Folha de Carvalho
Capítulo 15 – Folha de Carvalho
"Bravura e Humanidade"
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Tendo-me em sua armadilha, o caçador me empurra para a parede de madeira, ao lado da porta de entrada, com a mão livre, cutuca minha barriga com o objeto pontudo que estava em sua mesa. Apesar de me prender, remexo-me na tentativa de me soltar o que o faz apertar mais a ponta do objeto em minha pele. Arfo de dor.
— Louis viera a mim mais cedo, perto do anoitecer — Matthew Hopkins aproxima seu rosto do meu, seu hálito é um misto de álcool com a ave que comera, desvio minha face da sua, enojada. — clamando que uma bruxa o ameaçara obrigando-o a trabalhar com ela para me matar. Aconselhando-me a não deixá-la chegar perto de minha comida ou bebida em nenhum momento...
Isso explica seu sumiço ao pôr do sol. Olho para Louis, que me evita, nervoso. Pelo canto de minha visão, vejo Newes subir na prateleira da lareira, onde o copo com o líquido da matricis encontra-se aberto. Gemo de raiva. Para minha surpresa, o marta zibelina derruba o copo no chão, quebrando-o e espalhando todo seu líquido no chão. O caçador olha assustado para a fonte do barulho.
— Sua mãe tem vergonha de você, sim, sim. — Newes diz para Louis, eriçando seus pelos.
— Seu familiar, bruxa? — Hopkins volta sua atenção para mim. — Mas de nada vai adiantar, sua pira já está sendo montada no vilarejo. — deixa sua ferramenta de tortura pontuda cair do chão, levando ambas as mãos ao meu pescoço. Seus polegares pressionam minha traqueia com precisão tomando-me o ar rapidamente.
— Louis! — ouço Laima rosnar de raiva. — Um cão é um cão!
— Laima! — arfo seu nome, repreendo-o. O homem que me segura aperta com mais força meu pescoço. Sinto meu corpo enfraquecer aos poucos, juntamente com minha visão que escurece. Com o pouco de força que me resta, ergo firmemente o braço direito até que encoste em minha orelha — Um cão sabe reconhecer seus erros.
Solto meu braço que bate nos do caçador, fazendo-o afrouxar seu aperto. Com isso, giro meu corpo e puxo meu braço dando um tapa em sua orelha. Com o golpe, ele solta totalmente meu pescoço, seguro seus ombros e ajoelho seus testículos duas vezes, então o empurro. Surpreso e com dor, cai no chão com o rosto próximo ao líquido do copo quebrado.
Livre, minhas pernas cedem, derrubando-me. O ar que me foi impedido por algum tempo entra rápido em meu pescoço dolorido, em uma tosse atrás da outra. Louis libera Laima, correndo em direção ao caçador caído, contorcendo-se.
Laima levanta-se rapidamente, vindo em minha direção, coloca suas mãos em meus ombros.
— Você está bem? — pergunta protetor.
— Vou sobreviver. — digo com dificuldade.
Um grito nos assusta, ambos olhamos na direção da voz, Matthew Hopkins grita e se contorce de maneira estranha. Sua pele borbulha e descasca, sangrando em todo processo, seus cabelos alongam-se, seu rosto se afina e sua voz muda, o que vemos agora é o projeto de sua versão feminina.
Seguido do silêncio do grito de seu senhor, Louis também despenca no chão em meio a gritos de dor, sua espinha estica-se formando uma cauda, seu rosto alonga-se, suas mãos e pés se moldam em patas e de sua pele, brotam pelos brancos, aos poucos, torna-se o lobo branco, Whisper, inconsciente. Passar pelo processo de se transformar é uma coisa, assistir esse processo é, de certa forma, agoniante. Pobre Laima que sempre me assiste transformar.
— O que aconteceu? — pergunta meu familiar, assustado.
— Não tenho certeza, mas acho que o caçador bebeu sim a poção. — respondo devagar.
— Louis quem deu a poção a ele? — Laima levanta-se desconfiado, fazendo devagar o caminho até Louis caído em sua forma de lobo.
De onde estou consigo sentir uma a raiva vinda de Louis. Rapidamente ponho-me de pé
.
— Laima! — coloco minha mão direita entre Laima e Louis no momento certo, o lobo se move ágil, virando com a mandíbula aberta, fechando-a habilmente em minha mão. Um suor frio percorre todo meu corpo, juntamente com a dor. Sua mordida foi forte o suficiente para que seus dentes furassem minha pele.
Tão rápido quanto me mordeu, solta minha mão, afastando-se de nós mas se ajeitando protetor ao lado do caçador, agora mulher, ainda inconsciente. Rosna para nós ferozmente, seus dentes a mostra, o nariz enrugado para trás e a boca manchada do sangue que me tirara.
— Vamos, temos que sair, sim. — Newes corre num rastejar em nossa direção. — Pessoas do vilarejo estão vindo, sim.
Laima se mantém congelado no mesmo lugar, olhando minha mão furada e sangrando, Newes sobe até seu ombro, agarrando sua roupa. Isso parece fazê-lo finalmente sair do choque.
— Alma! — se aproxima de mim, pegando minha mão mordida. — Sinto muito! Não imaginei que ele iria atacar.
— Tudo bem, se acalme. Temos que sair daqui e você sabe que logo o ferimento irá se fechar. — o relembro desse fato.
Não me responde, puxa a manga de sua blusa, o tecido se rasga facilmente, devido ao desgaste e então, amarra-o em minha mão, protegendo a ferida.
— Isso deve ajudar um pouco. — diz pegando Newes em seu ombro e o passando para o meu. — vou voltar a minha outra forma, sou mais rápido assim.
Aos poucos começamos a ouvir vozes não muito distantes. Laima fecha os olhos e suspira, asas saem de suas costas e enrolam todo seu corpo. O amontoado de penas flutua e diminui de tamanho, revelando sua forma de ave. Não diz mais nada, da um último olhar para Louis, que ainda rosna para nós e voa janela afora.
Newes escorrega de meu ombro, seguro-o firmemente com o braço esquerdo. O familiar da mãe de do lobo a nossa frente está cansado e respira pesadamente. Ajeito-o em meu colo e vou em direção a porta. Atrás de mim ouço o caçador resmungar e acordar.
Do lado de fora, corro para a mata a esquerda, pelo canto do olho posso ver que três homens adultos e duas mulheres já estão quase na casa que deixo para trás. Tenho a leve impressão de ouvi-los se perguntando algo sobre me verem saindo às pressas. Dessas pessoas, um homem Jean Stearne e uma mulher, Mary Philips, são seus fiéis assistentes.
Paro virando-me para ver o que acontecia. De dentro da casa uma mulher vestida com as roupas de Matthew sai confusa de encontro com as pessoas que se aproximam, pedindo ajuda especificamente a um dos homens, que suponho ser Jean, mas não foi recebido como queria. O homens logo a agarrara, mesmo que se contorcesse e gritasse que cometiam um engano, as mulheres sussurram entre si enquanto, após renderem a mulher-Matthew, a arrastam para o vilarejo.
Laima pousa em meus ombros conforme os sigo de longe, me pergunto onde está Louis, simplesmente deixara que levassem seu mestre. Estaria confuso agora que ele virara uma mulher?
Durante todo o percurso, Matthew se recusa, remexe e grita, em vão. É silenciado, empurrado, jogado, assim como fazia como suas vítimas. Ao ver a pira que o aguardava, desesperou-se, “é um engano!”, gritava em sua voz feminina. Mas nada do que fazia ou falava surtia efeito, amarraram-no sem dó ou piedade.
“É mesmo o caçador?”, as pessoas cochichavam entre si. “Nos enganou o tempo todo!”, “Devíamos saber! Andava sempre com aquele cão, certeza ser um demônio!”
A pira fora acesa, todos calam-se, ouvindo o crepitar do fogo e os gritos de dor e medo daquele que um dia colocara mulheres inocentes no mesmo lugar que se encontra.
“Maldita bruxa!”, grita, o fogo alcança seus braços, arrastando-se até sua cabeça, seus cabelos queimam-se rapidamente, sua pele já se encontra mais escura que carvão, com pontos vermelhos, o cheiro de sua carne impregna tudo. Meu nariz se retorce, tentando evitar o odor.
Barulhos vindos de trás me assustam, olho para a fonte dos sons mas, mal me viro e uma sombra branca passa por mim, correndo em direção a pira com o caçador, agora em silêncio. Mantendo a velocidade, pula sobre o fogo, empurrando com força a grande estaca que prendia seu mestre. Devido ao fogo, a estaca frágil se quebra, caindo no chão, derrubando o corpo queimado. Louis cheira o corpo ganindo em sofrimento pela perda. Alguns homens o cercam, mas ele nem se mexe. Agarram-no facilmente, o animal não luta contra, se deixa manipular nas mãos dos seus atacantes que o balançam para frente e para trás duas vezes, impulsionando, rindo felizes e então, atiram o Louis na pira acesa.
O lobo não chora, não grita e nem se mexe, o fogo rapidamente consome seus pelos e, de sua garganta sai um uivo amargo, sofrido, que continua por minutos e se silencia. Todos em volta, paralisados, assistem até a pira se apagar para, só então, se dispensar.
— Desculpe Louis, sim. — Newes se move em meu braço, sua voz sai fraca e triste. — Perdeu a mãe cedo demais, sim. Se apegou ao primeiro que demonstrou algum apoio. Enganou todos nós, sim.
— Vamos pensar de outra forma. — digo. — Vamos pensar que ele não nos traiu, que avisou ao caçador que iríamos aparecer lá e que não nos deixasse aproximar do fogo para que ele pudesse mexer na panela e jogar a poção sem que o homem desconfiasse.
— Não. Quem fez caçador beber a poção fui eu, sim.
— Você perderia sua humanidade. Louis nos atacou como Whisper, talvez já não tinha mais memórias humanas.
— Não sou como vocês, sim. Não sou humano, não tenho humanidade para perder, não...mas...prefiro sua versão, sim, sim.
— Sabe, Newes. — acaricio suas costas com a mão enfaixada. — Que tal ir com a gente? Está velho e cansado e... conheço alguém que adoraria cuidar e fazer amizade com você.
— Newes não ter mais promessas para cumprir. Ir encontrar Willa agora, mas...— sua voz não passa de um mero sussurro. — obrigado.
O pequeno animal suspira profundamente, todo o ar deixa seus pulmões e não retorna, seu corpo amolece em meu colo. Abaixo-me colocando Newes, sem vida, no chão de grama, nem eu nem Laima falamos nada, tenho certeza que agora está feliz com sua companheira e juntos repreendem Louis, mas o perdoam, é assim que são as coisas.
Retiro a faixa que Laima colocara em minha mão mais cedo, não há mais sinais do ferimento deixado pela mordida. Deve ser bom, saber que logo poderá se reencontrar com aqueles que deixaram esse mundo e, assim deveria ser para mim, se a imortalidade não me amaldiçoasse.
Fim do capítulo
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