Dê-me abrigo
Eu estava apreensiva por conta daquele encontro. Não é como se fosse a primeira vez que eu levasse um interesse amoroso em casa, mas nunca antes com alguém da minha família sabendo claramente disso, que no caso era minha mãe.
E também não era como se fosse fácil ficar a sós com a Amanda, afinal eu não sabia bem o que esperar do nosso encontro. Poderia ser assistir filmes, jogar e rir, ou também poderia ser de outro teor. Pelo menos ela já tinha deixado entendido que poderia acontecer isso em algum momento, mas não necessariamente que tinha sido a sua intenção.
Suas intenções sempre eram as mais puras e naquele caso não seria diferente, então não tinha motivo para que eu organizasse meu quarto por tantas vezes para não passar uma má impressão.
Tomei banho, vesti uma roupa que passava a impressão de que estava em casa, mas que também não estava tão largada, já que passava a maior parte do tempo de pijamas e minha mãe, que lia no quintal, percebia minha apreensão.
— Querendo causar uma boa impressão? – ela dizia sem deixar de ler.
— Talvez... – murmurava comigo mesmo – Mãe?
— Não vou ser rude com a garota do seu apreço – ela me olhava como se me julgasse – Pode relaxar.
O interfone tocou, e fui atender. Era Amanda, que estava notavelmente bem arrumada e cheirando bem, usando uma calça jeans nova e uma camiseta presa por dentro da calça, assim como a camisa social que usava por cima. Estava com a mochila a tiracolo e estava com o cabelo preso, arrumado para que caísse alguns dos vários cachos por ele e estava sorrindo, como sempre.
— Entre, por favor – abri o portão para que entrasse, e a cumprimentei com um beijo no rosto, que a fez ficar envergonhada.
Ela olhava para a casa com um ar maravilhado, analisando cada detalhe.
— Uau – disse ela tirando os sapatos – Sua casa é linda.
— E falando em beleza, por que você está tão arrumada? – perguntei rindo, e ela pressionava os lábios, tentando conter o sorriso tímido.
— Foi o pessoal de casa que sugeriu que eu usasse isso. Ficou feio?
— Não, você está linda.
Ela sorriu abertamente, desviando o olhar tímido para os lados, visivelmente lisonjeada com o que tinha dito e retirou um embrulho da mochila.
— O que é isso? – perguntei curiosa caminhando ao seu lado.
— Minha mãe disse que é para levar para a dona da casa.
— Ela está lá atrás, vamos? – apontei com a cabeça para onde minha mãe estava.
Amanda caminhava reticente ao meu lado, com os lábios tremendo, e os passos lentos, até que chegamos até ela, que se levantou para cumprimenta-la.
— Boa tarde, Amanda.
— Eu... – ela esticou o embrulho para ela – Trouxe...Senhora – ela gaguejava, apreensiva – Quer dizer, minha mãe mandou para a senhora.
— Fico lisonjeada – ela abria o embrulho – O que se trata?
— Bolo de milho, especialidade da minha mãe.
— Obrigada, Amanda – ela o colocou na mesa de centro em frente ao sofá dos fundos – Hǎi yún, poderia fazer o chá para nós acompanharmos o bolo?
— Claro, já volto.
Estava receosa em deixar Amanda com minha mãe, mas sabia que não teria motivo para ter medo da minha mãe ou de alguma atitude sua. Algo que aprendi ao conviver com minha mãe era que, por mais que as coisas ao seu redor sejam totalmente adversas e a tirem da sua zona de conforto, ela se manterá sorrindo e gentil do mesmo jeito.
Não que ela tivesse aversão por eu me relacionar com garotas porque se tivesse, ela já tinha deixado claro antes. Na maior parte do tempo, só tinha receio de como o meu pai reagiria se visse algo a mais e só. Nossas brigas eram normalmente ocasionadas por isso, ou quando não eram pelo fato de não querer sair do quarto ou desistir de existir.
Levei o chá até elas, que conversavam normalmente sobre algum assunto que fora interrompido assim que cheguei. Comemos o bolo cremoso e devidamente elogiado por minha mãe tomando o chá verde, até que coloquei a mão sob o ombro de Amanda, chamando sua atenção.
— Quer assistir algum filme? – perguntei a ela.
— Claro – ela levantou as sobrancelhas, surpresa pelo meu toque – Com sua licença, senhora.
— À vontade – minha mãe assentiu com a cabeça e voltou ao seu livro.
Coloquei um filme que gostava bastante para assistirmos. No começo, ela se manteve distante, mas assim que se sentia mais à vontade com o espaço, aproximou-se aos poucos de mim, ainda mantendo a distância que achava correta, sem tirar os olhos do filme.
— Esse filme novamente, Hǎi yún? – dizia minha mãe, passando arrumada.
— Amanda ainda não tinha assistido.
— Ainda estou tentando entender na verdade... – ela cerrava os olhos, encarando a tela – Ele não vai recuperar a memória?[1]
— Não posso te falar o final – dei os ombros, sorrindo sugestivamente para ela, que resmungou, voltando a se atentar para a tela.
— Vou a um evento da faculdade, tudo bem?
— Sem problemas, mãe.
— Amanda vai dormir aqui?
Olhei para ela que timidamente concordou com a cabeça, olhando para minha mãe, que sorriu.
— Então fico mais despreocupada – e foi em direção a porta de saída – Qualquer coisa, é só me ligar.
E acenando para nós, que acenamos de volta, foi embora, me deixando sozinha com Amanda, que batia os dedos uns contra os outros.
— E seu pai?
— Só volta de viagem semana que vem – respondi a olhando de soslaio, que continuava vendo o filme.
— Então estamos a só?
— Sim.
Ela olhou para os lados e, ainda com as bochechas ruborizadas, encostou a cabeça em meu ombro e entrelaçou os dedos nos meus, respirando profundamente. Acariciei sua mão e, apoiando minha cabeça na sua, ali fiquei até o final do filme.
— Gostou do filme?
— É bem diferente... – ela concordava com a cabeça e, ao me olhar, esticou o corpo até pegar sua mochila e de lá puxar um outro embrulho, mas esse diferente do outro – Eu trouxe isso para você.
Estava curiosa do que se tratava e quando o abri, fiquei ainda mais maravilhada, e não consegui conter meu sorriso ao ver aquilo. Um bloco de papéis para desenhos profissionais, junto com os lápis que mais gostava de usar. Eu sabia o quanto aquilo não era barato, e lembro dela perguntar que material eu mais gostava.
— Eu passei saindo do trabalho em frente a uma papelaria e achei a sua cara – ela dizia tímida, coçando o pescoço – Deixei uma dedicatória na outra folha também...
Abri a contracapa e vi na sua letra rabiscada:
— “Para a maior artista que eu conheço. Amanda”.
— Não que eu conheça muitas, mas... – ela ficava com as bochechas ainda mais vermelhas, rindo sem jeito.
— Muito obrigada – não resisti ao impulso de me esticar e beijar seus lábios – Vou guardar.
Levantei e vi que Amanda continuou no sofá, imóvel, olhando para os lados.
— Gostaria de ir comigo?
— Sim – ela concordava, apressada ao se levantar e me acompanhando até lá junto com sua mochila.
Ao chegarmos lá, sentia um arrepio percorrer minha espinha. Estava nervosa em leva-la até lá, mas tinha que ter em mente não ter segundas intenções, então guardei seu presente junto ao meu material de desenho que ficava na mesa enquanto Amanda, deixando a mochila no chão, olhava para tudo com surpresa.
— Por que tudo na sua casa combina? – ela dizia, olhando para o teto e para as paredes.
— Feng shui – concordei com a cabeça.
Ela sentou em minha cama, e analisou, passando os dedos pelos desenhos que ficavam na parede ao lado, bastante atenta aos detalhes.
— São seus? – ela apontou para um deles.
— A maioria, alguns outros são presentes – apontei para o desenho ao qual ela estava apontando – Esse por exemplo foi presente de uma amiga, a Sofia.
— E esse aqui? – ela apontou para um que tinha feito recentemente – Parece estar bem triste.
— É porque sou eu – dei com os ombros, contendo minha risada mórbida. Ela levantou as sobrancelhas e assentindo com a cabeça, continuou a olhar para os demais.
— Eu já volto – apontei para o banheiro que ficava em meu quarto.
Suspirei fundo ao me olhar no espelho, me perguntando como deveria agir. Conferi o que usava por baixo para saber que, se acontecesse alguma coisa, ao menos estaria bem vestida para causar ao menos essa primeira boa impressão. Mas referente as minhas cicatrizes, eu não teria como esconder. Não costumava tirar a roupa nem mesmo em momentos mais íntimos, eu tinha vergonha de verem isso, e ali não era diferente.
Não sabia se deveria usar alguma coisa que deixasse claro que queria sua companhia, mas que também queria alguma coisa a mais. Meus pijamas não deixavam nada claro, então troquei minha roupa pela camisa larga de moletom não tão velho que tinha e soltei o cabelo, balançando-o ao me ver novamente no espelho. Parecia estar tudo em ordem.
Quando sai do banheiro, Amanda estava só de camiseta e calça, deixando sua camisa de lado e o cabelo solto e ao me ver, me olhou surpresa, como se tivesse a pego em pensamentos longes dali.
— Algum problema? – perguntei ao fechar a porta do banheiro.
— Não, nenhum – ela dizia em trôpegas palavras, encarando o chão ao manter os seus dedos entrelaçados um no outro. Parecia tensa, e não sabia se eu a estava deixando desconfortável.
— O que está achando da noite? – disse ao sentar do seu lado.
— Bem interessante – ela dizia pausadamente – Está sendo bem divertido.
Algo parecia incomodar Amanda, até que ela, ao suspirar fundo, falou:
— Seus pais sabem de você?
— Se sou lésbica? – perguntei levantando uma das minhas sobrancelhas – Sabem.
— E eles brigam com você?
— Minha mãe não liga, só meu pai que não aceita muito bem... – dizia, pensativa ao adentrar em lembranças passadas – Brigamos muito, mas não só por isso.
— Você vai fazer a prova pra Academia de Artes, não é? – ela olhava séria para mim, e segurou minha mão.
— Eu não sei, Amanda – dei os ombros, deixando o ar escapar pela minha boca – Já discuti tanto com meus pais que estou começando a me conformar que isso é mais uma diversão do que uma profissão.
— Mas, Hǎi yún, nunca vi uma pessoa que desenhasse como você.
E pegou um dos desenhos que ali tinham na parede com cuidado. Era um estudo de corpo feminino ao qual gostava muito pelos motivos errados e levou ele até minhas mãos.
— Como por exemplo, isso aqui está perfeito.
Abaixei a cabeça, envergonhada ao segurar aquele desenho da figura sentada séria, com os cabelos caindo nos ombros, encarando-me despida. Eu deveria ter guardado isso.
— Se eu falasse que eu te imagino assim, você ficaria com raiva?
Amanda me olhou séria e encarou o desenho novamente, e ao se levantar, colocou-o na escrivaninha, passando as mãos pelas calças.
— Desculpe, Amanda – dizia envergonhada – Eu...
— Não ficaria com raiva – ela respondia séria – Eu...Sentiria outra coisa, mas não raiva.
E me encarou.
Mas o jeito que ela me encarou fez com que eu sentisse que aquele frio que percorria minha espinha tomasse conta do meu corpo a ponto de me fazer ofegar baixo.
Amanda voltou a sentar ao meu lado, e colocando sua mão, que tremia sobre a minha, perguntou:
— Você me vê assim?
Balancei a cabeça devagar, concordando.
— E se... – ela murmurava baixo, olhando para o chão – Eu te visse da mesma forma?
Amanda engoliu em seco, e voltou a me olhar, com os olhos cerrados. Ofeguei mais uma vez, deixando o ar sair pela minha boca e, mordendo os lábios devagar, segurei seu rosto e a beijei.
[1] Referência ao filme “Brilho Eterno de uma Mente Sem Lembranças”, de 2004.
Fim do capítulo
O que será que podemos esperar do próximo capítulo?
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