Capitulo 50 - Três meses Parte I
Capítulo 50 - Três meses Parte I
Lia caminhou pelo corredor que a levaria até o avião, ainda com o coração na mão e o rosto manchado em lágrimas. O torpor era presente. Lia ouviu gritos ao longe, mas estava tão distante que demorou a entender que alguém chamava seu nome. Seu coração se agitou quando percebeu. Olhou para trás rapidamente, porém ninguém estava à vista, e nem poderia, já que ali somente os passageiros poderiam embarcar.
Um fio de esperança lhe atingiu como um raio e voltou ao portão de embarque com a maior velocidade que seus passos permitiam. A respiração logo tornou-se ofegante. Limpou as lágrimas do rosto com as costas das mãos e finalmente retornou para a entrada, onde viu Cris se debruçando sobre a faixa e sendo segurada pelo segurança, impedindo que ela passasse.
Lia correu, deixando a bagagem de mão para trás. Todos ainda estavam ali e pareciam ansiosos quando ela surgiu novamente. A expressão no rosto da amiga logo se tomou em alívio quando percebeu sua presença. A loira segurou em seus braços e disse de maneira afobada:
— Liz me ligou. Ela disse que está aqui no aeroporto e quer se despedir. Está correndo até aqui.
Sua respiração travou por alguns segundos ao ouvir as palavras da amiga e logo sentiu o peito se preencher de felicidade. Bem que não estava acreditando que iria viajar sem se despedir da rockeira. Seria doloroso demais. Um sorriso de alívio se apossou de sua face, foi impossível contê-lo.
— Não acredito! — sussurrou para si mesma em espanto.
As duas se viraram e ficaram observando, com ansiedade, de um lado para o outro, à espera da visão dela surgindo; assim como seus pais, Pedro e Alberto. Lia voltou para onde eles estavam, todos apreensivos também. Sua mãe a abraçou compreensiva.
— Eu estava mesmo me perguntando se ela não viria, mas não quis te chatear com o assunto. — Nádia especulou e fez carinho em seus cabelos. — Tinha certeza de que você queria vê-la antes de ir.
— Eu pensei que ela não viria! — exclamou irritadiça. Apesar de estar feliz, também continuava magoada.
O segurança que estava no portão, observando toda a comoção, disse:
— Senhorita, a porta vai se fechar em cinco minutos. É bom que se apressem.
— Puta que pariu! — xingou frustrada com o ultimato. Não poderia viajar sem vê-la.
Praguejou mentalmente e pediu aos céus para que ela chegasse logo, estava ficando aflita. A mãe tratou de tentar acalmá-la:
— Ela vai chegar a tempo, filha!
Assim que Nádia disse aquilo, como que em um passe de mágica, Lia viu-a surgir do outro lado do enorme salão de embarque, bem ao longe. Liz olhava atordoada de um lado para outro, enquanto seus cabelos longos e lisos esvoaçavam lindamente. Lia se libertou dos braços da mãe e correu até ela sem mais pensar racionalmente.
A rockeira a viu uns três segundos depois e também disparou em sua direção. As pessoas todas olhavam para as duas e desviavam do caminho. Lia não se importava. Não poderia haver nada mais clichê do que uma cena daquelas em um aeroporto. Com o coração batendo forte, elas se chocaram em um abraço apertado e desesperado.
— Linda, eu achei que não ia conseguir! — Ouviu a voz chorosa e emocionada dela. — Desculpe, eu só vi sua mensagem ontem à noite e quase não consegui um voo a tempo.
Naquele momento as lágrimas rolaram pela face de Lia, mas era de emoção ao vê-la. Apertou-a em seus braços, inalando o cheiro de sua pele e sentindo a textura da jaqueta de couro que ela usava. Liz também a segurava de volta com tal firmeza, como se jamais fossem se soltar. Era isso o que Lia mais queria, mas as coisas não eram simples.
— Você é uma idiota! — Foi a única coisa que Lia conseguiu dizer naquele momento. — Pensei que eu iria partir sem te ver.
Um misto de sensações a tomavam. Tinha certeza que nunca se sentiria daquela forma por qualquer outra pessoa em toda a sua vida, era tão forte que seu peito doía.
— Eu não poderia deixar isso acontecer. — Liz segurou em sua face com tal zelo e olhou-a carinhosamente.
A rockeira fez menção de beijá-la, mas refreou-se. Sentir os lábios dela nos seus era o que mais desejava, por isso sem mais perder tempo, puxou-a pelo pescoço e beijou-a colado. Nem se importou com o fato de estarem perante tantas pessoas. Já estava para partir e não poderia desperdiçar nenhum segundo ali com ela.
Liz segurou-a firmemente entre seus braços e Lia se deixou guiar por seus lábios quentes e doces, aconchegando-se mais ainda e sentindo o calor do corpo dela através da fina blusa que usava por baixo da jaqueta. Agarradas uma à outra, a irritadinha foi diminuindo a intensidade até separarem os lábios. Colaram as testas com as respirações ofegantes. Queria beijá-la para sempre, contudo não tinha muito mais tempo. Precisava pegar o voo.
— Eu tenho que ir, a porta do avião já vai se fechar.
— Desculpe não ter chegado mais cedo. — Liz desculpou-se mais uma vez com um tom de pesar na voz, depois pegou suas mãos e beijou em sua palma de forma delicada. — Espero que faça uma boa viagem e que curta bastante Londres.
— Obrigada! — agradeceu e uma lágrima rolou em sua face. — Só mais uma coisa. — Lia retirou a aliança do dedo e entregou a ela. — Guarda isso para mim, ok?
Sem dizer mais nada, colocou-a na mão de Liz, que observava tudo com o olhar confuso.
— Por quê? — perguntou ela em um fiapo de voz.
— Apenas guarde. Eu tenho mesmo que ir agora! — respondeu chorosa. A angústia de partir não lhe abandonava.
Puxando Liz pela mão, voltaram correndo até o portão de embarque. Assim que se aproximaram, viu que todos, exceto o seu pai, sorriam contentes por vê-las juntas. Cris, mais do que todos, estava super emocionada. Reparou também que Vanessa estava lá e parecia preocupada.
— Lia, a porta já vai fechar temos que ir. Pensei que tinha desistido.
Antes que pudesse responder algo, Liz se antecipou e disse em tom de voz cortante.
— Ela já vai, não se preocupe!
Lia viu que todos perceberam a animosidade entre as duas e revirou os olhos com isso. Resolveu deixar para lá. Olhou para Liz uma última vez e viu que ela retirava a jaqueta com pressa. Só naquele momento, viu que se tratava da mesma que dera a ela como presente de aniversário.
— Leva isso com você, então!
Seus olhos se encheram de lágrimas mais uma vez e recebeu a jaqueta que ela lhe entregava. As duas se abraçaram emocionadas, em meio às lágrimas, mais uma vez, e não falaram mais nada, apenas compartilharam o calor reconfortante dos braços uma da outra. Com um último selinho e sem trocarem mais palavras.
Lia pegou sua mala com a ajuda de Vanessa, despediu-se de todos mais uma vez e passou pelo portão, tentando não olhar para trás. Agora sim poderia viajar com a alma mais leve, pois tinha certeza do amor de sua rockeira, mesmo que não tivessem falado nada devido à pressa em partir. Só sabia que cultivaria aquele sentimento até voltar para que pudessem ficar juntas...
***
No primeiro voo, que durou cerca de oito horas, Lia abraçou-se à jaqueta quentinha de Liz e ficou sentindo o cheiro dela por horas, enquanto chorava as suas mágoas. Vanessa, que ia ao seu lado, deixou-a super à vontade e não puxou conversa, respeitando o seu espaço.
Nem era preciso dizer que foi uma viagem longa e cansativa. Por sorte, tiveram apenas duas escalas. Na primeira, foram direto para Lisboa, em Portugal, onde pegariam um outro avião para Londres. Porém, o próximo voo só sairia pela manhã.
Já passava da meia-noite em Portugal, mas, felizmente, encontraram alguns estabelecimentos abertos. Lia vestiu a jaqueta de Liz, e junto de Vanessa e dos outros bolsistas, foram guiadas pelo representante do intercâmbio, um homem alto, moreno e bastante simpático. Lia já podia sentir a diferença no clima, que estava bastante frio. Ela e a ruiva pediram um sanduíche chamado “bifana”, que era bastante popular em Lisboa, e de fato, estava uma delícia.
Usando o wi-fi que o estabelecimento liberava, conectou-se na internet sem perda de tempo. Alguns segundos depois, seu celular começou a vibrar com as notificações que chegavam. Mensagens dos pais, de Pedro, Cris e de um número desconhecido. Estranhou, mas quando viu a conversa, viu que era Liz.
Com o coração batendo forte no peito, leu mensagem de Liz.
Liz: “Sinto muito por ter chegado tarde e não termos nos despedido direito. Minha vida está uma bagunça agora, mas eu prometo que vou pensar em você todos os dias. Quero muito resolver todos os meus problemas até você voltar. Eu não desejo outra pessoa na minha vida. Me avisa quando o avião pousar. Quero saber se está tudo bem. ”
Lia suspirou apaixonada, foi impossível não o fazer. A irritadinha tinha certeza do que sentia e mesmo que odiasse relacionamento à distância, tinha certeza que conseguiria superar aqueles seis meses, mas os ciúmes e inseguranças não lhe davam trégua. Se perguntava se Liz a esperaria e se ela seria fiel. As mulheres se atiravam nela de forma descarada, imagina quando soubessem que estava solteira novamente.
Ao mesmo tempo que tinha medo, também se punia. Liz já havia lhe dado tantas provas de que era fiel. A não ser que fosse uma boba muito iludida, porém, tinha certeza de que ela sempre lhe fora fiel. Tirando aquela situação com a tal de Amanda, nunca tivera motivos para desconfiar. Liz estava sempre à sua disposição e lhe desejava na cama da mesma forma, desde o começo. Sabia que não tinha motivos para desconfiar, mas por que era tão difícil acreditar?
Depois de pensar no que responder, digitou por fim:
Lia: “Oi. Acabamos de chegar em Portugal, foi a nossa primeira parada. Já passa da meia-noite aqui e só vamos sair para Londres pela manhã. Não vou mentir que fiquei puta quando eu mandei a mensagem e você nem se deu ao trabalho de ler. No aeroporto, mesmo com raiva e chateada, eu esperei o quanto pude na esperança de que você fosse aparecer.
Liz: “Fico muito feliz e aliviada, que tenha chegado em segurança. Obrigada por falar comigo, estava mesmo preocupada, sem notícias. Eu fui uma idiota por me afastar de você, mas foi preciso. Salva esse número, por favor. Estou usando apenas ele agora. Desculpe não ter avisado antes.”
Lia: “Por que trocou de número? ”
Liz: “Eu perdi o outro e resolvi trocar de uma vez. Agora me diz, por que me devolveu a aliança? ”
Lia suspirou com a pergunta. Desde que haviam terminado, ela havia se recusado a tirar aquela aliança, pois, no fundo, não queria desistir das duas, mesmo depois de tudo o que Liz havia lhe dito. Apesar da linda despedida, sabia que nada ficara resolvido e sabia que apenas Liz poderia reatar o que tinham.
Lia: “Você terminou comigo, mas espero que possa colocá-la de volta no meu dedo, um dia. Fique com ela para que não se esqueça de mim durante esses meses. ”
Liz: “Ah, Liana! Como eu posso esquecer você? Vou carregar essa aliança comigo o tempo inteiro. ”
O coração de Lia disparou com o que ela dissera. O que a fez ter esperanças quanto ao futuro. Com o peito explodindo de ansiedade e certeza, declarou-se mais uma vez:
Lia: “Não quero desistir de nós. Eu te amo demais! ”
Liz: “Também te amo muito, minha linda, nunca esqueça disso! ”
Lia: “Não vou esquecer!”
As palavras dela lhe acalentaram de uma forma boa. De repente aquela angústia que vinha sentindo nas últimas semanas, se dissiparam. Claro que havia a saudade, mas também a esperança de voltar para os braços dela no fim de tudo. Com certeza, uma nova era estava começando em sua vida e iria aproveitá-la ao máximo.
***
Chegaram em Londres, ao aeroporto Heathrow, por volta das nove da manhã. Como o esperado, o clima estava ameno, nem muito quente e nem muito frio. Ainda bem que elas já haviam se vestido propriamente com roupas de frio.
Depois que todos receberam as suas bagagens, o instrutor reuniu a todos e logo mais, dois funcionários da equipe de intercâmbio chegaram para auxiliá-los. Vários táxis estavam à postos para levá-los até suas respectivas “moradias”. Antes, eles lhe explicaram algumas coisas, pegaram os números de cada um e disseram que muito em breve, se reuniriam para falarem sobre o intercâmbio.
Ela e Vanessa pegaram o táxi juntas já que iam para a mesma casa. Assim que começaram a andar pelas ruas do oeste da cidade, Lia colou sua testa no vidro da janela e ficou babando com a vista, enquanto a ruiva filmava e tirava fotos dos monumentos. Apesar de toda a sua resistência, conhecer Londres era o seu maior sonho desde que era criança, e a amiga também parecia tão empolgada quanto ela.
Ao longe avistaram Hyde Park, um famoso parque do qual já vira muitas fotos. Durante o percurso, também passaram em frente ao Palácio de Buckingham.
— Olha só, Lia. Será que a Betinha está lá agora? — Vanessa perguntou com bom humor.
Lia gargalhou com aquilo. O Brasil era uma verdadeira fábrica de memes.
— Betinha, foi ótimo!
O motorista apenas ia emburrado e silencioso no banco da frente. Na certa, não gostando nada do bom-humor estrangeiro. Lia revirou os olhos. Não entendia porque o povo europeu era tão besta e arrogante.
Ela e Vanessa ficariam instaladas no bairro Stepney Green, na parte Leste de Londres. Um dos bairros modestos da cidade. Eram bolsistas e não podiam reclamar. O taxista parou em uma fila de apartamentos. Apesar de simples, era um local lindo.
Ele retirou as malas delas de dentro do carro e partiu sem dizer mais nada.
— Thanks! — Vanessa exclamou com sarcasmo, perante o mau-humor do motorista.
Assim que ele se foi, Lia virou-se para a amiga, com uma careta de insatisfação.
— Aff! Eu tinha medo dessas coisas acontecerem. Esse povo não gosta de turistas e estrangeiros.
— Mas nem todos são assim, Lia. Vamos ter esperanças.
Vanessa retirou seu celular do bolso e olhou para a tela, olhando bem o endereço. As duas seguiram até o bloco indicado e tocaram o interfone.
Um par de minutos depois, alguém finalmente as atendeu. Ouviram uma voz masculina naquele lindo sotaque britânico, a perguntar quem era.
- We’re the brazilian students! – Lia respondeu com seu pequeno conhecimento adquirido em cursinhos no Brasil.
- Just a sec! – O homem respondeu apenas isso.
- Ele disse que já está vindo.
Elas esperaram por alguns segundos até que um rapaz moreno e alto surgiu. Surpreendentemente ele as recebeu com um sorriso simpático e as cumprimentou. O nome dele era Jim, e ele as ajudou a levar as malas até o apartamento.
A casa era até maior do que a aparência. Assim que eles entraram, se depararam com uma sala de estar ampla e aconchegante. Com certeza estava mais quente do que lá fora.
Ele as apresentou aos cômodos e quando chegaram na cozinha, encontraram-se com uma mulher lá. Ela também era morena e apesar da expressão austera, tinha olhos amáveis e também as recebeu com simpatia. Os dois se apresentaram mais uma vez. O nome dela era Cadance.
Já devidamente instaladas, Lia e Vanessa, que iriam dividir o mesmo quarto, apenas deitaram e resolveram descansar da longa viagem. Ambas estavam com os corpos moídos e ainda confusas com o fuso-horário europeu.
A hora do “almoço” foi totalmente esquisita. Lia estranhou ao chegar na cozinha e encontrar apenas alguns pedaços e bife e batata-frita para a refeição. Tentou disfarçar a careta que fez. Já sabia que eles não tinham o habitual almoço como no Brasil, mas mesmo assim não deixou de estranhar. Ao menos estava tudo uma delícia e conseguiu se satisfazer.
Elas voltaram para o quarto e antes de dar um cochilo, Lia ligou para a família via chamada de vídeo e fez um breve tour pelo quarto, apenas para que eles vissem que já havia chegado e estava bem acomodada. Dona Nádia, como sempre, lhe cobriu de recomendações e cuidados. Vanessa também fez o mesmo e ligou para seus pais.
Após encerrar a ligação com os pais e Pedro, Lia sentiu seus olhos pesarem de sono, mas antes de adormecer, mandou uma mensagem para Liz:
Lia: “Já cheguei em Londres e está tudo bem. Estou devidamente instalada e vou dar um cochilo. É cedo para dizer que já sinto sua falta? ”
***
A irritadinha acordou se sentindo meio febril e ainda sonolenta. Olhou ao redor do quarto e viu que Vanessa arrumava suas roupas no armário que havia ali. Ao vê-la acordada, a ruiva sorriu feliz e desatou a falar como era típico dela.
— Eu deixei o espaço da direita para as suas coisas. Espero que não se importe!
— Está tudo bem! — Sentou-se na cama, ainda se sentindo cansada.
— Você está bem? — Vanessa aproximou-se ao perceber sua indisposição.
— Me sentindo meio dolorida. — Fez uma careta e suspirou. — Como se eu fosse ficar com febre. Sei lá...
Rapidamente a ruiva sentou-se ao seu lado na cama e tocou em sua testa com as costas da mão, lhe deixando um pouco sem jeito.
— Você não parece estar com febre. Deve ser apenas o cansaço. Também não estou me sentindo tão disposta ainda. — Antes que Lia pudesse quebrar o contato, a ruiva se levantou e voltou até o armário, mas continuou a falar: — Se for preciso a gente vai procurar uma farmácia e compra um antitérmico.
— Obrigada, mas deve ser só cansaço mesmo. — Lia olhou pela janela do quarto e viu que a luz do sol já estava bem pálida. — Que hora é?
— Já passa das sete.
— E ainda está claro assim?
Vanessa soltou uma gargalhada.
— Também achei estranho.
Lia balançou a cabeça e sorriu também. Aqueles meses seriam mesmo muito diferentes. Logo, procurou o celular e viu que haviam mensagens de Liz. Seu coração palpitou feliz e um ânimo tomou conta de seu corpo de forma instantânea.
Liz: “Eu estava aflita mesmo sem mais notícias. Espero que o voo tenha sido excelente e que esteja tudo do seu agrado. É claro que não é cedo para saudades. Eu também estou, como sempre. Você sabe disso! Estou feliz por a gente estar conversando assim de boas. Era tudo o que eu mais queria. Me conta mais sobre as coisas aí! – 16:34
Liz: “Lia, está tudo bem por aí? Por que não me responde? ” – 18:35
Lia abriu um sorriso com a preocupação dela e sem mais demoras, lhe respondeu:
Lia: “Desculpe a demora. Eu acabei dormindo a tarde toda e acordei agora. Estou me sentindo toda quebrada de cansaço. Também estou feliz por estar falando com você. Sei que sempre sou uma teimosa, mas você tinha razão, eu não poderia desistir de vir, mas quero poder voltar logo para os seus braços. Eu sei que só terminou comigo para me fazer aceitar a vaga, não foi? ”
Liz: “Foi um dos motivos, sim. E eu espero conseguir colocar tudo em ordem até lá para te receber do jeito que você merece. ”
Lia franziu o cenho. Queria saber o que ela tanto lhe escondia. Será que aquilo não terminava nunca? Era sempre segredo atrás de segredo. Só podia ter algo a ver com o acidente de Luísa, tinha certeza que era isso.
Lia: “Por que não me conta o que está acontecendo? Eu fico morta de preocupação. ”
Liz: “Não quero te envolver nessa loucura, mas espero poder esclarecer tudo em breve. Não se preocupe comigo. A única coisa com que tem que se preocupar agora são os estudos. ”
Como sempre, a rockeira havia sido evasiva na resposta. Odiava quando ela fazia aquilo, ainda mais depois de tudo o que as duas haviam passado. Soltou um forte suspiro e voltou a digitar:
Lia: “Tudo bem! ”
Liz: “Por favor, não fica chateada comigo. Acredite que estou fazendo tudo isso para o seu bem. ”
Aquelas coisas que ela dizia, lhe tiravam a paz. O que será que estava acontecendo ainda de tão ruim contra a família dela?
Lia: “Ao menos me prometa que não vai sumir e vai sempre me dar notícias! ”
Liz: “Você que tem que me prometer não vai sumir. Está em outro país, morando junto dessa ruiva atirada...”
Foi impossível para Lia não sorrir com aquela. Apesar de tudo, gostava do fato de Liz ter ciúmes.
Lia: “Sua boba! Sabe que não penso em mais ninguém. ”
Liz: “Na distância nunca se sabe o que pode acontecer... ”
Após mais algum tempo de conversa, Lia e Vanessa foram jantar junto de Jim e Candance. Os dois eram mãe e filho. Ela era dona de casa e ele trabalhava fora. Eles complementavam a renda, alugando quartos para estudantes.
Lia ficou muito satisfeita em ver que os dois eram simpáticos, bem diferente da visão que ela tinha dos ingleses. Assim que terminaram o jantar, Vanessa a convidou para irem dar uma volta pelo quarteirão na companhia de Jim. Ele mesmo havia se oferecido a fazer um tour com elas pelo bairro...
***
No dia seguinte, o instrutor do intercâmbio, entrou em contato com elas, convidando-as para irem até a escola onde elas teriam aulas. Ficava pelo centro de Londres e era bastante acessível chegar até lá pelo metrô.
O café-da-manhã foi estranho. Parecia mais um almoço, por assim dizer. Ovos fritos, bacon e salsichas. Era isso ou mingau, o tal do “porridge”, que também era um popular desjejum inglês. Vanessa ria demais com as caretas que Lia fazia. Aparentemente a ruiva não era cheia de frescuras que nem a irritadinha, e o que vinha até a mesa para ela estava bom.
Após a refeição, as duas saíram para a sua pequena aventura matinal. Jim, as levou até a estação de metrô e tratou de lhes dar uma breve explicação do caminho. O diferencial é que tanto Lia quanto Vanessa tinham certo domínio no idioma, o que facilitou muita coisa.
Obviamente, as duas se perderam um pouco no centro, tentando encontrar o ponto de ensino no qual teriam as aulas, mas assim que chegaram, viram que o prédio da fundação era enorme. Lia não imaginava que lá seria tão grande e avançado. Não poderia esquecer que não estava mais no Brasil, onde a educação era piada.
— Estou apaixonada por esse lugar, Lia. Caraca! — Vanessa exclamou ao seu lado e puxou-a pelo braço com entusiasmo. — Aquilo ali é a biblioteca?
A ruiva apontou para os fundos do prédio, onde se podia ver a biblioteca separada. Era enorme. De súbito, sentiu aquela curiosidade bater. Amava livros. Sem mais demora, as duas se encaminharam até lá e ficaram encantadas com a quantidade de livros ali.
— Acho que eu nunca estive em uma biblioteca tão grande! — A irritadinha exclamou.
Elas ficaram desbravando os livros até a hora que estava marcada de se encontrarem no pátio da fundação com o restante da turma. Os outros intercambistas, que conseguiram as vagas junto delas, chegaram. De longe viram o seu instrutor, Eduardo, que os recebeu com um largo sorriso.
Logo ele deu boas-vindas a todos e os levou para um tour no prédio. Eduardo lhes mostrou as salas, o refeitório, a coordenação, os banheiros, e ia explicando os horários de funcionamento da rotina de estudos. Como o esperado, o horário das aulas era tempo integral. Apesar de gostar muito de estudar, Lia tinha que admitir que achava super puxado e cansativo.
O primeiro dia de aula começaria na semana que vem, em agosto. Geralmente o período de aulas em Londres, começava em setembro, mas o intercâmbio teria horários diferentes. Janeiro o curso já deveria estar terminando, para que eles pudessem chegar a tempo de começar o próximo semestre normalmente quando voltassem ao Brasil.
Vanessa logo começou a pegar amizade com os outros bolsistas e a se enturmar com eles, tanto que já estavam combinando de onde iriam almoçar naquele dia, e claro, que Lia estava inclusa no convite.
Eduardo, o instrutor, os levou até um restaurante ali perto, o qual indicou como sendo o melhor lugar para almoço e lanche dos estudantes. Óbvio que quando as aulas começassem, haveriam refeições dentro do instituto, mas naquele dia tiveram que ir atrás.
Como todos estariam livres pela tarde, é claro, que alguns dos meninos se empolgaram e começaram a pedir cerveja depois do almoço. Lia, reservada como era, apenas observava a falaria de todos envolta da mesa. Não se sentia ainda muito disposta a fazer novas amizades.
Após o almoço, elas voltaram para Stepney Green e descansaram durante boa parte da tarde. Ainda estava sendo um pouco confusa a mudança de fuso horário. Lia se comunicava com Liz, Cris e a família, através do whatsapp, já que tinha wi-fi liberado na casa. Tinha que admitir, a internet era veloz como nunca havia visto antes. Apenas mais uma coisa para acrescentar à sua lista de frustrações.
Nos dias seguintes, ela e Vanessa trataram de conhecer mais o bairro onde estavam instaladas e os seus arredores. Saíram à procura de coisas essenciais como, farmácia, supermercado, caixas eletrônicas e afins. Afinal, deveriam estar preparadas para tudo.
O primeiro fim de semana longe de casa foi dose. Por algum motivo, foi apenas naquele dia que a ficha caiu, de fato, e Lia entendeu o quanto estava distante de todos e que assim seria por vários meses. A saudade apertou seu coração como nunca antes, ainda mais quando pensava em Liz. Sem falar também na saudade da comida brasileira. Lia tinha certeza que conseguiria perder alguns quilinhos até se acostumar com tudo.
Sua sorte era que Vanessa não lhe deixava desanimar e estava sempre inventando novos passeios e atividades para ocuparem a mente. Só assim é que também entendeu o porquê de a ruiva ter feito tudo o que fez para ter sua companhia naquela viagem. Seria chato passar vários meses longe de casa, em um país completamente diferente, sem ter nenhum conhecido por perto.
No domingo as duas gastaram a tarde toda passeando pelo shopping central do bairro, e com aquilo, Lia conseguiu se distrair um pouco. Aproveitou, para comprar mais roupas de frio, como casacos cachecóis e meias. Aqueles dias até que estavam quentes, mas queria se preparar para quando o inverno chegasse. Às vezes o sol estava forte e mesmo assim o clima ainda era um pouco frio.
Na segunda-feira, finalmente, havia uma razão a mais para seus dias. Estava ansiosa para o começo das aulas, algo que ocuparia de verdade sua mente. Estava ali para isso. As duas saíram cedo de casa e chegaram sem mais problemas até o instituto.
As aulas eram mais intensas e maçantes do que a irritadinha poderia imaginar. Logo no primeiro dia, os professores vieram com tudo. Foi tanto conteúdo e atividades, que conseguiria ter o que fazer a semana inteira sem folga.
Elas se sentaram perto dos outros bolsistas e, consequentemente, na hora do almoço, todos sentaram juntos. E fizeram esse ritual durante toda a semana. Contando com ela e Vanessa, haviam mais oito estudantes. No total eram quatro mulheres e seis homens. Lia não lembrava de ter cruzado com nenhum deles pelo campus antes. Mas também nem tinha como, já que o teste havia sido aplicado em todas as turmas, de todos os horários e até mesmo que vinham de outro campus.
Claro que eles foram devidamente apresentados, mas a irritadinha não decorou o nome de todos, apenas de uma das bolsistas que, por coincidência, também se chamava Lia. Na sexta-feira, eles quiseram marcar de sair por Londres à noite no sábado. Já que estavam ali, não iriam perder tempo e aproveitariam o tempo livre na cidade.
Pelo que Lia pode observar, a maioria ali tinha condições financeiras muito boas para se manterem, óbvio. Apenas uns três deles recusaram o convite de saírem no outro dia.
Vanessa estava muito animada com o convite e quando Lia realmente prestou atenção na conversa, eles procuraram um pub que fosse acessível e central, para que não fosse tão distante dos bairros de cada um. Marcaram de se encontrarem por volta das sete da noite no dia seguinte.
A irritadinha se perdeu um pouco da conversa enquanto estava à procura de um sinal wi-fi para se comunicar com Liz. Assim que conseguiu ficar com internet, mandou uma mensagem para ela, incluindo fotos suas da manhã e perguntando como estavam as coisas. Porém, até a hora de saírem do restaurante, ela ainda não havia visualizado nada.
No caminho de volta, as duas conversavam sobre isso, sentadas no banco do metrô.
— Você acha que é boa ideia a gente sair assim pela noite, só nós duas? A gente nem sabe como andar aqui direito, Vanessa!
— E não sabemos usar o GPS? — A ruiva rebateu como se fosse a coisa mais óbvia do mundo.
— E se for perigoso? — Lia alardeou como era de costume.
— A gente não está no Brasil. Relaxa! — Vanessa tentou acalmá-la. E ela falava mesmo de um jeito tão fácil, que Lia começou a se convencer de que era uma boa ideia. — Nós vamos cedo no metrô e pegamos um uber na volta. Acho que não vai ser tão caro assim.
— Não se esqueça que somos sustentadas pelo real lá no Brasil! — Lia disse com desdém. — Meus pais pediram para eu não exagerar.
Vanessa riu de sua sinceridade e enlaçou o braço no seu com naturalidade, mas aquilo a incomodou um pouco.
— Relaxa, Lia! A gente se acerta. Vamos dividir tudo!
Depois daquilo, Lia calou-se e ficou procurando uma forma de afastar o braço do dela sem parecer grosseira. Por sorte, andava com um livro pequeno na bolsa e disse que iria ler um pouco até chegarem na parada.
Fez de conta que lia o livro, mas a verdade era que seu pensamento estava longe. Passara a tarde toda pensando em Liz e querendo falar com ela. Teria que esperar chegar em casa. Precisava comprar logo um chip com internet para se comunicar com ela a hora que quisesse. Na estação viu que até tinha wi-fi liberado, mas quando chegaram lá, o vagão já estava quase de saída.
Chegaram no bairro por voltas das seis, praticamente a única coisa que fizeram, foi sair à procura de novos chipes das operadoras locais. Depois disso, voltaram para casa e trataram de acertar um plano o mais acessível possível.
Já passava das oito quando Liz finalmente lhe respondeu. Estava deitada em sua cama, fazendo o dever de casa com Vanessa e pediu licença para a amiga.
Liz: “Desculpe a demora, linda! O dia hoje foi puxado na empresa, mas está tudo bem. E por aí? Você está gostando das aulas? Só pelas fotos já vi que é demais! ”
Lia: “Ah, estou amando. Lá é enorme e a biblioteca mais ainda. Quase todo dia a gente almoça com os outros bolsistas. Eles chamaram a gente para sair até um pub amanhã à noite.”
Liz: “Que rápidos! Não perdem tempo mesmo, não é? ”
Lia: “Eu nem estou tão animada assim, mas a Vanessa insistiu para não ir sozinha. ”
Liz: “Ah tá! Claro que ela quer sua presença. ”
Lia: “Está com ciúmes? Kkkkk. Sabe que não tem motivos para isso. ”
Liz: “Mesmo que eu estivesse, acho que não posso exigir nada de você. ”
Lia: “Então não iria ligar se eu ficasse com outras pessoas? ”
Liz: “Não diz isso nem de brincadeira. Eu iria ficar louca, mas, como eu disse: não poderia exigir nada ”
Lia: “Pois saiba que eu estou levando à sério nosso compromisso. Estou aqui estudando e quando o intercâmbio acabar, quero voltar com você e não penso em ficar com ninguém nesse período. E você? ”
Liz: “Eu também não penso e nem quero ficar com outra pessoa. Você sabe disso. ”
Lia: “Então não temos motivos para brigar, não é? ”
Liz: “Se a gente brigar, não vai ser por minha culpa e você sabe! ”
Lia ficou sem entender aquela mensagem por alguns segundos. O que ela queria dizer com isso?
Lia: “Como assim? Quer dizer que a culpa vai ser minha, é isso? ”
Liz: “Você que não confia em mim, Lia! ”
A irritadinha fechou a cara de súbito, mas no fundo sabia que Liz tinha razão. Queria não ser tão imatura, insegura e ciumenta, mas não conseguia se controlar de jeito nenhum.
Lia: “É só você não me dar motivos para isso! ”
Liz: “Vamos deixar essa conversa de lado antes que a gente discuta. ”
Lia suspirou, ainda se sentindo incomodada com a conversa, e resolveu dar o papo com ela por encerrado naquela noite antes que tivessem uma “DR” acalorada.
***
No outro dia, durante a manhã inteira, ela e Vanessa, ficaram apenas concentradas nos deveres de casa e só decidiram encerrar os estudos quando chegou a hora do almoço. Depois disso Lia deitou-se em sua cama e ficou conversando com Cris através de chamada de vídeo. Depois conversou com Pedro através de mensagem e lhe contou que iria aproveitar a noite londrina pela primeira vez.
Ela e Liz não haviam se falado mais depois da conversa de ontem à noite e ainda abriu a conversa com ela, mas verificou que sua última visualização havia sido muito mais cedo e resolveu deixar para lá. Logo seus olhos foram ficando pesados de sono. Não sabia o que estava acontecendo, mas desde que chegara a Londres, sentia um sono constante e assim, cochilou boa parte da tarde.
Acordou-se com Vanessa lhe chacoalhando de leve pelo braço.
— Lia, já passa das cinco. Temos que nos arrumar.
— Ok! — respondeu ainda grogue de sono, mas antes de levantar-se, ficou mexendo no celular.
Antes de saírem de casa, Lia abriu a conversa com Liz mais uma vez. Ela não tinha mais entrado no aplicativo e ficou preocupada.
Lia: “Tá aí? Eu estou usando a sua jaqueta agora. Vou com ela para te sentir mais perto de mim. Era com você que eu queria fazer todos esses passeios. ”
No pub, que tinha um clima muito aconchegante e retrô, Lia sentou-se ao lado da ruiva, e basicamente só simpatizou de verdade com um dos bolsistas, chamado Edson. Ao longo da noite, entre uma conversa e outra, soube que ele era gay, o que aumentou ainda mais a afinidade entre os dois.
Foi a primeira vez também que Lia tomou uma daquelas cervejas de cor preta, muito popular em Londres, a Stout. Era certo que a irritadinha não gostava de cerveja, mas experimentou aquela pela simples curiosidade, e como já imaginava, não gostou nada do sabor.
Apenas quando passava das nove, foi que Liz respondeu sua mensagem.
Liz: “Não faz assim, por favor! Também queria estar aí com você. ”
Lia: “Desculpe! É que eu realmente queria isso, mas enfim... você está brava comigo? ”
Liz: “Claro que não, linda. Eu quero mesmo que curta bastante. Só toma cuidado, ok? Agora que você está com duas semanas aí. ”
Lia: “Pode deixar. Obrigada pela preocupação. ”
Liz: “Tudo bem, você já está no bar, não é? ”
Lia: “Sim. E você estava onde? Está tudo bem?”
Liz: “Está tudo bem sim. Vou deixar você socializar aí com seus colegas. Depois a gente se fala melhor. Bjs e se cuida! ”
Lia ficou mais ou menos satisfeita com a conversa. Então estava “tudo bem” entre elas. Pensava que Liz ficaria estranha quando soubesse que iria sair com outras pessoas, mas não. A rockeira era muito segura e de boas. Apenas ficou incomodada quando ela não respondeu onde estava.
“Eu que sou mesmo a paranoica da relação” pensou consigo mesma, enquanto revirava os olhos e bebia mais um pouco. Liz nem ligara por ela ter saído com várias pessoas.
De fato, a aventura das duas pela noite foi bastante divertida e tranquila. Voltaram para casa sozinhas à meia-noite e se surpreenderam com a quantidade de pessoas que estavam nas ruas e no metrô àquela hora.
Candance e Jim lhes deram uma cópia da chave, para poderem entrar no apartamento sem incomodarem, mas com a condição de que devolveriam as chaves assim que chegassem. Apesar dos dois serem “de boas”, ali era a casa deles e não queriam baderna.
Entraram sem fazer barulho e correram para o quarto. Lia se sentia uma porquinha, mas não teve coragem de tomar banho. Estava muito frio e já estava tarde, então, as duas apenas trocaram de roupa e foram dormir mortas de cansaço, porém, satisfeitas e felizes.
***
Dois meses se passaram de forma até rápida. Lia e Vanessa seguiram aquela rotina por algumas semanas. Estudavam com afinco, mergulhavam nas tarefas de casa e sempre que podiam, conheciam mais um pouco de Londres juntas dos colegas.
Lia, Vanessa e os outros bolsistas da sua universidade, dividiam as aulas com vários outros alunos de todos os lugares do país e de várias nacionalidades diferentes. A sua sorte é que Vanessa era extremamente comunicativa e amigável, pois passou a conhecer vários dos colegas através dela e admitia que era uma experiência enriquecedora, embora não conseguisse se misturar e conversar abertamente com os outros. Era tudo através da ruiva. Estava com dificuldades de se enturmar.
Lia não imaginava que um dia poderia sentir tanta falta do Brasil. Seu sonho era esse intercâmbio. Sempre quis conhecer a Inglaterra e agora que estava ali, tudo parecia meio sem sentido. É claro que a parte dos estudos havia superado as suas expectativas, disso não poderia reclamar. Naquele período elas já estavam tendo aulas intensas de conversação e os professores eram os melhores.
Lia se sentia irritada naquela semana como nunca antes. Estava de TPM, com saudades de casa e sentindo um tesão incontrolável. Precisou se aliviar sozinha alguns dias. Às vezes, esperava Vanessa dormir à noite ou então se trancava no banheiro. Ao menos aquilo estava servindo por enquanto. Sua vontade era de fazer uma vídeo chamada sem vergonha com Liz, mas ela nunca lhe respondia quando conseguia ficar sozinha no quarto. Estava frustrada.
Durante a aula de ortografia naquela quinta-feira pela manhã, a irritadinha estava concentrada, respondendo a uma tarefa difícil que a professora havia passado. Já se sentindo um pouco cansada, pegou sua garrafa e bebeu um pouco de água. Sem querer, seu olhar cruzou com o de um rapaz que estava sentado duas fileiras ao lado da sua.
Ele continuou encarando-a e lhe deu um leve sorriso pela primeira vez. Há vários dias atrás, a irritadinha começara a perceber os olhares desse mesmo colega para si. As duas primeiras vezes, pensava que havia sido coincidência e não ligou muito, mas depois disso, sempre que eles tinham aulas juntos, ele continuava a lhe encarar de forma nada sútil. Aquilo já estava começando a lhe incomodar.
Na hora do almoço, de onde estava sentada, viu ele com a própria turma, na mesa em frente a sua. Lia cutucou Vanessa e perguntou baixinho:
— Você sabe quem é aquele rapaz? — Apontou discretamente na direção dele.
A ruiva olhou disfarçadamente para onde ele estava e franziu o cenho.
— Acho que o nome dele é Viktor, por quê?
— Ele anda me encarando na hora da aula.
— Eu também percebi isso! — Edson foi quem respondeu risonho. Apesar de ter falado baixo, ele escutara sua conversa já que estava sentado ao seu lado. — Você tem admirador aqui já. Ele é um gato.
Vanessa não conseguiu segurar o riso, enquanto Lia apenas fechou a cara. Quando percebeu, todos na mesa haviam escutado com atenção o que Edson acabara de dizer.
— Quem é? — Márcia, a intercambista loira e simpática, perguntou curiosa e risonha.
— O Viktor! — Edson respondeu ainda sorrindo.
Lia ficou extremamente aborrecida com o jeito que os dois haviam se metido em seus assuntos pessoais e, fechando a cara, levantou-se da mesa, deixando-os sem resposta. Antes de sair do refeitório, observou que eles a seguiam com os olhos, inclusive Vanessa.
Nem era preciso dizer que Lia passou o restante da aula sem dar bola para ninguém e no final do dia letivo, esperou por Vanessa perto do portão de saída. Mais de cinco minutos se passaram e nada da ruiva. Já olhava impaciente para os lados quando sentiu alguém cutucar o seu ombro. Era o tal Viktor. Podia até ser idiotice de Lia, mas ela se sentiu nervosa com a aproximação dele.
— Oi! Me chamo Viktor. Temos uma aula juntos. — Cumprimentou em inglês e com simpatia. Lia podia sentir o sotaque em sua voz, embora ele tivesse uma boa dicção.
— Oi. Eu sei que temos aulas juntos. — Respondeu, em inglês também, de forma curta e grossa.
— Seu nome é Lia, não é?
— Sim. Por quê?
Se sentia estranha em estar falando com ele, mas ao menos resolveria logo aquele incômodo ao dispensá-lo.
— Gostaria de te conhecer melhor. — A forma como ele respondeu, soou de longe como um xaveco. Daí Lia teve certeza que ele tinha segundas intenções.
Viktor era um moreno alto e de boa aparência, sem falar que parecia mesmo ser educado e simpático. Não querendo ser antipática e esnobe, tentou falar de forma amena. Afinal, o menino não sabia que era lésbica e nem comprometida.
— Desculpe, Viktor! Mas eu sou comprometida. — Deu de ombros e lhe lançou um sorrisinho de lado quando ele fez cara de desapontamento.
— Ouch! — Ele exclamou sem perder o humor e Lia sorriu junto com ele.
— Mas obrigada por ter vindo falar, de qualquer forma. — Lia tentava não ser mal-educada e rabugenta.
— Tudo bem. Podemos ser amigos, não é? — Ele respondeu parecendo sem jeito.
— Podemos sim. — Confirmou sem saber mais o que falar.
— A gente se vê amanhã, então. — Viktor sorriu e acenou um “tchau” com a mão.
Suspirando de tensão com o momento meio constrangedor, Lia olhou para os lados e viu Vanessa junto de Edson mais ao longe, a observando. Revirou os olhos com a cara de pretensão que os dois faziam.
— Nem vem vocês dois. — Cortou de forma sisuda assim que os amigos se aproximaram.
Eles não tentaram puxar conversa com ela por algum tempo. Edson, sempre as acompanhava até o metrô depois das aulas e de lá, seguia caminho diferente. Antes de se separarem, o amigo sorriu para Vanessa e não fez questão de se despedir de Lia, o que chamou a atenção da irritadinha.
***
Vanessa não perguntou mais nada sobre Viktor. Com certeza a irritabilidade de Lia havia colocado um ponto final naquela história. Durante a semana, Edson não puxou conversa com ela. A irritadinha achou estranho, mas também estava tão ocupada com as tarefas escolares que nem conseguiu se aprofundar no assunto.
Lia havia voltado com o hábito de ler seus romances novamente e durante um intervalo, sentou-se sozinha em um dos bancos do pátio. Ficou tão entretida com a história que quase não percebeu que já estava na hora de voltar para a sala. Quando fechou o livro e se levantou da mesa, percebeu que Vanessa e Edson conversavam mais ao longe enquanto a olhavam. Os dois desviaram o olhar assim que ela os flagrou.
Lia se sentiu estranha com aquilo. Tinha certeza que os dois estavam falando sobre si. Voltou para a sala sozinha, ainda pensando sobre o que os dois conversavam. Depois perguntaria a Vanessa o que estava rolando.
Edson não as acompanhou até o metrô naquele dia, então as duas voltaram para casa sozinha, então Lia foi direto ao assunto.
— O que vocês estavam falando de mim na hora do intervalo?
— O Edson tá um pouco chateado com você. — Vanessa admitiu com uma voz de pesar.
— Chateado comigo? — Lia espantou-se. Não fazia ideia do que estava acontecendo. — Mas por quê? Eu não fiz nada com ele.
— Ah, Lia! — A ruiva exclamou meio irônica e se recostou na cadeira, desviando o olhar do seu. — Você passou a semana toda sendo super grossa com ele.
— Quê? — Voltou a perguntar sem entender.
— Não só com ele, comigo também!
— Isso ainda é por causa daquela história do Viktor? — perguntou já sem paciência. — Mas agora deu mesmo! Eu não quero falar sobre isso!
— Não precisa ser tão grossa, Lia. Não é por causa do Viktor, mas sim pelo jeito que você agiu a semana toda. Não precisava ficar toda fechada daquele jeito, sem conversar com a gente. Foi chato!
Lia suspirou e baixou a cabeça. Tinha que admitir que havia sido meio chatinha mesmo naquela semana, mas era algo que não conseguia controlar. Seus conhecidos já estavam tão acostumados com o seu jeito que ninguém falava mais. É claro que novos conhecidos não ficariam aturando o seu jeito explosivo. Naquele momento sentiu-se envergonhada por ter descontado suas frustrações em seus “amigos”.
— Desculpe! Você tem razão. Eu estou meio estressada essa semana — admitiu baixinho.
— O que aconteceu? — Vanessa preocupou-se e olhou-a novamente. — Você brigou com a Liz?
— Não, não é isso! — respondeu se sentindo desolada. Não estava com vontade de falar sobre aquilo. Queria apenas que a deixassem quieta. — Estou de TPM, daí fico mais chata. Desculpe mesmo!
— Você tem que se desculpar com o Edson. Ele ficou mesmo chateado.
Lia teve vontade de revirar os olhos, mas se controlou. Não queria passar aqueles meses sozinha e afastada das pessoas, por isso tentou pensar mais racionalmente.
— Eu vou conversar com ele, ok?
— Só tô falando isso porque a gente gosta de você e para te dar esse toque. — A amiga falou em tom compreensivo.
— Obrigada, Vanessa!
Assim como prometido, no outro dia, na hora do intervalo, Lia chamou Edson para uma conversa a sós. Gostava dele e já estava sentindo falta da alegria dele e das conversas.
— Desculpe por ter sido tão grossa essa semana! — falou sendo direta como sempre. — Eu ando meio estressada e descontei em vocês. Foi mal mesmo.
O amigo apenas balançou a cabeça em concordância e a olhou.
— Se eu soubesse que você ficaria daquele jeito, eu não teria brincado com o Viktor.
— Eu que exagerei! — admitiu envergonhada. — Fiquei daquele jeito porque eu sou comprometida. E não gostei da brincadeira.
Edson franziu o cenho e olhou-a surpreso.
— Eu não sabia, amiga!
— Como você poderia? Eu nunca disse!
— É. Você é um pouco fechada, já percebi. Fiquei esperando você se abrir um pouco com o tempo.
— Eu sou lésbica! — disse a ele pela primeira vez. — Eu deixei minha namorada no Brasil e não foi de boas. A gente brigou antes de eu vir e ainda estou de TPM esses dias.
— Poxa, amiga! — Ele abraçou-a e logo em seguida, falou: — Precisamos tomar um porre, isso sim!
Lia apenas sorriu. Edson sempre a fazia sorrir com seu jeito.
— Acho que estou precisando mesmo disso! — concordou ainda sorrindo.
— Então vamos sair no sábado. Vou combinar com a Vanessa e o restante do pessoal.
— Ok!
Os dois voltaram para a sala e enquanto andavam pelo corredor, viram uma pequena aglomeração de pessoas mais à frente. Eles olhavam empolgados alguma coisa no flanelógrafo. Somente no final das aulas, Lia e os amigos conseguiram ver do que se tratava o aviso que lá tinha. O intercâmbio havia aberto vagas de estágio na instituição e logo mais as inscrições começariam.
— Caramba! — Vanessa exclamou empolgada ao seu lado. — Eu vou me inscrever com certeza.
Aquela seria a vaga mais disputada sem sombra de dúvidas.
***
Depois de alguns dias, Lia passou por cima do orgulho e ligou para Liz, que por sorte a atendeu rapidamente naquela vez. As duas haviam discutido na semana passada.
— Que milagre! — Lia exclamou com ironia.
— Não começa, Lia, por favor! Eu não quero discutir com você. — Pode perceber que ela estava com a voz bastante cansada.
— Ok, eu também não quero discutir. Só queria saber o que está acontecendo.
— Muito trabalho, eu já disse!
Lia queria muito falar uma coisa com Liz, mas tinha certeza que não conseguiria convencer a namorada.
— Por que não vem me visitar? Eu estou morrendo de saudades!
A rockeira ficou muda por longos segundos e depois soltou um suspiro cansado.
— Eu também estou com saudades, linda. Acredite! Já te pedi um tempo justamente para me organizar. Esse tempo longe vai ser bom, você vai ver.
A raiva borbulhou dentro de Lia ao ouvir aquela sentença. Tinha certeza que Liz estava morrendo de saudades, mas não. Parecia mais aliviada do que saudosa. Aquela foi a gota d’água para a irritadinha. Liz estava sendo muito “seca” com ela ultimamente. Tentava não pensar de forma negativa e não fantasiar um monte de besteiras, mas era impossível com ela agindo daquele jeito.
Desligou o telefone sem dizer mais nada e o colocou no silencioso. Não queria mais ouvir nada do que ela tinha a dizer. Lia era uma pessoa insegura e sabia disso. Tinha certeza que esses momentos chegariam mais cedo ou mais tarde e se sentindo frágil, enrolou-se embaixo do lençol e chorou silenciosamente até pegar no sono.
***
Vários dias se passaram. Estavam no começo de Outubro e em período de exames, o que foi bom para distrair a mente de Lia, que estava dando um gelo em Liz, não que a outra fizessem muita questão de ficar sempre puxando assunto. Era como se a rockeira nem estivesse sentindo sua falta, o que só aumentava a sua raiva.
A vontade de Lia era de explodir suas frustrações em todo mundo, mas por algum motivo, conseguiu se controlar. Desde que Edson e Vanessa chamaram sua atenção, vinha conseguindo controlar mais seu gênio ruim quanto a isso. Até conseguia se sentir um pouco diferente naqueles dias apesar de tudo.
Depois de uma semana cansativa de provas, Lia marcou de sair apenas com Edson e Vanessa à um pub, e lá, depois de muita bebida, confessou suas mágoas para os dois. No geral, foi uma noite até boa, que a ajudou a retirar todo aquele peso do peito.
Enquanto ainda estavam no bar, Liz lhe enviou uma mensagem. Mais especificamente era um áudio bem longo. Pediu licença aos amigos e foi para a rua, a fim de evitar a zoada e conseguir ouvir o que ela lhe mandara.
No início do áudio, ela pedia desculpas por ter sido grossa e distante naqueles dias e disse que a amava. Ouvir aquilo sempre a derretia, era impossível não se sentir boba, porém precisaria de mais do que isso para que sua raiva passasse. Após breves segundos de silêncio, ouviu o suave som de violão. Ela havia gravado a música delas.
Eram aquelas coisas que acabavam amenizando tudo. Liz não era mulher de fazer esse tipo de coisa, por isso mesmo que sempre a pegava de jeito quando ela fazia. Havia esquecido de como era gostoso ouvi-la cantar e tocar, ainda mais aquela canção. Lia decidiu que não iria falar naquele momento. Estava um pouco alta e não queria fazer besteira, por isso apenas enviou um emoji de coração e agradeceu. Ligaria para ela no outro dia, assim poderiam se falar melhor e com mais calma.
Lia acordou tarde no domingo e sentindo dor de cabeça. Por sorte, Vanessa tinha remédio para enjoo e passou a manhã repousando e bebendo bastante líquido. Apenas na parte da tarde começou a se sentir melhor e assim que ficou sozinha, ligou para Liz.
Não demorou muito para que ela atendesse.
— O que você quer? — falou uma voz arrogante do outro lado da linha, lhe tomando de surpresa e espanto.
Lia ficou parada sem acreditar no que ouvia. Não podia ser. Era a voz de Cíntia...
***
Fim do capítulo
Comentar este capítulo:
Deixe seu comentário sobre a capitulo usando seu Facebook:
[Faça o login para poder comentar]