A mesma velha história
Conversar com a Amanda de noite era um dos pontos altos do meu dia.
Quando não estava olhando para a pessoa, era mais fácil falar sobre inúmeras coisas com ela. Eu costumava ligar para ela no seu horário após a janta e depois de uma breve ou longa conversa, ela falava que ia estudar ou dormir e me desejava uma boa noite, assim como eu desejava para ela.
Às vezes não ligava para ela, e via o toque do número que ela usava no meu telefone, que logo retornava. Percebi que, além de Jude, nunca tinha tido o contato com alguém assim, nem mesmo com as pessoas ao qual me relacionei de outras formas.
Laís era uma delas. Como quase todas as pessoas em que me envolvi, nos conhecemos por meio da Internet, saíamos quando convinha, porém depois da última vez que a vi, acabei por me afastar dela de forma inconsciente. Ela me mandava mensagem, eu respondia por responder, até que as mensagens foram cessando até não chegar mais nenhuma. Pareceu a forma mais certa a se fazer, não achava certo a forma em que lidávamos com nós mesmos.
Desde aquele momento que tive com a Amanda, sentia que eu podia fazer mais as coisas que vinham na minha cabeça, já que ela passava essa segurança com seus gestos.
Estávamos sentadas uma do lado da outra como de costume, e via Amanda sorrir para mim de forma acanhada, abaixando o olhar e como na livraria, sentia o toque de sua mão próxima a minha, enquanto ela se apoiava na cadeira. Olhava para aquilo e como ela, também fazia isso sem saber se ela o fazia de forma consciente ou não.
Porém, Luiza logo chegou falando em voz alta:
— Eu não acredito nisso! – ela dizia exultante – Como é que me dão uma nota dessa em redação?
Ela balançava a folha na nossa frente, chamando tanto minha atenção como de Amanda, que pegou a folha de suas mãos e entregou para mim.
— Você entende isso melhor do que eu. O que acha?
Olhei para a redação de Luiza com visível desagrado. Apenas o primeiro parágrafo já me causava incômodo, e passei o olho no resto rapidamente para confirmar o que o primeiro já denunciava.
— A professora ainda te deu uma nota razoável – entreguei a folha para ela – Isso não é uma conversa coloquial, por que usou gíria?
— A língua é dinâmica e está em constante mudança – ela destilava as palavras em minha direção, querendo começar um pequeno afronte ao qual estava disposto a comprar.
— Não é porque ela é dinâmica que justifica essa bagunça mal elaborada.
— Desculpe, dona da língua portuguesa – ela falava com ironia – Pensei que o que importasse é passar a mensagem.
— Se não aguenta uma crítica, quer fazer Jornalismo pra quê? Enfeite?
— Se passa a aula toda desenhando, pra que fazer Direito? – ela sorria sarcasticamente.
— Não escondo que é pra agradar meus pais, diferente de você que esconde muitas coisas, não é mesmo?
Ela sabia do que eu falava, e eu sabia que tinha atingido sua maior ferida.
— Você sempre sabe tudo, a dona da razão, não é? – Luiza cerrava os dentes, olhando com fúria.
— Gente, vocês não acham que... – Amanda tentava dizer, mas logo sem perceber a interrompi.
— A culpa é minha se você não aguenta que falem uma coisa contrária do que você pensa? Ah, é claro – dizia com desdém – Você não pensa em outra coisa além de si mesmo, Luiza.
— Como se você também não pensasse em outra coisa além de si mesmo, Hǎi yún – Luiza mostrava na sua voz sua ira.
— Por que foi bem eu que abandonei a pessoa que dizia gostar na frente de todo mundo e ainda riu – respondia entre os dentes, e cerrei meus olhos enquanto a encarava. A briga já tinha tomado outras proporções.
— E sou bem eu que tento sustentar a figura perfeita na frente de todos e por dentro é uma perturbada.
— Já chega – disse Amanda com firmeza, encarando nós duas – O que é isso, Luiza?
— Luiza? – ela ria com deboche – Eu sou a vilã, não é?
— Não estou dizendo isso, só estou falando que...
— Continua defendendo essa xing ling pra ver o que...
— Do que você me chamou? – disse em voz alta, com latente indignação, cerrando meus punhos contra a cadeira.
— De xing ling. Xing. Ling. Entendeu ou quer que eu fale chinês?
O sorriso irônico de Luiza fez subir uma raiva ao qual sentia poucas vezes por outra pessoa. Fui até a sua direção e ela recuou, mas apontei bem no seu rosto e disse:
— Vai se foder, Luiza.
E me levantei, saindo da sala. Não tinha estruturas para ouvir qualquer outra coisa mais que ela falasse e fui para o depósito, o refúgio que tinha escolhido no meio daquele caos escolar em que me encontrava e ali fiquei até a hora da saída, ao qual saí mais cedo para evitar que olhasse para ela.
Não quis esperar por Amanda, então segui o trajeto que fazia com ela sozinha, porém ouvi o ranger de uma bicicleta se aproximar de mim.
— Ei, Hǎi yún? Desculpe pelo que aconteceu mais cedo.
— Não é você que tem que se desculpar – não conseguia esconder a raiva em minha voz – É ela.
— Eu vou conversar com ela depois, não quero que fique um clima estranho entre nós.
— Vocês, melhor dizendo – ri com ironia e apertei o passo, caminhando mais rápido.
— Hǎi yún, me espera.
Ouvi o cair da bicicleta no chão, e passos virem até mim, assim como o segurar de sua mão na alça de minha mochila. Virei para vê-la e, assim como havia uma luminosidade acima de nós que refletia o rosto suado de Amanda, o mesmo mostrava sua aflição. Ela pressionava os lábios e, olhando para baixo, na direção de minhas mãos e com as suas trêmulas, segurou as minhas, aproximando-se um passo em minha direção.
Ela não disse nada. Amanda tinha atitudes que demonstravam mais do que se ela falasse qualquer coisa. Ela suspirou profundamente procurando o ar ao seu redor, e trouxe minha mão que segurava até próximo a seus lábios, segurando-as com firmeza mesmo que estivessem suadas de uma maneira fria.
— Sabe, Amanda – dizia, tentando não encará-la – Todas as noites a mesma coisa me atormenta, e de um tempo para cá isso piorou e...
Pressionei meus olhos, tentando não deixar que ela visse que eles estavam marejados, e continuei falando:
— Eu...Como eu vou saber se o que eu sinto é certo?
E voltei a encará-la. Amanda me olhava com a boca entreaberta, como se estivesse preste a falar alguma coisa, mas voltava atrás, soltando minha mão devagar e ao me encarar novamente, ela balançou a cabeça e encarou o que segurava, passando a ponta dos seus dedos sobre a costa de minha mão.
— Temos que acreditar em nós mesmo e... sermos corajosos. É difícil, mas não impossível.
— Então eu deveria tomar uma atitude?
— Isso te deixaria feliz?
— Eu não sei... – gesticulava confusa.
— Engraçado, eu... – ela dizia rindo, passando a mão no rosto, envergonhada – digo isso, mas tem coisas que vem na minha cabeça à noite. Na verdade, durante o dia também, mas de noite quando me deito é pior.
— E você vai tomar uma atitude sobre isso?
— Bem, eu... – Amanda hesitava, passando a mão no pescoço, respirando fundo ao olhar para o chão – Eu não sei, eu acabo hesitando e...
Ela levantou o olhar, e me encarou. O olhar que ela me deu, a atitude de dar um passo à minha frente fez com que eu sentisse aquele formigar percorrer meu corpo mais uma vez e que fez meu estômago revirar quando ela pegou uma mecha de cabelo que caía em meu rosto e colocou atrás da minha orelha.
E a luz que tinha acima da gente se apagou, e pude ver só Amanda me olhando, sentindo todo meu corpo faiscar enquanto a encarava e ela o fazia de volta.
E a abracei, passando os braços pelo seu corpo e coloquei minha cabeça em seu peito na tentativa de que eu não a encarasse, porque sabia que se eu o fizesse, poderia tomar alguma atitude contrária. Seu coração estava acelerado e ouvia seu respirar pesado, assim como a firmeza dos seus braços me abraçando de volta.
Sentia meu corpo tremer por conta do que havia feito, mas ainda assim Amanda com seu abraço me fazia sentir que tudo estava bem, assim como o fato de que ela me trazia para mais perto dela, e eu ouvia seu coração bater mais rápido que antes.
— Tenho que ir – sussurrei em seu ouvido na tentativa de fugir daquele momento.
— Eu te levo – ela disse de volta.
— Não precisa, eu...
— Faço questão.
Amanda pegou sua bicicleta, mas dessa vez não subi para que a acompanhasse e fizemos o caminho a pé.
— Até amanhã? – perguntou Amanda, em frente ao portão.
— Até – acenei de volta para ela que, de forma desajeitada, subia na bicicleta e ia para a casa.
Entrei em casa sem fôlego por conta daquele momento e, quando cheguei no quarto, não pensei duas vezes em ligar para Jude.
— Fala, Hǎi yún, qual é a boa? Vamos...
— O que eu faço, Jude? – disse de imediato.
— O que aconteceu?
— Eu quase a beijei hoje, foi por pouco.
— Epa, vamos com calma, sério?
— Sim – dizia ofegante.
— E por que não beijou logo?
— Eu fiquei com medo, não sei. O que eu faço?
— Cara... – ela ficou muda por um tempo do outro lado da linha – Aproveita o embalo amanhã e tenta dizer que gosta dela, simples. É menos direto do que ir beijando logo ela.
— E como faço isso?
— Como você falou pra garota do terceiro ano daquela vez que você gostava dela?
— Eu fiz um desenho pra ela e entreguei.
— E por que não faz isso agora?
— Por que eu não estou no primeiro ano, Jude.
— Mas é fofo, eu gostaria de ganhar um desenho, e é menos objetivo do que dizer que gosta. Hǎi yún, eu te conheço, sei que você não vai ter coragem de dizer que gosta na cara.
Suspirei, recobrando o ar.
— Se você está dizendo...
— Confia em mim, Hǎi yún. Eu entendo de garotas.
— E como entende...
— Agora vai procurar relaxar que amanhã é o grande dia.
— Obrigada, Jude. Não sei o que eu faria sem você.
— Eu digo o mesmo. Se cuida – e desligou.
Peguei meu caderno e, vasculhando, vi o desenho que tinha feito de Amanda no dia da biblioteca e usando ele como base, fiz outro em uma folha melhor.
— Estudando, bǎobǎo? – disse minha mãe, tirando a minha atenção do desenho que fazia. Quando olhei de relance para o relógio, vi que já estava tarde.
— Sim – disse, baixo.
— Jantar está na geladeira.
— Obrigada, mãe – e voltei para o desenho.
Fim do capítulo
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