Capitulo 14 - Pãozinho
Comecei a gargalhar histericamente, mas ao mesmo tempo sentia as lágrimas escorrendo pelas laterais dos olhos, sabe aquela risada misturada com choro que você se sente um lixo prestes a ter sua vida guiada pelos outros ao invés de ter algum controle sobre ela? Pois é.
— Isa, eu tô falando sério. A gente podia, sei lá… Alugar um apartamento ou uma quitinete. — Ele andava determinado, de um lado para o outro contornando a cama e desviando da poltrona onde eu estava.
— E depois?
— Como assim? — Ele me olhou confuso e eu seriamente comecei a me preocupar com a inocência dele.
— Fer, tem noção que meus pais já “shippam” a gente, sem motivo algum? Se passarmos a morar juntos vamos praticamente “assumir” algo que NÃO existe! — Tentei explicar calmamente como se falasse com uma criança, mas no fundo da minha voz era possível detectar minha impaciência, eu estava por um triz.
— Fodam-se eles, Isa! Melhor é criar essa criança e dar pra ela uma vida, pelo menos, normal! — Ele passou as duas mãos na cabeça, levantando os fios negros para cima em um gesto muitíssimo familiar.
— Ei…
Levantei da poltrona e parei seu andar frenético, coloquei meus braços ao redor da sua cintura como fazia quando estava em minhas fases depressivas. Ele me abraçou de volta colocando o queixo sobre minha cabeça e suspiramos juntos.
— Você quer ser pai? — Fiz a pergunta sem me desfazer do seu abraço, ele era meu melhor amigo, o elo entre mim e… Bom, era pelo menos uma lembrança que eu teria dela e se ele estava disposto a dar uma vida melhor para essa criança, eu também estava. Confesso que não me sentia mãe ainda, eu não era o tipo de garota que sonhara ter filhos um dia, eu tinha apenas vinte e três anos. Tinha tantos sonhos e planos, o destino desta vez conseguira se superar em ferrar com tudo que planejei.
— Eu nunca tinha pensado nisso… — A voz dele soou acima da minha cabeça respondendo a minha pergunta.
— Eu também não. — Confessei pensativa e muito longe de ter noção sobre o que aquela gravidez significaria para nossas vidas.
O meu celular tocou me tirando os pensamentos e eu mordi o lábio inferior depois de olhar a tela.
— É a Cami. — Murmurei para mim mesma já prevendo suas perguntas. Eu não falava com ela desde o dia da formatura, apesar de gostar muito dela, eu não gostaria de expor meus sentimentos e conflitos tão cedo, havia reservas na minha forma de me relacionar, reflexo da minha falta de controle emocional com Micaela.
— Fala com ela! — Fernando segurou meu ombro me dando apoio moral. — Ela é muito gente boa e gosta de você pra caralh*, ela vai entender.
— É… Acho que eu não tô entendendo mais nada ultimamente e acabo transferindo isso para as pessoas…
Ele levantou as sobrancelhas assentindo com a cabeça e o celular parou de tocar. Respirei fundo e retornei sua ligação.
***
— Juuuuu!
Eu gritei da cozinha com a panela de macarrão na mão.
— Ah não gatinha, de novo? Quando você vai aprender a fazer macarrão, hein? — Júlia adorava esfregar na minha cara meus “dotes culinários”.
— Quando você parar de arruinar meus orgasm*s!
Não dava para dizer se ela tinha ficado vermelha, seu tom maravilhoso de pele a ajudava disfarçar embaraços, mas eu a conhecia o suficiente para dizer que aquele sorrisinho era sim seu jeitinho de dizer que havia a deixado sem graça. Soltei a panela e a abracei achando graça nela. Ela era adorável.
— Eu adoro quando você desvia os olhos quando tá com vergonha, sabia? — Beijei sua boca.
— A senhorita não vai se atrasar para a sessão com aquele casal?
— Não muda de assunto! É sério… Faz aquilo comigo de novo que eu te mordo MESMO! — Fazia minha cara de malvada que ela adorava.
— Gostosa safada!
Pronto. Aí estava minha Júlia, gargalhei em pensamento. Essa mulher havia sido minha única companhia naqueles últimos meses, eu não saberia mensurar o quanto ela significava para mim e o quanto era importante sua presença. Depois do episódio em Ribeirão Preto eu havia despencado em um abismo sem fim, me via caindo e ultrapassando camadas de mim mesma que talvez jamais fosse recuperar novamente, mas Júlia havia sido como sempre, perfeita. Não só como profissional que era, mas uma amiga e amante que me trouxera aos poucos até a superfície, e eu não sei em que momento emergi, mas dou certeza que foi a melhor coisa que me aconteceu na vida. Eu voltava a ser a Micaela de antes e evitava qualquer pensamento que me levasse até ela. Não ter mais contato com Fernando me ajudou muito no processo, eu não sabia absolutamente nada sobre eles, nem mesmo minha mãe falava algo, apesar de estar visitando Linda cada vez com menos frequência desde que ela conhecera Júlia e percebera que nossa relação era mais do que apenas um flerte. Jú praticamente morava comigo, raramente íamos ao seu apartamento, por isso mesmo que semana passada a convidei para mudar-se definitivamente e economizar dividindo um só aluguel. Estávamos portanto vivendo a melhor lua de mel dos últimos tempos.
— Vamos pedir comida? — Ela sussurrou languidamente no meu ouvido e eu entendi o recado de imediato. Soltei a panela dentro da pia e agarrei sua cintura levando-a até o sofá enquanto despia sua calça de academia. Mal se sentou e ela se abriu totalmente para mim, com aquela cara safada que eu adorava. Mergulhei nela arrancando seus melhores gemid*s, suas mãos bagunçavam meus cabelos e suas pernas inquietas denunciavam seu estado. Entrei com vontade, sem aviso ou pedido e ela gritou, me arranhando o pescoço como uma gata selvagem que eu dificilmente domaria um dia. Júlia era a personificação da independência, ela jamais seria mulher de uma única pessoa, mas era íntegra demais para não ser sincera, saía com mais três outras garotas que ela já ficava há algum tempo, sendo uma delas uma antiga ficante minha e vez ou outra flertava com outras mulheres que conhecia. Todas suas saídas eu estava ciente e de certa forma ficava feliz por ela, sua felicidade era minha felicidade. Ela era minha melhor amiga e minha confidente em todos os aspectos.
— Eu quero foder você com ele! — Ela gem*u concordando e implorando. Seu sabor, sua temperatura… tudo nela me excitava, então saí depressa em direção ao quarto e voltei usando somente o strap *n.
— Vem. — Ela me chamou se virando de costas, ficando de quatro apoios no sofá. Soltei um gemid* enquanto sentia sua carne resistindo à minha investida inicial. Eu já estava quase lá, mas me segurei para aproveitar um pouco mais dela. Cada vez que entrava e saía era um nível que subia em meu sangue, seu suor fazendo sua pele brilhar, o som dos nossos corpos em atrito, seu gemid* longo…
— Senta. — Ordenei me sentando e puxando-a para meu colo. Ela se sentou de costas para mim e eu agarrei seus seios colando meu rosto em suas costas, não ia resistir por mais tempo, toquei seus lábios entre as pernas e ela gritou trêmula enquanto eu também me libertava e tremia junto. Ofegantes começamos a rir, como quase sempre acontecia. Olhei o relógio da cozinha e dei um aperto em sua cintura.
— Droga! Vou me atrasar!!!
Ela saiu depressa buscando o celular para pedir algo rápido enquanto eu corria para o banho. Não precisávamos dizer nada, nossa comunicação era quase por sinais.
Cheguei no estúdio com quinze minutos de atraso e eu odiava não cumprir com horários. Cumprimentei o casal que aguardava junto à recepção e pedi desculpas já encaminhando ambos para o local de fotos. Foi uma sessão maravilhosa, eles eram incríveis! Uma conexão além do mundo carnal, não paravam de trocar carinhos e geralmente era preciso pedir para que houvesse algum contato em casos em que o casal era mais tímido ou retraído, mas ambos agiam naturalmente e eu sabia que as fotos ficariam perfeitas.
— Eles são tão fofinhos… — Essa que murmurou é minha secretária Gisele, uma estudante de Artes Plásticas que tinha apenas dezoito anos, mas possuía uma visão muito parecida com a minha, o que me fizera contratá-la de imediato quando a conheci em uma entrevista. — Eu jamais imaginaria que haveria um casal de homens com essa idade, sabia?
Eu sorri com o brilho dos seus olhos.
— É… Realmente é raro ver casais dessa idade. — Carlos e Rogério tinham setenta e sete e oitenta e um respectivamente e eram de uma geração onde ser homossexu*l* não era só abominável, era crime. Em nosso primeiro contato pude saber um pouco sobre eles e quando Carlos contara quase perder a audição por causa de um espancamento que sofrera na juventude, me vi voltando no tempo deles, querendo encontrar as pessoas que fizeram aquilo com aquela pessoa franzina e de feição bondosa. Abominável era o preconceito dessas pessoas infelizes! Rangi os dentes sem perceber e Gisele me olhou pesarosa, talvez criando suposições por saber que eu também fazia parte da comunidade.
— Você já sofreu algum preconceito por ser lésbica? — Ela colocou o queixo sobre uma mão, enquanto se inclinava em sua pequena mesa de madeira, e eu a observei. Seu namorado a buscava todos os dias de moto, era tão jovem quanto ela… E sempre que os via pensava em como era fácil para heterossexuais apenas viverem sua sexu*l*idade. Plenos. Não havia preocupação quanto a isso, não eram cobrados ou vigiados. Eles apenas viviam. E ouvir a pergunta característica de Giselle não me incomodava de forma alguma, pois era a oportunidade que eu tinha de plantar uma “semente” em sua mente, quem sabe dali não surgiria um fruto capaz de eliminar a praga chamada preconceito.
— Se já sofri preconceito… — Eu sorri novamente para ela. — Eu nasci nele.
Meu sorriso morreu assim que dei-lhe as costas, não de forma grosseira, apenas encerrei por ali o assunto, a semente precisava ser plantada aos poucos e Gisele ainda precisava ser “adubada”, como dizia Júlia. Saí em direção ao estúdio disposta a esquecer meu passado e me concentrar na edição das fotos daquela sessão inspiradora que tive de Carlinhos e Rô, que era como intimamente se chamavam.
***
— Tomou o remédio que a doutora passou? — Fernando segurava meu cabelo, enquanto eu colocava toda minha janta para fora. Não respondi sua pergunta, já que era a décima vez que ele fazia e eu já havia respondido que SIM em todas as vezes.
— Amor, vem eu te dou um banho! — Camila apareceu com uma toalha, já me direcionando para o chuveiro e eu apenas me deixei levar. Se alguém me avisasse que a gestação era algo extremamente bizarro, eu manteria distância de homens por toda minha existência.
— Vou ter que sair, mas volto cedo, tá? — O pai do meu filho – por mais estranho que isso possa parecer – sentia a estranha necessidade de me avisar onde ia ou com quem saía, já havíamos conversado sobre esse assunto desde quando finalmente nos mudamos os três para o apartamento que a tia de Camila estava alugando, havia dois meses que estávamos ali e eu ainda não entendia essa necessidade dele em me avisar.
Horas depois e Camila me fazia um carinho na cabeça enquanto eu tentava uma posição confortável com a barriga imensa. Eu havia preferido não saber o gênero, não fazia diferença e eu chamava de “pãozinho” aquele ser inquieto que crescia dentro de mim, que amava a voz do pai e chutava toda vez que eu tomava banho, que ficava agitado quando eu comia sorvete ou cantava. Camila zombava dizendo que minha voz devia ser assustadora do lado de dentro do “forninho”. Me ver grávida era algo tão surreal que a ficha parecia ainda empacada, não estava acreditando que seria mãe, que teria alguém dependente de mim… Era assustador, confesso.
— Seu celular… — Camila me passou o aparelho que vibrava insistente em cima da mesa de canto, era minha mãe.
— Filha, vocês vão amanhã?
Toda semana. Eu fechei os olhos sem responder exatamente a mesma pergunta que Dona Silvia fazia toda semana. Sua maior felicidade era ter o casal dos seus sonhos, indo até sua casa aos domingos para almoçar, enquanto ela lança indiretas, mais do que diretas, sobre um futuro entre eu e o pai do meu filho. Iludida, ela tenta me persuadir a casar com Fernando, mesmo sabendo que eu, ele e minha NAMORADA apenas convenientemente dividimos um apartamento. Sim, eu já havia dito em alto e bom tom que meu caso com Fernando fora uma mera noite de carência e irresponsabilidade, não havia a mínima chance de nos relacionarmos e que minha relação real oficial era com Camila, contudo eu precisava aprender mais com mamãe sobre insistência, por que ela havia batido o Record de melhor criatividade em criar “momentos” comigo e Fernando, assim como evitar assuntos incluindo eu e Cami, ou casais homossexuais. Era chato, era inconveniente, era egoísta… Mas ela era a pessoa que me ajudava a pagar o aluguel, me acompanhava em algumas consultas quando Fernando não podia ir, me levava para comprar coisas para o “pãozinho”, que aliás me surpreendia em todas as vezes, por que era incrível a existência de milhares de coisas para bebês hoje em dia. Quando ganhei minha bomba Tira-Leite foi um episódio interessante… Graças a ela não passei tanta vergonha em frente algumas amigas no chá de bebê. Ou seja, Silvia era necessária, era minha mãe, foi minha melhor amiga em muitos anos da minha vida e eu a amava, mas a sua não aceitação com minha sexu*l*idade conseguia por tudo isso à prova.
— Mamãe, eu…
— Sua voz tá tão fraquinha, filha… Você anda se alimentando bem? Quer que eu tire uma semana para cuidar de você? Eu posso pedir para Luzia me substituir, ela não ia se importar.
— Eu tô bem, mãe. Só estou cansada… Não sei o que Fernando tem planejado para amanhã, mas… Eu e Cami podemos ir almoçar sim. — Camila arregalou os olhos para mim nessa hora e eu apenas toquei em sua coxa tentando mostrar que estava tudo bem.
— …
— Tio Fábio vai cozinhar? Tô com saudade daquele peixe assado na churrasqueira que ele faz. — Fiz minha melhor performance de “filha amada”, mas seu silêncio era sepulcral.
— Sua amiga não visita a família? — Sua voz era suave, ela não queria ser grosseira, mas a pergunta em si trazia tanto preconceito que me atingia como um soco no estômago.
— Você sabe que ela é minha namorada, mãe.
— Isabella, eu não quero discutir…
— Não é um assunto “discutível”, só estou te passando uma informação… Pela milionésima vez, talvez.
— Veja com Fernando, então… Tudo bem?
Pronto. Lá estava ela ignorando completamente tudo que já conversamos e fugindo por uma tangente inexistente. Silvia era uma mãe maravilhosa e eu me inspirava em muitos pontos positivos do seu caráter, principalmente materno. Mas essa forma surreal dela de lidar com a minha sexu*l*idade só me trazia mais convicção de que eu precisava ser uma mãe diferente para “pãozinho”.
No dia seguinte acordei muitíssimo melhor, Cami havia cuidado tão bem de mim e Fernando havia trazido um suco dos Deuses que eu amava, era feito em um varejão um pouco distante de onde morávamos, mas sempre que podíamos fazíamos compras lá. Aproveitei que ela ainda dormia e tomei um banho demorado, canalizando toda minha atenção em acalmar “pãozinho” que se agitava, massageei minha barriga que despontava imensa e meus seios que estavam ainda maiores. Eu havia engordado quase quinze quilos e estava na trigésima terceira semana de gestação. Sorri ao lembrar como minha libido havia alcançado níveis consideráveis após o quarto mês. E foi com esse pensamento que desliguei o chuveiro e me sequei. Ainda nua me deitei ao lado de Cami, tocando seus cabelos, agora roxos.
— Bom dia… — Ela gem*u se espreguiçando e me abraçando, percebendo minha nudez sorriu buscando meus lábios.
Seu beijo era incrível, ela tinha uma facilidade em perceber quando eu queria algo e foi com esse pensamento que virei os olhos e gemi forte com sua boca já me devorando entre as pernas.
— Ah Cami… — Ela entrou em mim, tão devagar e profundamente…
Eu coloquei o travesseiro no rosto sabendo que provavelmente Fernando já havia acordado e poderia ouvir. Gemi próxima ao ápice, ela aumentou a velocidade e eu gritei contra o tecido de algodão, sabendo que deveria estar tão molhada que seria mais um dia de troca de lençóis antes da hora. Antes que eu pudesse me recuperar ela subiu em mim, se sentando no meu rosto. Eu adorava a forma como ela rebol*va, essa era sua posição favorita. Agarrei seu quadril intensificando meu beijo e ela gozou em alto e bom som, fazendo eu rir baixinho pensando sobre todo meu esforço em fazer silêncio.
— Uau!
— Você sempre vai dizer isso, não é? — Eu achei graça e beijei seus lábios.
— Enquanto for “uau”, com certeza!
Gargalhamos juntas e tomamos café da manhã com um Fernando parcialmente constrangido. Ele disfarçava e nos olhava de canto de olho, depois gargalhávamos os três cientes de que nossa relação era nada padrão e isso que fazia da gente o que éramos.
— Isa, sua mãe me ligou super cedo, cara… — Fernando soltou de boca cheia.
— Ela te ligou? — Quase cuspi o café que tomava, já formando as milhões de pragas que vomitaria naquele almoço.
— Ela ligou pra você também?
— Oba, vamos todos almoçar na sogrinha, uhull! — Camila ironizou se levantando e levando os pratos para pia. A cozinha era minúscula e fizemos o possível para deixar o ambiente aconchegante, mas as vezes aquela proximidade me sufocava. Eu só queria torcer o pescoço de alguém. Pãozinho se agitou empurrando minha bexiga e eu pedi desculpas mentalmente por ser uma possível mãe assassina.
— Vamos os três? — Fernando engoliu o que mastigava e cruzou os braços. — Então, talvez quatro…
— Quatro? — Meus olhos brilharam.
— Aham…
— Quem é? — Camila se aproximou interessada, ele não tinha falado muito sobre sua última ficante. A gente sabia que havia uma pelo fato dele estar saindo quase todas as noites, mas… Era Fernando.
— Vocês vão conhecer hoje. — Seu olhar era enigmático e eu torci mentalmente para que a garota realmente fosse e minha mãe engolisse de vez aquela necessidade insana de me jogar contra ele. — Ela se chama Verônica.
— Pois eu já amo a Verônica! — Me levantei com cuidado, para atender ao chamado da natureza, já que meu pãozinho devia estar brincando de slime com a bexiga da mamãe. Aquele almoço seria interessante.
***
Meus olhos captavam cada detalhe da sua expressão, era um olhar destemido que me encarava de volta, ao mesmo tempo sua boca trêmula involuntariamente formava um desenho que refletia carinho, cuidado e muita sabedoria. O que se escondia por trás daqueles olhos já azulados pelo tempo? Quais seriam os medos que ela trouxera da infância, até a avançada idade? Teria tido amores proibidos assim como acontecera comigo? Ou teria sido afortunada em não se preocupar com esse tipo de problema na vida?
— Vamos dar uma pausa? — Eu suavemente ofereci deixando a câmera de lado e me aproximando dela.
— Não precisa, filha… Pode fazer seu trabalho.
A voz rouca possuía um tom tão maternal que eu quase a abracei. A sentei em uma poltrona mais confortável que o banco que usávamos para as fotos e fui buscar um café quentinho na recepção. Júlia se despedia de uma mulher na porta, eu cumprimentei as duas de longe, mas apenas Júlia me respondeu de volta, a mulher me olhava com cara de poucos amigos e agarrou o rosto de Júlia antes de lhe dar um beijo cinematográfico sem tirar os olhos de mim.
— Nossa! — Gisele balbuciou atrás de mim baixinho. — Essa alfinetada até eu senti.
Olhei de relance para ela sem responder, não dando espaço para que ela criasse teorias ou suposições de algo que não lhe dizia respeito. Voltei com o café para minha sala e também estúdio, dando de cara com Dona Cecília cochilando placidamente contra a poltrona. Sorri terna achando a cena mais fofa daquele dia e saí fechando a porta com cuidado a deixando só para descansar um pouco mais.
— Vamos, gatinha? — Júlia se aproximou beijando meu rosto quando eu desviei dos seus lábios.
— Jú, eu ainda estou com uma cliente.. Pode ir, eu te encontro no jantar.
— Não não não, bebê! A gente combinou de fazer aquela “coisa” juntas, lembra? — Ela me olhou sem graça evitando falar muito quando perto de Gisele, que não tirava os olhos de nós duas com um sorriso curioso no rosto.
— Você não tinha consulta até às dezessete, hoje?
— O paciente desmarcou… Ele sempre faz isso em cima da hora. — Ela revirou os olhos já acostumada. — Ele que me aguarde na próxima consulta.
— Tenho um pouco de medo quando você fala assim. — Eu ri.
— Você sabe que meu lado psicopata é totalmente controlado, gatinha.
Ambas gargalhamos com a cara assombrada que Gisele nos olhava. Fomos juntas até a cozinha deixando minha secretária com sua própria reflexão, assim que ficamos a sós ela me abraçou beijando meu pescoço de forma nada decente.
— Jú… Sua amiga não ficou nada contente em me conhecer. — Me virei em seus braços pegando seu rosto para prestar atenção ao que eu dizia.
— Quem? Talita?
— Ela é a Talita?
— Sim, você lembra dela…
— Ju, não é por que você me conta das suas “garotas”, que eu realmente conheço cada uma. — Sorri achando graça no seu jeito todo singular.
— Ela é tão tranquila, por que acha que não gostou de você?
— Não sei, foi um olhar meio “ela é minha, não se meta”, sabe? Você conversou com ela sobre a gente… Sobre as outras?
— Claro! Você sabe que é a primeira coisa que eu digo quando saio com alguém… Nossa, estou preocupada agora. — Ela roeu as unhas de forma ansiosa, nada comum vindo de Júlia.
— Ei, calma. Desculpa te preocupar, eu só não enten…
— Você fez bem em me falar, Mica! Eu sou muito observadora e não perceber isso na Talita, pode ser indício de que ela não esteja sendo totalmente verdadeira comigo, talvez.
— Pode ter sido só ciúmes.
— Ou ela criou expectativas além do que conversamos, apesar de termos conversado bastante sobre isso.
— Nem todo mundo entende seu modo de ver o amor, linda…
— O mais contraditório e complexo é que ela disse se atrair exatamente por esse meu lado… Estranho. — Seu olhar vago na direção da parede era familiar para quem a conhecia o suficiente.
— Ok, liguei a Super Júlia…
Eu levantei as mãos para cima deixando ela e suas análises comportamentais em paz. Eu sabia que ela precisava de espaço quando tinha algo importante para refletir, então não insisti e voltei para o estúdio, afim de despertar a Bela Adormecida Dona Cecília.
***
— Esse peixe está maravilhoso, Seu Fábio. — Camila era tão amável e simpática que qualquer um era capaz de gostar dela de cara. Menos meus pais.
— Fernando, sua mãe disse que você foi promovido, meus parabéns! — Tio Fábio direcionou toda sua atenção ao sobrinho, elogiando-o pela promoção que havia recebido na fábrica em que trabalhava e ignorando totalmente minha namorada. A comida escorregou lentamente por minha garganta. Eu odiava aquele machismo nada velado que as pessoas tinham por jovens do gênero masculino. Eu fazia estágio no mesmo lugar desde o terceiro ano de Fisioterapia, após comunicar meu chefe sobre a gravidez não houve argumentos, eu estava fora. Mesmo sabendo que eu era a mais solicitada entre as mães que confiavam a mim seus filhos. Não importava. Eu era mulher e estava grávida, logo não era mais uma funcionária apta ao trabalho.
Olhei para Camila e vi seu semblante triste, isso me queimou por dentro. Ela era uma pessoa maravilhosa e estava sendo julgada sem nem ter tido a oportunidade de mostrar quem realmente era. Ela havia trabalhado em uma concessionária famosa da cidade por muito tempo e após todo abuso que sofreu do seu chefe que sempre direcionava clientes homens para seu atendimento, a fazendo usar uniformes sensuais e prática de vendas nada sutis, ela simplesmente chegou ao seu limite e raspou a cabeça eliminando um dos pontos fortes de sua feminilidade. Foi demitida no dia seguinte. Hoje trabalhava em um salão de cabeleireiro e após muitos cursos ela se viu uma profissional no assunto e tinha muitos clientes. Eu sentia um orgulho imenso por ela.
— Meu salário praticamente dobrou, tio… E eu curto muito o trabalho.
Olhei Fernando e relembrei quando ele começou na fábrica. Sem expectativas, sem experiências, sem conhecimento. Ele simplesmente foi aceito, na primeira entrevista. Quando me contou o salário inicial eu fiquei abismada, isso era o que eu ganhava em três meses, se fizesse plantões aos finais de semana. Não queria sentir o que eu sentia, eu amava Fernando, estava feliz por ele, mas não vou mentir que fiquei incomodada com o fato dele estar ganhando o dobro sem nem mesmo precisar de um curso superior enquanto eu estudava e trabalhava dezesseis horas por dia, sem ter nenhum reconhecimento.
— E você, Verônica… Está gostando de Ribeirão? — Interrompi o diálogo entre meu padrasto e Fernando, me direcionando ao novo caso do meu amigo.
— Particularmente amo o calor… Então, posso dizer que sim. — Ela olhou nos olhos do pai do meu filho e como diz Camila, “UAU”. A química entre eles era tão palpável que chegava a ser visível. Eu sorri não conseguindo esconder minha felicidade com a tristeza de mamãe. Dona Silvia não pronunciara uma só palavra desde o momento em que abrira a porta e dera de cara com os dois de mãos dadas, assim como eu e Camila também estávamos.
— Você era de qual região? — Tio Fábio perguntou interessado, ainda ignorando completamente minha namorada.
— Joinville. — Verônica possuía uma elegância e educação refinadas. Ela não era qualquer mulher e Fernando sabia disso. A tratava como uma rainha, o que ela realmente parecia mesmo. Seus olhos verdes eram… Penetrantes. Ela possuía um sex appeal tão grande que todos olhavam quando passava, eu estava encantada com a nova namorada do meu amigo.
Terminamos o almoço e meu celular tocou enquanto eu ajudava Camila e Verônica a recolher o restante dos pratos, obviamente Fernando e tio Fábio já estavam na sala nesse momento, livres, pela regra tosca da sociedade onde homens não precisavam lidar com esse tipo de coisa. Minha mãe me observava ao longe, ela guardava o restante da comida e limpava a mesa do almoço.
— Alô!
— Como tá meu afilhado?
— Oi pra você também, Uli!
— Bee, você e Cami não querem me visitar e fazer um jantar bem gostoso pra esse seu amigo faminto de braço engessado?
Meu amigo, padrinho do pãozinho, havia se acidentado durante um passeio com os alunos da escolinha de futebol que ele trabalhava. A garotada que socorrera o pobre Ulisses que escorregou em um barranco quebrando a Ulna e o Rádio do braço direito.
— Eu desço mais tarde, Bee… Aguenta firme, tá? — Eu ri com o xingamento do outro lado.
— … Ninguém tem um pingo de compaixão, sabe…
Enquanto Ulisses desabafava sua solidão na casa, já que os pais – ultra conservadores – haviam se separado e ele e a mãe agora moravam sozinhos e ela vivia na casa da irmã, deixando então o “pobre coitadinho” abandonado. Esse meu amigo era o drama em pessoa, sem dúvida.
— Vamos no Uli mais tarde?
Cami perguntou assim que desliguei e Verônica que media quase vinte centímetros a mais do que eu se aproximou.
— Desculpa a intromissão, ouvi você dizer “Uli”… Por acaso é o Ulisses que Fernando tanto fala?
— Sim! É um dos nossos amigos, você conheceu?
— Gostaria. Seria incômodo se nos juntássemos a vocês? — Meu Deus, ela era um poço de educação e eu me sentia uma viking com aquela barriga esbarrando em tudo e com a blusa parcialmente molhada pela pia de louças .
— Nunca! — Respondi com meu melhor sorriso, eu estava encantada com Verônica e já planejava a morte do meu amigo caso ele surtasse em terminar aquele casamento que na minha mente já estava praticamente planejado.
Fim do capítulo
Ois
Quero deixar aqui meu desejo de uma linda semana para nós que mesmo sob tanto machismo, sexismo e preconceito, continuamos a lutar por nós e nossos direitos. Não desiste não viu? A luta é longa, mas nós somos piores que a Silvia kkk... INSISTENTES!
Beijos
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naoseimeulogin
Em: 13/08/2021
Sdds desse história continuar...
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HelOliveira
Em: 19/07/2021
Mas um capítulo super gostoso, gostei de ver a Mica se recuperando e a Júlia que pessoa fantástica....
Quanto a Isa ainda não superei a decepção e o Fernando eu jamais o perdoaria.
Já quero outro rs
E quanto aos sentimentos em relação ao cap anterior bem saber que alguém pensa o mesmo
Tenha uma linda semana
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