Desculpe-me a demora, estou passando por uns problemas de saúde e pessoais, o que atrasou a história, mas finalmente consegui escrever mais.
Silene Viscosa
Capítulo 14 - Silene Viscosa
"Traição"
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A lua cheia brilha sobre mim, seu luar iluminando tudo ao meu redor, como se estivesse em pleno dia. Louper ficara inquieto o dia todo e desaparecera ao pôr do sol. Enquanto aguardamos sua volta, procuro roupas usáveis nos escombros do vilarejo.
O dia passara depressa devido nossa discussão do plano e o trabalho que tive com a matricis. O caminho mais fácil fora escolhido e consiste em fazer o caçador beber a planta. Não tinha um pilão por perto, de forma que amassei a planta entre duas pedras, pedaço por pedaço, é uma planta relativamente grande o que deu certo trabalho. Conforme amassada, soltava um líquido viscoso vermelho escuro, como sangue coagulado. Cada gota desse líquido foi recolhida e colocada em um copo de cerâmica que encontrara intacto em alguma casa destruída. Fazer isso levara o dia todo, paramos apenas uma vez para comer, o que levou mais preparo, Louper caçara coelhos para mim e para ele, os limpei e assei em uma fogueira.
O gosto de uma carne sem tempero é ligeiramente ruim para uma pessoa acostumada com salgar e temperar a carne, mas o animal morrera para me alimentar, não tenho modos de expressar minha gratidão ao pobre coelho.
Terminei o trabalho com a matricis ao pôr do sol, junto com o desaparecimento de Louper, fechei o copo com algumas folhas, amarrando-as firmemente na boca do objeto que agora carrego comigo enquanto reviro os entulhos.
— Tem certeza que isso vai dar certo? — Laima pousa em meus ombros.
— Não faço ideia. — deixo o copo no chão para puxar uma calça marrom empoeirada e levemente rasgada e úmida. — Mas Louper disse que sempre foi amigável com o caçador, só podemos arriscar. — chacoalho a calça levantando poeira. O tecido está meio frágil com pequenos furos e desgastado, mas dá para usar.
— Não tenho tanta certeza desse plano. — a ave retruca.
— O pior que pode acontecer é todos nós acabarmos em uma fogueira. — digo sem me importar muito.
— O intuito aqui é colocar o caçador em uma fogueira e não nós. — Laima espirra devido ao pó.
— Só podemos tentar e acreditar que dará certo. — deixo a calça junto com as outras roupas que encontrei, dois pares de sapatos masculinos que devem servir para adolescentes, duas blusas brancas manchadas de sujeira e dois pelotes. — A parte das roupas está feita, falta Louper voltar e vocês de vestirem, mas... — levo minha mão perto de meu ombro, Laima se transfere para meu braço, o trago para minha frente, olhando-o nos pequenos olhos castanhos. — Tem certeza que quer fazer isso?
— Será mais convincente, se disser que cuida de Louper sozinha é capaz dele te condenar na hora. — bate as asas voando em direção as roupas, onde pousa inquieto.
Desde que formamos um contrato, Laima quase sempre se manteve como pássaro, carregando seu novo nome, voltando a forma humana que tanto tem receios muito raramente. Mas o que ele diz faz sentido e se está tão disposto, não o impedirei.
Pego o copo e afasto poucos passos, dando as costas para meu familiar para que possa se resolver sem interrupções. Olho para frente, encarando as árvores na mata fechada iluminada pela luz branca da lua. De trás das árvores surge um rapaz nu de cabelos pretos curtos até as orelhas, rosto arredondado com bochechas levemente cheias, olhos castanhos e o nariz pequeno mas empinado, o físico comum sem ser muito magro ou gordo demais e sem músculos. O mesmo rapaz que vira atrás do Louis-lobo, Whisper, na noite passada.
— Como você está? — pergunto vendo-o se aproximar. — Separei algumas roupas para você ali. — aponto para trás, sem me virar.
— Estou bem. — a voz de Louis é grave, quase como um adulto. Realmente adolescentes nessa época já são mais perto de adultos. — Vou colocar roupas e vamos partir.
Sem mais, ele passa por mim, ouço-o conversando com Laima, surpreso com a aparência que ele agora possui. Não espero muito, Laima logo pede para me virar, encaro ambos vestidos propriamente.
— Acha que conseguimos enganá-lo? — Laima pergunta girando para me mostrar toda sua aparência. Seu cabelo preto solto na altura dos ombros balança levemente com seu movimento.
— Sim, — aceno com a cabeça. — pode funcionar.
— Sua mãe adoraria vê-lo agora, Louis, se tornou um belo homem,sim. — Newes aparece andando devagar.
Louis não responde, mas se olha de cima abaixo, inspecionando também suas mãos, passando-as por seu cabelo.
— Vamos acabar logo com isso. — Laima interrompe o momento se remexendo incomodado, olho para ele, repreendendo-o. — Desculpe, — se vira para Louis. — o maior sacrifício aqui é seu e ainda tento te apressar.
— Tudo bem. — Louis responde. — Você tem razão, vamos logo.
Devagar, conforme andamos, o vilarejo fica para trás. Nos movemos em silêncio, a floresta parece abrir caminho para seguirmos sem problemas. Enquanto avançamos, deixo o copo com Louis, que o guarda dentro de seu pelote. De mãos livres amarro bem o cabelo, escondendo-o na touca branca. Se Matthew perceber a cor de meu cabelo, estamos perdidos. Abaixo-me pegando Newes no colo, seu cansaço o atrapalha andar, ele me agradece. Cada passo que dava, algo me incomodava, meus instintos apitavam para algo, mas novamente resolvo ignorar esse sentimento.
Com aproximadamente vinte minutos de caminhada, já podemos ver a casa de Matthew a nossa frente. Laima respira pesadamente.
— Você está bem? — pergunto observando-o.
— Andar sob duas pernas era tão difícil assim? — diz ofegante.
— Para quem passa a maior parte do tempo voando...deve ser. — Louis responde por mim, tão cansado quanto Laima.
— Andar sob quatro patas é mais fácil que duas? — indago para Louis.
— Para mim é. — encosta em uma árvore para respirar melhor, Laima faz o mesmo. Suspiro olhando a lua sob nós. “Por favor, nos ajude para que dê tudo certo”, peço silenciosamente.
— A casa de Matthew está logo ali. Quando você estiver pronto podemos ir, Louis. — falo sem querer apressar o rapaz, é sua humanidade que está em jogo.
— Acho que nunca estarei pronto. — Sua voz sai melancólica. — Um lado de mim quer ir e acabar com tudo. Outro lado de mim está com medo, o que significa “perder a humanidade”? O que vai acontecer comigo? Com minha consciência atual?
Ninguém o responde. Como responder isso? Nenhum de nós sabe o que vai acontecer com ele, assim como nunca sei o que acontece com meus outros clientes quando mudo seus passados. O silêncio reina sob nós quatro, cada um com seus próprios pensamentos.
— Pronto. — Louis quebra nossa quietude. — Vamos lá.
Todos sabemos o plano, mas na verdade a maior parte dele não passa de nosso improviso, se dará certo, logo saberemos.
Damos exatamente cem passos até chegarmos na porta do caçador. Deixo Newes no chão e o mesmo se arrasta para se esconder. Louis bate na porta. Matthew Hopkins a abre bruscamente, irritado. Ao vê-lo meu corpo se enche de repulsa, devido aos acontecimentos anteriores. A irritação do homem desaparece ao ver Louis, agora sorri para ele mas nos analisa de olhos semicerrados, com certa desconfiança.
— Desculpe-nos pelo horário, senhor. — Louis começa a conversa. — Mais uma vez estou aqui e dessa vez trouxe também minha família — olha para nós — que estava curiosa para conhecê-lo.
— Sim, claro. — o homem a nossa frente responde sem muito interesse. — Entrem.
Dá-nos as costas, deixando a porta aberta para que o seguíssemos para dentro, Louis se apressa para entrar, troco olhares ansiosos com Laima antes de seguir Louis.
A casa do caçador é simples e comum, de cara encontramos a cozinha com uma enorme mesa de madeira no centro, à direita a lareira que serve de fogão se encontra bem acesa, prepara algo em uma panela de ferro presa sob o fogo. À direita, uma escada de madeira leva ao andar de cima, mas lá não nos interessa. Sob a mesa, vejo alguns papéis espalhados, bem como objetos que pareciam agulhas grossas de metal com cabos de madeira, provavelmente usados para “cutucar” as mulheres sob seu julgamento.
— Louis. — Matthew Hopkins o chama — Você já é de casa, cuide do fogo para mim. — Senta-se na mesa a nossa frente, convidando Laima e a mim a sentarmos indicado com o queixo.
— Novamente, desculpe-nos a hora, senhor. — meus dentes rangem ao dizer “senhor”, o que o faz me olhar torto, deixando-me ansiosa e sem mais palavras.
— Somos vendedores viajantes. — Laima atrai a conversa para ele. — Acabamos passando por aqui sempre por hoje todos os meses, mas Louis insiste em vir vê-lo todas as vezes, hoje decidimos conhecer aquele de quem ele sempre fala tão bem.
— E quem seriam vocês? — pergunta ainda me olhando, desvio o olhar, encarando a escada de madeira.
— Me chamo Edren — a voz de Laima falha ao dizer seu verdadeiro nome pela primeira vez em anos, viro-me para ele que, apesar de tudo, encara Hopkins com determinação. — Sou irmão mais velho de Louis, essa é Mary — aponta para mim. — Nossa mãe.
— E o pai de vocês? — o caçador indaga sem tirar os olhos de mim.
— Nosso pai infelizmente faleceu cedo, doente. Desde então, como o homem mais velho da família, assumi os negócios e nos mantive bem.
— Não descreveria como “bem”, a condição de vocês, observando suas roupas. — seus nos analisa de cima abaixo.
Um silêncio desconfortável cai sobre nós, ninguém sabe o que dizer para manter a conversa e preservar nosso plano inicial. Matthew Hopkins nos ignora, pegando seu material onde escreve calmo e sem perturbações. O som do fogo e do cozido na panela preenchem a casa, me sinto tão pesada que não consigo olhar para Louis, ele conseguira colocar a planta na panela? Laima pigarreia chamando a atenção do caçador para ele.
— Me lembro de Louis mencionar que o senhor possuí um cão...
— Ah. — Hopkins estala a língua e balança a mão direita de lado para outro. — Faz duas noites que aquele cão imprestável não retorna, deve ter caído morto por aí.
— Achei que o cão lhe era um assistente importante em seu trabalho. — Laima se vira para Louis, desafiando-o com os olhos.
— Apenas um animal fazendo seu trabalho. O salvei de um incêndio e desde então me seguia para todos os lados, nada mais que isso, um cão é um cão.
Novamente o silêncio reina, sem que notasse, Louis havia se sentado ao lado do caçador e pratos com um cozido de ave foram dispostos a nossa frente. Hopkins larga seu material e come com as mãos os pedaços de carne, sem se importar com as presenças ao seu redor. Louis o imita sem receio.
Olho o prato, pés e pescoço de galinha me olham de volta, nadando em um líquido amarronzado. Viro-me para Laima, que treme levemente. A cabeça do animal boia em seu prato, com os olhos bem abertos. Meu estômago se contorce, como sabia a forma de nos provocar assim?
— Não está com fome, mãe? Edren? — Louis pergunta sem rodeios, acabando de comer. — Vou retirar os pratos e vamos embora. Tomamos muito tempo do senhor. — Diz para o homem ao seu lado.
Louis levanta-se passando por Matthew Hopkins, chegando atrás de Laima. Quando entendi seu movimento já era tarde, o rapaz segurara os braços de meu familiar com uma mão e seu pescoço com a outra empurrando-o para a mesa, sua cabeça de encontro a beirada do prato, que vira sujando-os.
— Laima! — grito levantando-me em vão, o caçador se aproximara de mim sem que notasse, arranca a touca de minha cabeça com a mão direita, erguendo parte de meu cabelo, puxando-me para cima, deixando-me na ponta dos pés. Seguro seu braço com as mãos.
— Louis! — Laima exclama remexendo-se, seu rosto se contorce em uma careta de dor. — Você nos traiu?!
Devia ter confiado nos meus instintos.
Fim do capítulo
O capítulo ficou grande, resolvi dividir em dois. Desculpem se algum erro me passou despercebido.
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