquanto comia e bebia, sorridente – Você está melhor?
— Estou me sentindo melhor, senhor Arnaldo – respondi enquanto cortava a lasanha do meu prato, e Amanda comia com vigor. Era seu prato preferido.
Então senti que todos na mesa se entreolhavam, e ele deu uma leve tossida.
— Então, bem...
— Você quer falar do que aconteceu? – a mãe de Amanda, Maria, perguntava com as sobrancelhas cerradas.
— Maria! – Arnaldo disse cruzando os braços.
— O senhor enrola que nem a Amanda – André dizia, comendo.
— Eu não enrolo nada – ela respondia de boca cheia, envergonhada.
— Só queremos dizer que não tem problema de falar sobre seus sentimentos – ele servia mais cerveja para si – Chorar faz bem, desabafar também.
A última vez que desabafei com alguém fui sedada.
— Chorar? – perguntei curiosa.
— É melhor expressar seus sentimentos do que guardar, não é?
Fiquei em silêncio, reticente. Era estranho ouvir aquilo.
— Por que vocês pensam isso?
— Tive uma criação muito dura...Sem amor, eu diria e depois que perdi meu irmão, eu decidi que seria diferente com meus filhos. Nunca tive oportunidade de dizer que o amava, de chorar sua morte, tudo isso.
— E mostrar isso não quer dizer que somos fracos?
— Querida – sua mãe colocava a mão sobre a minha – Somos humanos, cheios de fraquezas. Se fôssemos perfeitos, não estaríamos aqui.
— O que te faz achar que demonstrar isso é fraqueza? – Arnaldo ainda me questionava.
— Criação – respondi, tomando mais do que tinha no copo – Meus pais são rígidos, sempre foram. Com eles mesmo, comigo mesmo. Minha mãe é mais aberta, mas meu pai é muito autoritário, nossa, demais. Ele ainda tem aquela ideia de que temos que seguir aquilo que decidiram que é o melhor, mas...Não acho que seja o certo para mim.
— Você deveria fazer o que gosta. Viver à sombra de algo que não gosta te leva a infelicidade – ele apontava para mim – Sou prova viva de que com o apoio necessário, consegue fazer o que quiser.
— Minha filha, Deus nunca abandonou nenhum dos seus filhos, nunca esqueça disso.
Sorri tentando levar em conta tudo o que tinham me dito.
— Você já é da família, Hǎi yún – André dizia, pegando mais um pedaço para si – Vamos sempre te apoiar.
— Da família? – repetia, com certa vergonha.
— Sim, você não vai casar com a Amanda?
Amanda engasgou-se com a comida, ofegando. Abaixei a cabeça, tímida e Maria deferiu um tapa na costa de Amanda na tentativa de fazê-la desengasgar.
— André! – dizia Arnaldo, advertindo-o. Ele olhava com uma inocência que me fazia rir.
— O que foi que eu fiz? É um namoro sem propósito, então? Ah, é um fica que vocês dormem juntas só. É, Amanda? Vocês só dormem juntas?
Amanda se engasgou mais uma vez, e enquanto eu ria, Maria deu dois tapas em André, enquanto Amanda se levantava atrás de água.
— Amanda, você está enrolando de novo.
— Para de deixar as meninas sem graça, Expedito – Arnaldo o advertia mais uma vez – Se não, daqui a pouco a Amanda desmaia.
— Não está mais aqui quem falou – ele levantou as mãos, voltando a comer enquanto Amanda se recompunha e eu também.
O almoço se prosseguiu sem maiores problemas e quando fomos ao seu quarto depois do almoço, ao fechar a porta, senti seus braços em volta a minha cintura.
— Obrigada por ter me trazido para cá – sussurrava para ela – É sempre bom estar com você.
— Não quer se deitar comigo? – ela perguntava em tom sugestivo para mim.
— Nós só dormimos juntas, Amanda? – dizia em tom zombeteiro, mas ela ficou envergonhada.
— Não, não é só isso... – ela tentava justificar, mas antes que continuasse a falar, segurei em seu rosto e a beijei.
— Vem, quero ficar um pouco com você.
Ela me levou para sua cama com cuidado enquanto eu estava com as mãos presas em volta do seu pescoço, e assim que nos deitamos, ela me beijou e quando abri os olhos e vi seu sorriso, e só conseguia pensar em uma coisa:
Ei, garotinha, eu quero ser sua namorada.
Ei, doce garota
Eu quero ser sua namorada.[3]
[1] Canção Nova é uma comunidade católica brasileira fundada pelo Monsenhor Jonas Abib no ano de 1978, seguindo as linhas da Renovação Carismática Católica. Popularizou-se por conta do canal de televisão que leva o mesmo nome.
[2]Hǎi yún faz referência a The L Word, série exibida entre 2004 e 2009, que retrata um grupo de amigas que vivem em West Hollywood, Califórnia, composto majoritariamente por mulheres homossexuais e suas relações, além de bissexuais e um pessoa trans, sendo a primeira da história a usar esse grupo com histórias principais.
[3] Referência à música “I Wanna Be Your Boyfriend”, do Ramones.
Fim do capítulo
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