Capitulo 3. De novo?
Alguns dias depois, Navy e eu estávamos tendo problemas com o sistema dos computadores da clínica. A secretária, que também vinha reclamando havia uns dias, nos indicou os serviços de alguém que ela conhecia.
- Você pode receber o técnico, Gorman? A patroa e eu temos uma consulta com a ginecologista hoje - Navy perguntou logo de manhã.
- Claro. Você falou dessa consulta. Então, vocês estão mesmo programando esse bebê?
- Pode apostar.
Depois do último paciente da manhã, a secretária anunciou que o técnico chegou e pedi que entrasse.
- Gorman, essa é a programadora, sócia do meu amigo que te falei, Tracy.
Fitamo-nos. Ela vestia uma blusa azul com a logomarca da empresa, uns jeans destroyed apertados e um par de all star.
- Tracy Lauren...
- Jacqueline...
- Vocês se conhecem, né? - a secretária perguntou com ar inocente.
- Ligeiramente - respondi, divertida e estreitei os olhos, fitando-a. - Mas... aposto que, como a amiga do sócio de Tracy, e sendo quem indicou a empresa para mim e Navy, você já sabia disso, não é?
- Bom... Eu... Eu posso ir almoçar? - ela desconversou. - Meu gato tá me esperando.
- Tudo bem. Não se deve deixar o gato esperando. Bon appetit.
- Obrigada.
- Mas não pense que não falaremos disso mais tarde.
Ela se despediu rindo e saiu. Minha atenção se voltou para Reed.
- E se for uma gata em vez de um gato? - ela devolvia o desafio que via no meu olhar. - Pode deixar esperando?
Eu dei um meio sorriso para ela e lhe apontei a cadeira à frente da minha mesa, enquanto eu voltava a me sentar.
- Por favor?
Agradeceu e se sentou.
- Gostei da clínica de vocês. E esse seu consultório... é uma graça.
- Obrigada.
Navy atendia adultos e eu, como odontopediatra, tinha decorado minha sala com brinquedos e personagens infantis. Na sala de espera da clínica também havia alguns brinquedos.
- As crianças devem até ter menos medo...
- É... Pelo menos a gente tenta, né?...
Sorrimos e ficamos um pouco em silêncio.
- Então... você é a técnica, Reed?
- É o que eu faço de melhor, Gorman.
- Ok.
- A não ser que você prefira chamar outra pessoa...
- Claro que não. Sua firma me foi muito bem recomendada. A não ser que você prefira não me atender.
- Claro que não. Eu nunca misturo negócios com... problemas pessoais.
- Certo. Deixe-me então te mostrar o que vem acontecendo...
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Oh, don't you dare look back
Oh não se atreva a olhar para trás
Just keep your eyes on me
Apenas mantenha seus olhos em mim
I said you're holding back
Eu disse que você está se segurando
She said "shut up and dance with me!"
Ela disse, "Cale a boca e dance comigo!"
This woman is my destiny
Essa mulher é o meu destino
She said, oh, oh, oh
Ela disse, oh, oh, oh
"Shut up and dance with me"
"Cale a boca e dance comigo"
Diante de mais aquela coincidência e possível armadilha, senti vontade de dar meia volta, mas eu era profissional, eu estava ali para trabalhar. Assim, resolvi entrar, fazer o meu trabalho e, só aí, ir embora. Ao menos foi o que eu fiquei me repetindo, até avistá-la. Gorman... Tão linda ela naquele jaleco branco... Aí, eu confesso que, por um momento, esqueci-me da história do profissional e tal...
Para com isso, Tracy, concentre-se no que importa.
Enfim, dei meu diagnóstico.
- Não é à toa que vocês têm tido todos esses problemas, Gorman. Esse programa tá bem ultrapassado e, vou te dizer, vocês têm corrido sérios riscos, a segurança é mínima.
- Verdade?
- É sim. Vamos precisar mudar todo esse sistema.
- Certo...
Comecei a explicar o que eu faria, mas ela me interrompeu.
- Você já almoçou?
- Não.
- Quer almoçar comigo? Eu ainda tenho uma hora, até o próximo paciente...
Pensei por um momento e ela resolveu se justificar.
- Ahhh... assim... pra você me explicar tudo e acertarmos os detalhes. Assim eu ganho tempo, te ouço e não perco meu almoço.
- Ok, então.
Ela retirou o jaleco e deixou a calça branca e a blusa vermelha à mostra. Deus... ela era um arraso...
Fomos a um pequeno restaurante perto do consultório, onde ela era bem conhecida.
Falamos sobre o trabalho que eu ia fazer nos computadores do consultório e nos sobrou algum tempo para jogar conversa fora.
- Como vai sua namorada, Gorman?
- Acho que está bem.
- Acha?
- Não a vi mais. Terminamos logo em seguida.
- Ahhh... eu sinto muito... - menti.
- Tudo bem, ruiva, não era pra ser.
Gostei de ouvi-la me chamando de ruiva novamente.
- Entendi.
- E você e... aquela garota com quem estava dançando?
- Nem me lembro do nome dela.
Ela riu. Pensei que diria mais alguma coisa, mas pareceu desistir.
Ficamos em silêncio, até que ela o quebrou.
- Na noite em que nos conhecemos e nas seguintes, não chegamos a falar em nada pessoal, primeiro nome, profissão...
- É. E por isso não houve pistas...
- Nunca imaginaria que fosse uma especialista em computadores, Reed.
- Nunca imaginaria que fosse uma dentista de crianças, Gorman, embora já soubesse que Jacqueline fosse.
Ela apenas balançou a cabeça para os lados, divertida.
- Paul, o amigo de sua secretária, é meu amigo desde a escola. Quando éramos adolescentes, ele bancava o meu namorado, naquela época em que eu ainda fingia não ser sapa e meus pais fingiam não saber.
Ela sorriu. Era difícil olhar aquele sorriso, sem pensar na minha língua dentro de sua boca.
- Nós trabalhávamos para empresas grandes, mas cansamos, gostamos mais de fazer as coisas do nosso jeito. Então quando o convidei para trabalhar por conta, ele aceitou na hora.
- Navy e eu nos conhecemos na faculdade e nos tornamos inseparáveis. Sempre pensamos em abrir uma clínica juntas.
- Coincidências e mais coincidências. Na faculdade, também conheci uma garota que se tornou minha melhor amiga, Hilary. Apresentei-a ao Paul. Que inferno, fui mesmo a alcoviteira... Eles se apaixonaram mesmo e estão juntos até hoje. Meu melhor amigo e minha melhor amiga.
- Muito legal isso.
- É sim. O problema era quando eles brigavam porque eu não podia tomar partido.
Rimos.
- Posso imaginar.
- Foi ele quem me passou esse trabalho, me pediu uma atenção especial porque se tratava de um amigo...
- Veio às escuras - ela afirmou.
- Vim. Só percebi quando cheguei à porta da clínica e vi o seu nome na placa.
- Não pensou em dar meia volta, ruiva?
- Na verdade, pensei.
Aquele sorriso de novo... Sorri também.
Olhei para o meu celular.
- Sabe quantas mensagens e telefonemas já têm aqui pra eu responder? - perguntei.
- Eu também. Povo louco... - ela balançou a cabeça para os lados, com um delicioso ar sorridente.
Referíamo-nos aos nossos amigos e, claro, às nossas mães.
Acertamos que eu voltaria no dia seguinte pela manhã, para começar o trabalho. Expliquei que seria algo simples de usar, mas complexo de fazer e, instintivamente, aumentei a dificuldade do trabalho, dizendo precisar de mais dias do que o realmente necessário.
Quase duas semanas indo até o consultório e almoçando com ela e, algumas vezes, com Navy também.
Vi que a rotina delas era meio louca, nem sempre o dia era calmo como aquele primeiro. Às vezes, o almoço era bem tarde e se compunha de apenas um ou dois sanduíches.
Notei outras coisas: Gorman também tinha alguns pacientes adultos, a maior parte mulheres. Algumas pacientes e mães de pacientes mirins demonstravam um interesse particular nas dentistas.
Durante nossos almoços, aprendemos um pouquinho sobre a vida uma da outra. Entendi, por exemplo, porque a mãe dela que, ao contrário da minha, não costumava se meter na vida dela, tinha feito de um tudo para que nos conhecêssemos.
- Então, da segunda vez que você me deu o bolo, você foi socorrer sua ex? Elsie?
- É. Ela me ligou, estava bêbada, chorando...
- Então vocês se dão bem?
Ela levantou os ombros.
- Estávamos juntas havia um tempo e, até onde eu sabia, éramos apaixonadas. Fazíamos planos, casamento, filhos e tal. Então eu lhe dei um anel e a pedi. Ela aceitou. Mas depois disso, algo começou a acontecer, ela adiava a marcação da data, eu a sentia distanciando-se cada vez mais. Aí eu perguntei o que estava havendo e pedi sinceridade - suspirou. - E tive sinceridade. Disse que não sabia mais se ainda era aquilo que ela queria...
- Dureza...
- É... E você, ruiva? Qual é a sua história? Desilusão ou apenas descrença no amor?
Eu ri.
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Deep in her eyes
No fundo de seus olhos
I think I see the future
Eu acho que vejo o futuro
I realize this is my last chance
Eu percebi que esta é a minha última chance
She took my arm
Ela pegou meu braço
I don't know how it happened
Eu não sei como isso aconteceu
We took the floor and she said
Nós tomamos a pista e ela disse
Reed era do tipo "não tô nem aí", mas eu desconfiava haver um motivo por trás daquela atitude.
Quando perguntei, ela riu, mas seus olhos percorreram o nada e o olhar ficou triste.
- Meu problema com tempo não é só de atrasar, é também com datas. Cadence, a "falecida". Ela ficava louca comigo porque eu nunca me lembrava das datas. Ela lembrava de todas. Com um ano e cinco meses de namoro, quis surpreendê-la e cheguei cedo ao apê dela, a gente tinha a chave uma da outra. Eu ia fazer uma surpresa romântica pra quando ela chegasse do trabalho.
Riu de novo, um riso nervoso, a cabeça balançando para os lados. Olhou para cima e suspirou.
- Fiquei parada com a porta aberta, assistindo aquele espetáculo grotesco. Pode imaginar? Cadence tava trans*ndo com outra no meio da sala. Tinha roupas espalhadas por todo lado. Nem fechei a porta. Voltei correndo pelo corredor com os gritos dela me chamando às minhas costas. O elevador chegou e enquanto a porta fechava eu a vi esbaforida enrolada numa toalha, implorando que a esperasse.
Respirou profundamente.
- Dureza... - repeti o comentário dela para mim.
Ela mostrou um meio sorriso.
- Ela ainda passou um tempo me procurando, tentando se explicar.
- Você a amava - afirmei.
- Amava. E não pude mais... Não somente porque a amava, mas porque não me senti mais amada. Não pude entender a atitude dela. Eu ainda a deixei se explicar uma vez e... sinceramente, não entendo "só um deslize" quando você ama.
- Eu também não. Você não namorou mais, desde então?
- Algumas semanas aqui e ali. No mais, eu gosto de curtir. Beber, dançar, beijar...
Aquilo explicava tudo, éramos bem diferentes.
- Eu me tornei reclusa, desde Elsie.
- E eu voltei a sair direto, como não fazia mais, quando estava com ela. A gente já não saía tanto e, quando saía, era pra estar juntas.
- Coisa de casal - sorri.
- É - ela sorriu também.
Uma vez, eu toquei no assunto dos nossos encontros, ou melhor, desencontros.
- Diga-me, ruiva, você não foi àqueles encontros às escuras pra me dar o troco, não foi?
Ela sorriu.
- Você provocou...
Eu sorri também e foi a vez de ela me questionar.
- Diga-me, Gorman, por que você nunca foi àquela noite na boate?
- Eu fui.
- Foi?
- Fui e te vi beijando outra.
- Ahhh... Nem pensei nisso. Você demorou e achei que tinha me sacaneado...
- Não demorei tanto assim, era uma balada, não precisava chegar às vinte.
Revirei os olhos.
- Eu não cheguei às vinte, mas...
- Eu queria ir embora, mas nossas mães ficaram me segurando. Sua mãe dizia que você ainda ia chegar, que te ligou e você disse que iria...
- Deus, Gorman... Mamãe, às vezes, precisa ouvir o que ela quer ouvir.
- Entendi.
- Mas... Você foi embora só porque me viu beijando outra?
- Mas... Você beijou outra só porque eu não cheguei?
Eu ri.
- Ok... Mas só pra constar, eu nem me lembro do nome dela também.
- Ok, só pra constar, Tracy Reed, foi bom esclarecermos o que realmente aconteceu naquela noite.
Enfim, Tracy terminou o trabalho. Navy e eu gostamos do resultado.
Era fim de manhã de uma sexta. Reed esperou que eu atendesse o último paciente, para me pedir algo. Navy saíra um pouco antes, a secretária perguntou se podia ir almoçar e a dispensei.
Finalmente, terminei e me despedi da criança e da mãe à porta da clínica, trancando-a.
- Prontinho. Podemos falar agora.
- Não sei se devia, não quero abusar, mas...
- O quê? Pode falar, ruiva.
- Eu tô com um dente me incomodando, desde cedo...
- Ei, claro que devia. Por que não disse antes? Podia já ter visto. Vamos ver, vem cá.
Levei-a até minha sala, troquei o papel de maca que cobria a cadeira, coloquei máscara e um par de luvas descartáveis.
- Sente-se aqui. Vamos ver... qual é o dente?
- Esse. Acho que é esse que dói.
- Certo. Assim dói? Não? E assim?
- Hã hã hããã...
- Pode falar.
- Acho que... acho que não é bem o dente que tá doendo...
- Não? O que então? A gengiva parece bem saudável.
- Não sei direito - ela puxou minha máscara. - Acho que é a língua... aqui na pontinha... olha bem de pertinho...
- Ah... sei... - sorri - Na língua?...
- É...
- Deixa eu ver, então. Abre a boca - tirei as luvas enquanto falava.
Obedeceu-me.
- Põe essa língua pra fora, ruiva - sussurrei junto ao seu ouvido.
Fim do capítulo
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