Coração de vidro
Assim que cheguei na escola, percorri meus olhos procurando por Amanda para saber se tudo tinha corrido bem em sua entrevista.
— Ei – uma voz alta gritou atrás de mim. Quando virei para olhar, vi Amanda notavelmente envergonhada e o porteiro sentado ao seu lado, que apontava para ela – Está procurando essa garota aqui?
— Ela mesmo – fui até onde estavam e me sentei ao lado de Amanda.
— Eu vou lá dentro e já volto – ele disse se levantando, sorrindo em nossa direção.
— Vocês são bem próximos, né? – comentei para Amanda, que com seu tímido sorriso, olhava para o chão antes de olhar de relance para mim.
— Sim, o Silvio é muito legal.
Passamos um tempo em silêncio. Amanda sempre mantinha aquele sorriso no rosto, com os lábios levemente pressionados e assim que me olhava de volta, abaixava o olhar sem antes fazer o mesmo. Aquilo trazia certa eletricidade que condensava e se dissipava no ar no momento em que me via olhando em seus olhos.
— Como foi sua entrevista, deu tudo certo? – sussurrava para ela.
— Sim, começo amanhã mesmo.
— Sério? Fico feliz por isso, de verdade.
Perguntei-me ali em que momento eu quis tanto tocar alguém. Era como se cada parte de mim desejasse aquilo, e que eu não poderia pensar ou agir direito se eu não fizesse aquele simples ato de esticar minha mão e colocar sobre a mão de Amanda apoiada no banco.
Ela levantou o olhar tímido, escuso, em direção a sua mão e em seguida ela, ao virar a mão, entrelaçou seus dedos com o meu, acariciando minha mão.
— Como posso te recompensar por ter feito meu currículo? – ela trazia agora sua mão, junto a minha, para mais perto de seu rosto.
— Te ver assim é minha maior recompensa.
Amanda deu um pesado suspiro, dando um largo sorriso.
— Como resistirei a isso?
— A quê? – voltei a sussurrar me aproximando ainda mais dela.
Nos encaramos por alguns segundos, e a luz da tarde refletia graciosa, complementando perfeitamente com Amanda. Não tive outra reação a não ser, de forma contida, beijar o seu rosto.
— Só pra caso ainda tiver dúvida.
— E só para que também não tenha...
Amanda deslizou os dedos devagar pelo meu rosto, segurando meu queixo e se aproximando de mim, fechando os olhos. Quando fiz o mesmo e senti sua respiração mais próxima a mim, uma voz urgente ressoou no fundo.
— Eu sabia que vocês tinham um rolo.
Minha primeira reação foi me afastar de Amanda, depois ver quem estava falando e ao olhar para trás, vi a figura de Luiza de braços cruzados e olhar fulminante.
— Eu falei que você estava a fim dela e você se fez de desentendida, Amanda. O que custava falar? – Luiza falava em tom alto, acusatório, que fez logo Amanda abaixar a cabeça, constrangida, o que me causou furor.
— Ela não é obrigada a te dar satisfação, Luiza.
— Abriu mais uma vaga pro grupinho das sapatonas e eu não estava sabendo? – ela mexia os ombros para frente e nos olhava de cima de forma autoritária, como se fôssemos pegas cometendo um crime ao qual nunca cometemos.
Amanda evitava briga ao máximo, detestava isso a ponto de que por mais que ela estivesse em seu direito, faria de tudo para que isso acabasse e se isso significasse ficar calada, ela o faria.
Mas eu não.
— Não, tem vaga pra indecisa também.
— Indecisa é você que não sabe se come carne de cachorro ou morcego – ela destilava ódio nas palavras – Eu sou bissexu*l*.
— O que está acontecendo aqui? – disse Silvio, olhando para a situação causada.
— Nada – Luiza dizia com sarcasmo – Só o casal que estava indo dar uma tesourada nervosa depois daqui né.
E ela fez o sinal com os dedos, um no outro. Olhei para a Amanda, que estava com as mãos trêmulas, de cabeça baixa, e Silvio ao ver isso como vi, foi até o seu lado.
— Não fala assim... – Amanda dizia com a voz falhada, com as mãos tremulando ainda mais. Isso aumentou ainda mais a raiva que já tinha de Luiza.
— Ninguém tem culpa por você ser uma ciumenta problemática, Luiza – respondia da mesma forma que ela, que cerrava os olhos ainda mais odiosos.
— Ficou sentida por ainda viver no armário, Hǎi yún Wang?
— Da mesma forma que você ficou depois namorar com a Judite e quando seus pais descobriram, você falou que era tudo culpa dela?
Luiza foi até minha direção apertando o passo, mas Silvio a segurou.
— Por que não vai cortar os pulsos pra lá? – Luiza falava com ódio e sarcasmo.
Não que minhas atitudes contra mim fossem um segredo, mas ouvir alguém falar daquela forma me doía mais do que qualquer xingamento. Tanto que sequer consegui falar algo, porém antes de qualquer outra ação, Amanda interveio, se colocando entre nós e empurrando Luiza, que continuava tentando se aproximar.
— É melhor você sair daqui, Luiza.
— Ou o quê? Vai continuar defendendo isso? – ela apontava para mim.
— Se arranjar uma briga com a Hǎi yún, arranja uma comigo.
Amanda falava com uma raiva que ainda não tinha visto, o que foi suficiente para que ela parasse.
— Então foda-se vocês duas! – Luiza afastou-se e entrou na escola batendo os pés enquanto Silvio olhava para tudo que tinha acontecido sem reação.
Fui até Amanda, que ainda encarava o chão. Estava visivelmente abalada com toda aquela situação.
— Você está bem? – perguntei, me abaixando para ver ela de perto.
— Vai melhorar – ela tentava esboçar um sorriso.
— Desculpe por isso, eu acabo me irritando com essas coisas e...
— Tudo bem – Amanda disse, passando a costa dos dedos sob minhas bochechas – Ela que estava falando bobagem mesmo.
Não demorou para que Luiza passasse com suas coisas, indo embora. Levantei e estendi as mãos em direção da Amanda, apontando com a cabeça para a sala e ela, com seu sorriso acanhado no rosto, assentiu e segurou minhas mãos, caminhando comigo em direção a aula que começava.
*
— Mas a Luiza é uma filha da puta mal amada mesmo – dizia Jude, com os braços cruzados jogando o corpo para atrás de sua cadeira – Como ela faz isso com você e com a garota? Por que ela não usou os braços fortes pra ameaçar a Luiza?
— A Amanda não faz mal a uma mosca, Jude, quem dirá para uma pessoa – suspirava, esticando minhas pernas na mesa de centro de Jude, enquanto via sua nova pretendente passando de lingerie pela casa – O que aconteceu com a Marta?
— Águas passadas, Hǎi yún – ela acendia o cigarro, jogando a fumaça para cima – Mas e você e a beata?
— A Amanda? O que tem? – perguntava enquanto bebia o refrigerante do meu copo.
— Vocês já trans*ram?
Quando ouvi isso, me engasguei com o refrigerante que estava tomando no mesmo momento, sentindo ele descer pelo meu nariz, o que fez Jude dar uma gargalhada alta.
— Judite, isso não é coisa que se pergunte – dizia a garota sentando ao seu lado, pegando o cigarro de suas mãos.
— Não, né? – Jude levantava as sobrancelhas, rindo.
— Mal nos beijamos, Judite.
— Estou realmente interessada em conhecer ela – ela virou para a garota – Acredita que ela está com uma pedreira coroinha? Nunca pensei que existiria uma garota tão exemplar como essa.
— Ela não está mais trabalhando em uma obra – disse levantando o dedo em atenção – ela está trabalhando em uma transportadora agora, na parte interna.
— Sério? – Jude dizia, surpresa e pegando o cigarro de volta, colocando nos lábios – Que legal, ela merece.
— Se ela trabalhava em uma obra, ela deve ser forte, não é? – a garota conjecturava.
— Sim – Jude concordava com a cabeça.
— Imagina como ela deve ser na cama, enforcando ent... – Jude colocou a mão na boca dela antes que continuasse a falar. Abaixei a cabeça totalmente envergonhada com tal comentário.
— Então, não vamos entrar em detalhes... – Jude dava um sorriso constrangido, o qual pouco tinha visto – Não queremos ver a Hǎi yún excitada, ela está se guardando para a beata.
— Judite, você é ridícula – mostrei o dedo do meio para ela.
— Vem logo, preciso da sua ajuda crítica e ácida em uma edição ali – ela estendeu as mãos para mim, se levantando, e as segurei, seguindo para seu quarto junto com a nova garota.
*
No chegar de casa, vou direto para a cozinha esquentar o resto do almoço para o jantar, e estou comendo quando minha mãe chega.
— Está melhor hoje, Hǎi yún? – perguntou ela, colocando suas coisas na mesa. Respondo dando de ombros, o que a faz revirar os olhos e sentar ao meu lado.
— Como foi na Jude então?
— Normal – respondo diretamente.
— Seu pai não está em casa, você pode...
— Agir normalmente? – disse olhando para ela, que suspirou exasperada e eu voltei a olhar para o lámen.
— Como queres que eu te ajude se estais sempre armada?
— Como quer que eu converse se você sequer aceita quem eu sou? – colocava os hashis de lado, gesticulando com a mão em direção a meu peito – Ou sequer passar um tempo comigo? E o tempo que passa, é para me acusar de que sou ingrata pela vida boa que levo, que eu deveria me esforçar mais, entre tantas outras coisas que nem vale a pena falar porque se não, eu vou perder a fome.
— Como tens coragem de dizer que vivo para te acusar se sou eu que sempre te defendo do seu pai? – seu tom era indignado – E não me fale de tempo, você sabe minha rotina puxada naquela universidade e...
— Claro, a senhora só me dá atenção no dia que eu tento me matar e olha lá, se estiver na sua agenda também.
Ela se levantou de prontidão, batendo as mãos na mesa.
— Você é igualzinha ao Yǒng.
— Bù kèqì.[1] – respondi, dando com os ombros mais uma vez e voltando a comer, enquanto a via ir direto para o quarto, assim concretizando mais um dia normal em família. Terminei de comer e fui para o meu quarto desenhar.
[1] “De nada”, em chinês: 不客气
Fim do capítulo
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