Eu vejo no escuro
Eu estava em meio a nada. Não havia nada em minha frente e ao meu redor. Não sentia dor, não sentia medo, tristeza, alegria, felicidade. Parecia que nada existia naquele espaço.
Eu...morri?
Se sim, parece menos dramático do que eu imaginava. Não havia nada ali.
O que eu ia fazer a partir dali? Não via meu corpo, minhas mãos. Era apenas minha consciência vagando em meio a um cósmico vão, então continuei seguindo o que imaginava ser minha frente.
Por um momento, percebi que vi alguma coisa, ou melhor, alguém e em um lapso de instante, vi que era eu mesmo, só que mais nova.
Eu me olhava com seriedade. A franjinha torta, a cara sardenta, o bico mau humorado com os braços cruzados me encarando. Usava o macacão de marinheiro que adorava, presente do meu pai.
Encarava-me de volta, eu parecia bastante chateada.
— O que está fazendo aqui? – perguntou meu pequeno eu a mim mesmo – Morremos?
— Não sei, eu acho que sim.
— E como foi?
— Overdose, provavelmente.
— Overdose é o quê?
— Quando você usa muitas drogas a ponto de fazerem você ter um curto circuito.
— A mamãe não vai gostar disso.
— Há muito tempo eu parei de ligar pro que a mamãe acha...
— E o papai?
— Também não.
— Tem certeza de que não se importa mais?
— Por que diz isso?
Abaixei-me para me olhar mais de perto. A pequena Alana, emburrada, fez uma cara de temor e se sentou, cruzando os joelhos e se abraçando.
— Acho que ainda estamos com medo.
E tudo sumiu mais uma vez.
Olhei para o relance e me vi, mais uma vez. Não deveria ter mais do que dezessete anos ali. O cabelo desgrenhado, as roupas largas e largadas, o olhar lascivo para tudo, o cigarro na boca, as olheiras profundas, as mãos frias.
— O que estou fazendo aqui? Eu morri?
Ela sacou do bolso uma carteira de cigarros e me ofereceu.
— Eu não existo, como vou aceitar isso?
— Só pega, porr*, para de dificultar as coisas.
— Ora, vai se foder... – disse para mim mesmo – Vai me responder ou não?
— Sobre o quê? Se morremos?
— Sim.
— Vamos dar uma volta e eu te respondo isso.
Eu caminhava em zigue zague, de forma despreocupada, enquanto minha consciência seguia o caminho feito por ela, sem entender bem como era isso. Eu aceitava o cigarro, e parecia que eu podia sentir ele, mas não podia sentir ao mesmo tempo, como uma lembrança apagada a qual só tinha ficado o vazio deixado por ela.
— Pensei que estava tudo bem entre nós.
— E estava, mas pelo visto não sou tão firme e forte quanto eu imaginei...
— Mas estava indo bem, sua idiota. Jogamos tudo fora por causa de uma psicopata? – olhei para mim mesmo com firmeza tomada pelo ódio latente.
— Ela me pareceu...
— Porr* nenhuma, Alana Maria – ela apontou o dedo em minha direção – Mais uma vez caindo no papo da Paula, como sempre. Nossa vida vai ser sempre isso?
— Não vai ter mais, já que acabou tudo...
— E se não tiver acabado? E se tivermos só desmaiada?
— Aí vai ser uma merd*, como sempre.
— Você não parou pra pensar nas pessoas que gostam da gente? O Alan, o Matheus, a Catarina...
— Eles vão viver melhor sem mim...sem a gente.
— Eu sabia que eu era idiota, mas não sabia que era tanto. Agora quer dizer pelos outros o que eles sentem?
Ela me encarou com seriedade. A mesma cara da minha versão criança, mas agora mais firme.
— Não sabe o que tive que passar pra chegar onde eu cheguei – disse, finalmente, mas isso a fez rir.
— Como se eu não fizesse ideia do que passamos pra chegar ao nível que chegamos agora, não é?
Eu queria chorar, mas não tinha sentimentos para expressar.
— Eu acho que acabou, Alana – disse ela, com o cigarro nos lábios, me encarando.
— O que você quer dizer com isso?
— Que essa nossa vida de agora acabou.
— Como?
— Sabe o que estou dizendo...
Tudo se emudeceu mais uma vez, e ela continuou sorrindo.
— Acha que é o melhor?
— Nós somos a mesma pessoa, só me manifesto de maneira diferente.
— Entendo...
Ela pegou o cigarro dos lábios, e suspirou, encarando-me com pesar, mas ao mesmo tempo com serenidade.
— Está na hora de acordarmos, Alana.
— O quê?
Alana pegou o cigarro das mãos ainda em brasa e enfiou no braço.
E assim, eu acordei.
*
O barulho da máquina de batimentos cardíacos soava ao lado. Acordei com os olhos arregalados, em um susto sem precedente algum. Minha cabeça doía pela claridade, e pisquei algumas vezes para me acostumar com a claridade.
Olhei ao meu redor, e tinha soro enfiado em minhas mãos, assim como medidores acoplados em meu corpo. Esfreguei meus olhos e me sentei. Sentia uma sede infernal, toquei meus lábios com a língua e os vi parcialmente rachados. Senti um leve enjoo e abaixei a cabeça, tentando me situar.
Estava no quarto de um hospital, disso eu sabia. Não havia ninguém do meu lado, mas sabia que tinha alguém ali por ter roupas, e um livro na poltrona onde tinha algumas cobertas, mostrando que tinha dormido ali.
Por quanto tempo eu estava ali? Quanto mais eu tentava pensar, mais minha cabeça doía. Foi tudo um sonho?
E assim a porta se abriu, com Alan vindo em minha direção, surpreso. Colocou a xícara de café do lado e veio me abraçar de imediato.
— Graças a Deus você acordou, Alana – dizia Alan com uma voz embargada de emoção – Meu Deus, fiquei com tanto medo...
— O que aconteceu? – dizia ainda confusa.
— Você está com fome? Vou chamar a enfermeira pra saber se está tudo bem você comer agora e...
— Só estou com sede...
Ele pegou a garrafa de água que tinha em cima da bancada e me deu um copo, ao qual não me contentei e tomei mais da metade da garrafa. Alan estava no telefone enquanto isso, avisando algumas pessoas de que estava melhor.
— O que aconteceu? – dizia baixando minha cabeça mais uma vez.
— Você não lembra o que aconteceu?
— Não... – franzia minha sobrancelha – Não consigo lembrar de nada agora...
— Não força as coisas, você ainda deve estar debilitada. Você precisa comer e...
Segurei a mão de Alan, que estava ao meu lado, chamando a atenção dele.
— Posso saber o que aconteceu?
Ele suspirou, e sentou-se do meu lado, sério.
— Você teve uma overdose e quase morreu. Só não morreu porque o dono da festa onde você estava se antecipou vendo que você estava exagerando falou com o Matheus e pouco depois, você desmaiou. Eles chamaram uma ambulância que coincidiu de estar por perto e te trouxe logo pra cá.
— Que merd*... – fechei meus olhos, pegando mais água – Que merd*.
Estava tomando água, quando uma lembrança invadiu minha mente. Arregalei os olhos, tentando sair da cama.
— Merda, eu...
Ele colocou a mão no meu peito, colocando-me de volta.
— Calma, Alana. Você ainda não tomou alta e...
— A apresentação da Catarina, Alan, se eu...
— Faz dois dias que você estava dormindo, Alana – dizia ele ainda me segurando.
— Dois dias?
— Os médicos falaram que era por causa dos medicamentos que você tomou, mas morremos de medo, você não tem ideia do que...
— A Catarina, onde ela está?
— Ela vem daqui a pouco, ela que está ficando de madrugada com você.
Continuava sem acreditar naquilo. Dois dias?
— Meu Deus, que...merd*. Eu não podia ter faltado isso.
— Está tudo bem, Alana, já passou e...
O sentimento que queria ter expressado naquele momento começou a aflorar naquele momento.
— Calma, Alana – ele passava a mão na minha costa – Ninguém está com raiva de você.
— Mas eu estou com raiva de mim – dizia, soluçando – Eu só faço merd*, eu fodi com minha vida de novo a troco de merd* nenhuma.
Mal tinha acordado e já me sentia desesperada. Meu corpo tremia enquanto me jogava de volta na cama, meus dentes batiam, meus batimentos aceleravam, deixando Alan apreensivo.
— Alana, tenta respirar, vem comigo...
— Eu deveria ter morrido, isso sim – dizia, enquanto chorava copiosamente.
Alan respirou fundo, se levantando e saindo pela porta, rápido. Enquanto ele foi embora, tentei tirar aquelas agulhas do meu corpo, mas sem sucesso. Quando tirei o soro, minha veia estourou, mostrando minha pele desidratada e o filete de sangue que subia junto ao pequeno cano.
As enfermeiras entraram junto com Alan, já com uma delas me segurando e outra preparando uma injeção. Olhei para aquilo e comecei a ficar angustiada.
— O que é isso? – dizia gritando – Que porr* é essa, Alan?
— Calma, querida – a enfermeira que me segurava dizia – É normal pessoas na sua condição ficarem...
— Condição o caralh*, cala a boca que você nem me conhece!
— Alan,por gentileza... – dizia ela para ela que, pressionando os lábios, me segurou do outro lado.
— Até você que é meu irmão está me traindo agora, seu filho da puta? – cuspia as palavras em sua direção – Você é um viadinho, tá entendendo? Vocês são todos uns...
A enfermeira com Alan me segurou firmemente enquanto a outra enfiav* a agulha contra o meu braço, pressionando o líquido que tinha no meu corpo, deixando-o com certo formigamento.
Respirava compassadamente olhando ao meu redor. Ela colocou os acessos de volta em mim enquanto minha respiração voltava ao normal, e as coisas soavam menos agressivas.
— Está se sentindo melhor? – perguntou a enfermeira que me segurava, passando a mão na minha cabeça. Acenei que sim.
— Ela já pode comer alguma coisa – disse a da injeção, séria – Mais tarde passamos pra ver se está tudo bem.
— Pode deixar, obrigado – agradeceu ele, cruzando os braços e me encarando enquanto elas iam embora.
— Desculpe ter te chamado de viadinho, Alan.
— Beleza – ele deu os ombros – Já me acostumei com isso.
Sentia-me moralmente mal, mas o cansaço que tomava meu corpo era maior e enquanto isso, dormi.
Fim do capítulo
Fortes emoções irão se suceder nos próximos capítulos...
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