Depois de um tempo sem postar, cá estou de volta trazendo um capítulo bastante interessante, eu diria.
Atordoada e confusa
Em toda vez que eu me sentia assim, eu lembrava exatamente da primeira vez que tive essa sensação.
Eu devia ter em torno de treze anos, e lembro de me sentir cansada de interagir com as pessoas. As vozes delas me incomodavam, ou o simples fato de ter que acordar cedo para poder ir à escola era um grande esforço.
Então logo após isso, eu não quis mais sair da cama, não importava o que minha mãe ou meu pai falasse, podiam até me atingir, mas não me faziam levantar. Não quis mais desenhar ou ler, e ficava só no me quarto, assistindo alguma coisa. Por vezes, mal comia ou tomava banho.
O médico falou que isso era por conta dos hormônios da adolescência, que era comum em garotas e que não precisavam se preocupar que logo eu ia me espertar, nas palavras dele.
A diferença é que já se passou anos desde isso, e ainda assim não sinto a vitalidade que falavam que eu iria ter de aparecer, pelo contrário, cada dia que passava era mais difícil manter a cabeça no lugar, e a ideia de acabar com tudo isso começou a rondar minha cabeça com mais frequência.
Sem vida, sem esperança, sem futuro.[1]Era exatamente como eu me sentia. Não fazia sentido eu ter que me levantar da cama e ir para o cursinho para consequentemente passar em uma coisa que não gosto e não tenho pretensões de carreira.
Mas, vendo por outra ótica, tomar conta do império do senhor Yǒng Wang parecia um pesadelo à parte. Desde cedo já aprendi que negócios com família não funcionam, e mesmo se eu quisesse, não participaria de algo do tipo com meu pai.
É mais aprazível ficar no meu quarto, com as janelas fechadas, fugindo do mundo lá fora do que qualquer outra coisa. Na verdade, nem mesmo fazia noção de quanto tempo eu já estava aqui dentro.
— Hǎi yún, está acordada? – disse minha mãe, batendo no quarto.
— Sim – na verdade, eu nem havia dormido.
Ela entrou no quarto e, com o ar notavelmente preocupado, sentou-se ao meu lado.
— Estou preocupada com você – ela passava a mão no meu cobertor, enquanto eu continuava encarando o teto e logo, ela.
— Vou ficar bem.
— Já fazem dois dias que você não sai desse quarto.
— Ah... – concordei com a cabeça.
— Se não quer ir para a loja, pelo menos vá ao cursinho. Sabe como seu pai...
— Bù fù zérèn de nǚhái, jiātíng chǐrǔ...[2] – balbuciava ironicamente, balançando a cabeça de um lado para o outro – Nada de novo.
— Bem... – ela se levantou, caminhando para perto da minha mesa, olhando para os desenhos – Se quiser tem chop suey na geladeira. Eu vou sair.
— Para onde a senhora vai?
— Reunião da faculdade, nada demais... – ela murmurava, segurando um dos lápis, olhando para ele.
Assenti com a cabeça, voltando a olhar para o teto.
— Até mais, então.
Ela saiu sem dizer nada. Pude ficar sozinha o suficiente para que aquela velha sensação invadisse o meu corpo mais uma vez.
O ar começava a faltar, fazendo meu peito formigar e o meu corpo a arrepiar, sentindo que o pior estava acontecendo comigo. Eu era o maior fracasso existente.
Havia falhado como filha, como amiga e como ser humano. Minha existência estava fadada ao fracasso, já que minha mente nunca iria me deixa em paz.
O pior sempre passava em minha mente, e o cenário era sempre o pior: nunca conseguiria me levantar daquela cama, nunca mais conseguiria comer ou tomar banho, ver alguém, sentir a luz do sol queimar, ou ser capaz de sorrir. Nunca seria feliz, isso não havia sido feito para alguém como eu.
Para alguém comum, isso a faria chorar, mas em mim não causava mais nada. Quando você se acostumava a isso, as coisas simplesmente passam e quando te atingem, acaba sendo mais doloroso que está preparada. Respirei fundo, esperando que passasse aquela sensação, mas sem sucesso. O problema quando você está assim, é que por mais que você saiba que não consegue expressar nada, é quando você mais sente que está acontecendo alguma coisa.
Sento-me na cama, respirando fundo, mas sinto a primeira lágrima fugir dos meus olhos mais uma vez. Eu odiava quando isso acontecia, mas não conseguia evitar quando começava o turbilhão intenso de sentimentos que tomavam conta de mim, mesmo quando acho que nada posso sentir.
Não conseguia silenciar minha cabeça. Quanto mais eu tentava me concentrar, mais a ideia de fracasso se alastrava em minha mente, tirando o pouco ar que restava. Tudo em mim me incomodava, e sentia enjoo de estar na mesma presença que eu.
Eu sabia bem o que fazer para que aquilo passasse. Abri a gaveta e tirei a lâmina de lá, respirando fundo e, assim tirei o short que usava, fechei os olhos e passei aquele fio gélido contra minha pele, abrindo o primeiro filete, assim como o segundo, o terceiro, e adiante...
— Hǎi yún! – uma voz gritava – Porr*, Hǎi yún, não!
Era Jude, que ao me ver, colocava as mãos na cabeça, em pânico. Correu até minha direção e, sem que eu percebesse, tirou a lâmina da minha mão, com os olhos brevemente umedecidos.
— Não, Hǎi yún, por favor, não... – Jude segurou minhas mãos e, ao afastá-las, me abraçou. Eu comecei a ouvir seu choro baixo, e isso me levou para que voltasse a como estava anteriormente.
— Eu sou uma grande fodida da minha cabeça, Judite – dizia soluçando – Não tem mais jeito pra mim.
— Não diz isso, eu estou aqui com você, ouviu? – ela me segurou com mais força – Eu não vou te abandonar...
— Eu já desisti de mim, Jude... – dizia, apoiando minha cabeça em seu ombro – Sou um caso perdido, mas não se preocupa...
— Hǎi yún – ela me segurou pelos ombros, pressionando os lábios para conter seu choro desenfreado – Nunca mais diga essas merd*s. Eu estou aqui, ouviu? Eu estou aqui, nunca irei te abandonar e nunca desistirei de você. Nunca, Hǎi yún – e voltou a me abraçar – Nunca.
Suspirei fundo e, segurando seus ombros, a abracei com mais força, permitindo a mim mesmo ruir em lágrimas.
*
Parecia estar imersa em uma ressaca desenfreada. Até mesmo a luz do sol incomodava meus olhos, e peguei um dos óculos de sol de Jude emprestado. Os dias sem dormir e sem comer direito estavam cobrando seu preço e o trabalho que eu fazia na loja era no modo automático, sem pensar muito sobre. Ao meu ver, meus pais tinham conversado de que aquela era a melhor maneira de me tirar de casa.
Estava de saída quando vi Jude na porta, gesticulando para que eu a acompanhasse.
— Vamos, Hǎi yún – ela abriu a porta do seu carro – Te levo na livraria, sei que está doida pra fugir daqui.
— Tá, pode ser – respondi, dando de ombros.
— E sua garota, não deu notícias? – perguntou ao entrarmos no carro.
— Ela me ligou por esses dias, mas eu não atendi. Não quero incomodar com essas coisas.
— Mas se vocês estão se conhecendo – ela dizia, dobrando uma das ruas indo ao centro – uma hora ou outra ela vai saber disso, não é?
— Ela já sabe – encostei a cabeça no vidro, suspirando.
— E o que ela falou? – disse Jude olhando para mim e logo para frente.
— Falou que não precisava ter vergonha dela.
— E o que está te dando receio?
— Uma coisa é você ver isso vez ou outra, outra é conviver com alguém que faz isso.
— Hǎi yún, tenho certeza que a Amanda te apoiaria. Ela realmente gosta de você – Jude olhava sério para o trânsito, e olhei para ela curiosa.
— Como sabe disso?
— Ela veio conversar comigo – ela dizia olhando para frente, passando a marcha – Queria a opinião de alguém mais experiente sobre se assumir pros pais e tudo mais. Ela está levando isso bem a sério.
Levantei as sobrancelhas, surpresa.
— Sério?
— Sim, garota, e pelo visto você não vai precisar esperar até o casamento para fazer alguma coisa – ela dizia em tom brincalhão.
— Como é? – dizia, esboçando um riso.
— Nada não – ela pressionou os lábios, parando na frente da livraria – Pronto, está entregue.
— Valeu, Jude – disse, saindo de lá.
— Não tem de quê – ela fez uma continência com a mão – Até mais.
Entrei no lugar, no qual o dono, que estava na frente me cumprimentou.
— Senhorita Hǎi yún, há quanto tempo.
— Boa tarde, senhor Ivan. O que tem para me indicar?
— Já pensou em dar uma chance pra literatura russa hoje? – ele puxou um exemplar de livro, colocando em minhas mãos – De um camarada meu.[3]
— Sugestivo, no mínimo.
— Tenho certeza que vai gostar, Hǎi yún. Fique à vontade.
Sentei no meu lugar habitual localizado nos fundos, mas assim que folheei o livro, vi que não tinha motivação para continuar lendo. Nem isso eu tinha vontade de fazer e frustrada, peguei minha prancheta de desenho. Fazia um bom tempo que não fazia nada e, da mesma forma que não conseguia ler, não conseguia desenhar.
Peguei o lápis e, com toda a força que me restava, risquei o papel com firmeza por longos círculos e desenhos disformes, sem nenhum sentido além de descontar o que sentia. Suspirei fundo e, tirando o óculos escuros, mergulhei entre meus braços, deixando meus pensamentos divagarem por um longo período.
— Hǎi yún?
Levantei a cabeça, e vi que era Amanda que, ao perceber o estado em que estava, sentou-se ao meu lado.
— Aconteceu alguma coisa? – ela afastava o cabelo que caía no meu rosto, afagando minha nuca. Estava visivelmente preocupada, olhando para minhas mãos e para minha prancheta, que recuei com os braços.
Suspirei fundo, lembrando do que Jude tinha conversado comigo.
— Eu me odeio, Amanda, tenho certeza disso.
Essas palavras eram duras demais para ela, que se aproximou de mim com devido cuidado, acariciando com a palma da mão meu rosto, com o olhar urgente.
— Não diga isso – ela dizia me olhando bem de perto, com a cabeça baixa para ver meu rosto que encarava o chão – O que aconteceu?
O que detestava mais além de demonstrar meus sentimentos era perceber que alguém os demonstrava para mim.
— Eu nunca vou ser suficiente para nada – ri de forma irônica, tentando disfarçar que queria chorar mais uma vez.
— Por que você acha isso? – ela me envolveu com seus braços – Isso não é verdade.
E o problema estava ali, quando olhava em direção aos seus olhos. Eles demonstravam algo que não conhecia até o momento da forma que ela demonstrava. Sua preocupação em meio aos seus braços quentes, seus olhos furtivos procurando qualquer sinal meu me deixavam sem reação.
Ela não merecia alguém quebrado como eu. Não precisava medir tanto esforço para alguém que não tinha mais jeito.
Tentei conter o choro, sem sucesso, já que ela, ao perceber que ia fazer isso, me segurou com mais força, mostrando de forma silenciosa com sua atitude que quando eu caísse, ela iria me segurar.
Amanda passava os dedos por meu cabelo, descendo por meu pescoço, apoiando seu rosto no meu.
— Eu sinto como se fosse defeituosa, Amanda – meus lábios tremiam ao falar as palavras que falhavam – Tem alguma coisa errada comigo.
— Você não tem defeito nenhum – sua voz estava embargada por emoções, como se ela próprio fosse chorar, entrelaçando seus dedos aos meus, encarando minha mão – Você é linda, você é inteligente, você é muito talentosa. É uma mulher cheia de virtudes.
— E por que não consigo ver nenhuma delas?
Ela segurou meu queixo, encarando-me de perto, séria com seus olhos que brilhavam contra a luz.
— Eu não sei, mas quero que saiba que todos os dias te lembrarei o quanto é importante – e voltou a segurar minha mão com firmeza, sem deixar de olhar para mim, com meus óculos já embaçados.
— Eu só faço mal, eu...Eu não sirvo para nada, eu sou um peso morto. A melhor coisa seria você se afastar de mim e...
— Hǎi yún, você não está sozinha, entendeu? – ela colocou minha mão contra seus lábios, a beijando com delicadeza – O que eu puder fazer para te proteger disso, eu farei...
Amanda engolia em seco, abaixando a cabeça. Era visível sua tristeza, e era a mesma que Jude expressava no dia que foi até em casa a mando de minha mãe.
Suspirei fundo e peguei sua mão de volta, trazendo para perto de mim, dando um beijo delicado entre seus dedos.
— Só de você estar aqui me ajuda, Amanda.
Ela engoliu em seco e olhando seriamente para frente, suspirou fundo e falou:
— Eu me assumi pros meus pais.
— Sério? – a notícia chegou de forma abrupta, me deixando visivelmente surpresa – E como foi?
— Ótimo, quer dizer, eles foram ótimos. Me sinto bem melhor também – disse Amanda, sorrindo.
— Fico feliz de saber disso – encostei-me em seu ombro, abraçando-a, deixando meus braços envoltos na sua cintura, mas ela ainda continuava tensa, e seu coração estava acelerado.
— Eu posso passar a noite com você – Amanda perguntava envergonhada, balançando a cabeça, com as bochechas ficando vermelhas – Quer dizer, posso dormir qualquer dia na sua casa? Podemos assistir alguma coisa para passar o tempo e...
— Eu quero que você durma comigo.
Amanda virou para mim e com um sorriso tímido que não deixava de aparecer em seus lábios, me aproximei dela e beijei-a, que logo retribuiu.
— Pode ser nesse sábado?
— Sim, para mim está ótimo – ela dizia ainda envergonhada, gaguejando e sorrindo.
— Então está marcado – respondi sorrindo mais uma vez e suspirando alto, encostei em seus braços convidativos mais uma vez – Você vai para a aula?
— Eu ia, mas... – ela me apertou mais contra seus braços, encostando sua cabeça na minha – Posso ficar aqui com você?
— Claro, seria ótimo.
Amanda aconchegou-se do meu lado e passamos a tarde dividindo a leitura, rabiscos que ela me encorajava a fazer dela e de outras coisas que estavam na livraria, assim como seu tom brincalhão de mexer nas coisas e rir, que consequentemente me fazia rir também. O tempo passou rápido ao seu lado e quando vi, já era hora de voltar para a casa.
Ela me deixou lá e após um longo abraço seguido de um tímido beijo, segui de volta para casa, me sentindo bem melhor.
— Está sorridente, Hǎi yún – comentou minha mãe entre um livro, sentada no sofá.
— O bà chega esse final de semana de viagem? – perguntei, tirando os sapatos.
— Seu pai só chega semana que vem, por quê?
— Posso chamar alguém para cá sábado?
Minha mãe levantou o olhar, surpresa, e voltou para seu livro.
— Não vejo problema algum, contanto que sejamos apresentadas antes.
— Eu irei fazer isso, não tem problema.
Ela assentiu com a cabeça e sentei ao seu lado.
— Tem problema se eu assistir televisão aqui?
Ela cerrou as sobrancelhas e, fechando o livro, gesticulou para que eu ligasse a televisão.
— Sem problemas, coloque um filme para nós assistirmos.
Balancei a cabeça e, em silêncio, vendo aquele filme, concordamos em ter aquele momento com nós mesmos, de maneira diferente das demais, entre mãe e filha.
[1] “No life, no hope, no future”, referência ao seriado Daria.
[2] “Garota irresponsável, vergonha familiar” do chinês: 不负责任的女孩, 家庭耻辱.
[3] “Pais e Filhos”, de Ivan Turguêniev.
Fim do capítulo
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