O delator ataca novamente
— Não sei se foi uma boa ideia termos vindo.
Alan e eu estávamos no aniversário de nosso pai e claro, a família toda estava reunida. Não ficávamos assim com nossos parentes desde o ocorrido com Alan, que ficou evidente não ter sido esquecido, já que vez ou outra, olhares maldosos vinham em nossa direção.
— Comemos e vamos embora – sussurrou Alan para mim enquanto cortávamos caminho entre a multidão concentrada no quintal da formosa casa do meu pai.
Sentamos e brindamos uma cerveja de marca que foi servida para nós. Tinha até esquecido como era a vida antes de tudo. Esquecido mesmo, já que no horizonte, vi nossa mãe se aproximando, arrumada com elegância. Levantamo-nos e a cumprimentamos.
— Que surpresa ver a senhora por aqui, mãe – disse Alan, puxando uma cadeira para que ela sentasse.
— É uma surpresa para mim também – ela olhava diretamente para mim, e com repreensão pelo fato de estarmos bebendo – Mas seu pai insistiu, não faria essa desfeita.
— Essa festa deve ser bastante importante para ele, foi até nós nos convida – Alan dizia, puxando assunto.
— Onde ele está? – perguntou minha mãe.
— Não sei – respondi sem muita importância – Provavelmente com a outra família.
— Já viu a irmã de vocês? – minha mãe perguntava com rispidez.
— Não – comentei – e nem faço questão. Viemos só para não fazer desfeita também.
— Como vocês estão?
— Estou bem – comentou Alan. Minha mãe olhou para mim.
— Estou há um mês sem consumir drogas, parabéns pra mim – dei os ombros – Vou ganhar uma medalha ou uma estrelinha por bom comportamento?
Ela fez uma careta, e olhou para o outro lado.
— Não fez mais do que sua obrigação.
Minha mãe nunca foi de demonstrar carinho. Sua postura ríspida é presente desde que eu era criança, e se repetia em nós dois. Sempre elegante, com a postura rente e sempre com o ar de que estava pronta para atacar alguém pelo pescoço.
Mas, enquanto eu bebia, olhava para toda aquela situação. Ver todos nós reunidos era no mínimo, estranho, como se fosse algo montado, arquitetado para parecer tudo perfeito na família perfeitamente disfuncional.
Não havia muito o que conversar além de coisas superficiais da festa. Já não éramos muito íntimos quando convivíamos um com os outros, sequer agora com a distância e mágoas presentes.
E não demorou muito para que meu pai aparecesse com sua nova mulher, e uma criança ao seu lado. Agora sim, a família perfeita. Cumprimentou a todos até chegar a nossa mesa, sozinho. Ao menos nisso ele teve senso.
— Fico feliz de que tenham vindo – ele estendeu a mão para nos cumprimentar. Cumprimentou a minha mãe e a Alan, mas recusei com meu olhar cerrado, o que o fez dar os ombros.
— Bem, fiquem à vontade – meu pai voltou a falar, passando as mãos na calça perfeitamente alinhada – Daqui a pouco começará a festa.
Ele saiu dando um sorriso traquino, irônico, de uma criança preste a fazer alguma travessura por entre as mesas dos convidados. Voltei a beber e saí para fumar um cigarro.
Olhando a situação de longe, do meu ponto afastado de fumo, tudo parecia estar muito bem como eu lembrava. As perguntas de namorados, os questionamentos das roupas, as tias que falam o quanto você cresceu, e claro, toda a hipocrisia familiar que mantinha-se latente no meio daquela reunião.
Ver meu pai ali, sorrindo, me causava raiva. Não uma raiva de inveja, mas uma raiva de rancor, do porquê ele teve o direito de seguir feliz do jeito que queria e para nós foi sujeito a sorte de uma mãe maníaco-narcisista e expulsões de casa. A família estava toda ali pelo dinheiro, mas também estava pela sua presença. Ele era especial, querido, a figura honesta. Nós éramos o que restou, o que deveria ser ignorado, descartado, esquecido.
Apaguei a ponta do cigarro na parede e voltei para a mesa, com minha mãe olhando com reprovação.
— O mesmo mal costume do pai.
— A senhora não está pagando pelo meu cigarro – retruquei.
— Olha o respeito, menina – ela disse em um tom autoritário. Revirei os olhos.
— E eu ligo pro seu respeito?
— Gente, por favor, sem brigas, Alana – comentou Alan, segurando em minha mão.
Batida nos microfones sucederam-se a pequena discussão. Meu pai deu uma leve tossida em frente ao palco, solitário. As atenções voltaram-se a ele.
— Com licença, pessoal. Não gostaria de estragar a conversa de vocês, mas gostaria de fazer um breve discurso, aproveitando que todos estão aqui.
Servi mais cerveja para mim e Alan, com o corpo virado para o lado onde ele estava falando. Meu pai respirou fundo, estava notavelmente nervoso, mas pegou o microfone do apoio e voltou a falar.
— Fazia tempo que gostaria de reunir toda minha família assim, e quando digo toda, é toda mesmo. Meus irmãos, meus primos, minha esposa, meus filhos. Meus dois filhos mais velhos vieram de outra cidade só para estar conosco, acredita?
Algumas pessoas viraram para nos olhar. Ele voltou a falar.
— Então, como vocês devem imaginar, tem um motivo para que esteja reunindo todos aqui hoje além do meu aniversário. Eu gostaria muito de comemorar esse aniversário com vocês e principalmente, expor um pouco da minha vida com vocês.
Ele deu uma pausa, e continuou.
— Estou pronto para chutar o pau da barraca – e deu um sorriso maldoso. Cerrei os olhos e voltei a olhar para as pessoas que estavam na mesa comigo, que também não entenderam.
— Eu gostaria de falar que eu sei que eu sou um filho da puta, com todo respeito a minha mãe, um ordinário, um canalha, um cretino. Eu sei que sou tudo isso, eu larguei a minha primeira esposa para ficar com a minha atual e acredita? Estou traindo-a também por uma garota vinte anos mais nova do que eu, quase da idade da minha filha mais velha.
Todos olharam assustados. Eu, de olhos arregalados, tentava entender o que estava acontecendo. A atual esposa dele manteve-se em silêncio, e minha mãe ria em uma risada coberta do prazer da vingança.
— Pelo menos eu acho que essa não está grávida, mas vai saber? – ele ria – E também enganei as pessoas da minha empresa para conseguir essa vida luxuosa que eu tenho, e vocês acham que eu ligo? Não ligo.
Um primo dele tentou conte-lo no palco, mas logo meu pai o empurrou.
— Não se mete, eu ainda estou falando, porr*.
— Caralh*, o que está acontecendo com o papai? – Alan dizia assustado. Minha mãe ainda ria, balançando a cabeça, e mantive-me em silêncio, apenas apreciando a beleza do caos que se instaurava.
— Continuando, pois é – ele começou a andar entre as pessoas – Não ligo. Vocês acham que meus luxos se pagam como? Trabalho em cima dos outros, ora. Se acreditam que foi só pelo meu esforço, vocês são todos idiotas. Só se for o esforço de enganar os outros. E falando em enganar...
Ele parou, rindo consigo mesmo, com uma das mãos no bolso. As pessoas da festa só tinham a olhar para aquela cena.
— Tem uma coisa que eu martelo há algum tempo. Sabe aquela pequena mentira que vai acumulando e te consumindo? Pois é. Meus filhos não saíram de casa porque quiseram.
A conversa agora tinha tomado um rumo interessante.
— O Alan foi expulso de casa porque é meio bicha enrustida e...
Os olhares fulminantes vieram até nós. Alan perdeu a pouca cor que tinha, olhando para mim atônito. Minha mãe se levantou no mesmo instante.
— Você não tem direito de falar da intimidade dos meninos!
— O que tem? – ele falava de um jeito brincalhão – Eu não ligo se ele corta pros dois lados. Nunca liguei pro que os meninos são. Você que os expulsou de casa, esqueceu?
Ele tinha razão. Foi ela que convenceu o papai a colocar Alan para fora quando pegaram ele dormindo com o melhor amigo que teoricamente, era o parceiro de estudo dele para entrar na escola naval. Falou que era o necessário para torná-lo homem de verdade. Não funcionou, inclusive. Papai de primeira foi relutante, mas ela conversou com ele e quando ele o fez, ela não fez nada. Sua parcela de culpa estava ali.
Alan respirava fundo, o tempo vivido longe das amarras deles tinha dado a ele forças o suficiente para se impor, mas não o suficiente para se manter impassível e minha mãe ficou sem palavras. Ver o teatro que ela tinha montando tão intrinsecamente ruindo no meio de tantos familiares e figuras conhecidas era como o fim para uma militar tão rígida como ela. Porém, nem mesmo nesse momento ela perdeu a compostura, e meu pai, como a criança travessa que mostrou-se ser, continuou.
— Não só Alan, como Alana – ele sorriu para mim – Minha filha querida, amada, tão desejada é uma sapatona de primeira.
Ouvir isso vindo do meu pai foi demais à minha mãe, que estremeceu. Tudo bem para ela Alan, o homem da casa, ter ido embora de casa e ainda assim sair com mulheres quando o convém, mas ver a filha, o espelho deles ser aquilo que mais trazia receio a ela era como um golpe de punhal ao qual sua armadura não tinha estrutura suficiente.
Meu pai riu.
— Eu fico julgando a Andreia, mas também não dei apoio nenhum pra nenhum deles. Alana me procurou chorando no dia que saiu de casa e eu não fiz nada.
Ele parou de rir e pude ver as lágrimas nos seus olhos. Ele respirou fundo e voltou a falar.
— Não fiz nada pelos meninos, não fiz nada por eles. Agora eles estão aí crescidos, tomando conta da vida deles e eu percebi que não fiz nada. Fui um péssimo pai e marido, pensei que o problema fosse com eles, mas faço a mesma coisa na minha nova família – ele parou, respirando – Pena que está tarde demais para fazer diferente.
Meu pai começou a rir de novo, mas ainda chorava.
— Só me resta agora tentar me desculpar por tudo que eu fiz e poder ir em paz. Desculpe, pessoal.
Ele largou o microfone e foi embora.
Um silêncio fúnebre tomou conta do local, até que as pessoas começaram a ir atrás dele. Minha mãe manteve-se séria, olhando para nós dois. Alan começou a chorar.
— O que é isso, Alan? – disse minha mãe, séria.
— Me deixa em paz – e foi embora. Peguei e acendi um cigarro.
— Você nunca dá uma dentro, major Andréia.
— Se você não apagar essa porcaria agora, eu vou fazer você engolir essa merd*.
Ri e levantei-me, jogando a fumaça para longe.
— Adoro uma mulher selvagem.
Caminhei indo atrás de Alan. Dessa vez, ele que precisaria de ajuda.
Fim do capítulo
Agradeço desde já a todas que estão acompanhando essa história, principalmente os comentários! É muito gratificante compartilhar esse tipo de conteúdo para vocês.
Comentar este capítulo:
Marta Andrade dos Santos
Em: 12/08/2021
Pai escroto misericórdia!
Resposta do autor:
infelizmente sempre tem um ente familiar assim :(
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