Não se explique
Décimo terceiro dia.
Foi o tempo mais longo, desde que tinha me separado com Paula, que estava sem usar outras coisas, chegando na segunda semana, que era o esperado. O resultado foi que criei o estranho costume por correr longos trajetos, sem depender do contexto.
Na faculdade, na rua de casa, sempre estava correndo, e corria à exaustão. Alguma coisa em mim tinha que queimar junto com as coisas que me assombravam, mas que, de uma forma ou outra, iam sumindo.
Era sábado, e teria festa na casa da Vitória. A ideia era ir com Matheus, mas a casa da Vitória era um verdadeiro antro de tentações, assim como ela. A última vez que fui lá, usei até o que não devia e fiquei tão louca que tentei dormir dentro de uma máquina de lavar.
Mas o que me deixava nervosa era o encontro que teria. Fazia tanto tempo que eu não saia com alguém com o único intuito de comer e conversar que comecei a me questionar se eu ainda sabia realmente fazer isso.
Tinha chego com alguns minutos de antecedência. Tomava uma xícara de café preto enquanto encarava a vista da rua, batendo os dedos na mesa. Conferi mais uma vez meu visual, parecia estar tudo nos conformes.
Catarina apareceu no horário marcado. Ela usava o cabelo solto e usava um vestido florido e tênis, e ao me ver, ajeitou seus óculos, sorrindo.
— E aí – foi a primeira coisa que veio em minha cabeça ao vê-la se aproximando, mas minha reação por dentro fora outra.
— Boa tarde – ela se sentou – Faz tempo que você está aqui?
— Não muito, eu cheguei um pouco antes mesmo.
— Já pediu alguma coisa? – ela pegou o cardápio, encarando-o – O que me recomenda?
— Eu gosto do pão daqui, mas se você gostar mais de doces, o bolo de morango é excelente, meu irmão sempre pede.
— E você vai pedir o que? – ela disse, ainda olhando para o cardápio.
— Não sei, acho que uma torta de frango, talvez.
Ela gesticulou para o atendente, e fez os pedidos, voltando a olhar para mim.
— Você parece estar melhor do que da última vez que lhe vi.
— Melhorando, como eu posso.
— Não vamos falar de trabalho hoje – ela disse, apoiando o queixo entre as mãos – Então...
— Então me conte sobre você – disse, me recostando na cadeira com um sorriso de canto.
— O que você quer saber de mim?
— Se fosse fazer um resumo da sua vida, como seria?
— Bem... – ela disse, pegando as coisas em cima da mesa, brincando com elas em mãos – Caos e destruição, eu acho.
Catarina começou a rir, e voltou a olhar para mim.
— Sério – ri de volta – Como seria? Você gosta dos seus pais? Tem irmãos?
— Sou bem ligada com minha família, apesar dos meus pais morarem em outra cidade, os visito com frequência. Tenho dois irmãos mais novos que ainda estão na escola e... – Catarina desviou o olhar, encarando a paisagem do lado de fora do lugar. Talvez entrei em um assunto ao qual não deveria ter tocado.
— Desculpe – disse de antemão.
— Não tem do que se desculpar – ela tentava sorrir – é que não consigo falar de família sem lembrar do meu tio.
— Entendo... – tamborilei os dedos na mesa, expirando devagar – vocês...não se falam? Se quiser falar sobre isso é claro, é que de briga familiar eu entendo bem.
Catarina franziu levemente as sobrancelhas antes de continuar a falar.
— Meu tio cometeu suicídio quando eu tinha onze anos – o peso era evidente em sua voz – e o considerava como um pai, um melhor amigo. Éramos bem próximos.
— Que merd*... – eu dizia surpresa, sem saber exatamente o que dizer naquela delicada situação – Eu sinto muito.
Ela cruzou os braços e deu de ombros levemente, ainda com o sorriso apático, do tipo que você se esforçava para manter em seu rosto.
— Tudo bem, não tinha como saber e além do mais...só nos resta seguir em frente.
— Por conta disso que escolheu essa área? – perguntei sem saber se deveria ter feito a pergunta, mas ela não pareceu incomodada. Apenas concordou com a cabeça levemente.
— Sim. Quero fazer pelos outros o que não fizeram pelo meu tio – ela tomava uma postura séria como a que tinha quando estava no laboratório – não digo pela nossa família por que eu estive lá nos piores momentos e fizemos de tudo, mas talvez dos profissionais, se tivessem feito um acompanhamento correto, ou se ele tivesse tentado mais uma vez...
Catarina gesticulava e quando viu o teor que a conversa tomava, balançou a cabeça negando como se afastasse os pensamentos.
— Eu tenho certeza de onde quer que ele esteja, ele tem orgulho de você.
E era realmente o que eu achava. Catarina pareceu se desvincular da melancolia de sua voz no momento em que ouviu minhas palavras, concordando com a cabeça. Vi que ela queria mudar o foco do assunto, e a ajudei.
— Acredito que a única pessoa que considero minha família é o Alan, porque desde que me entendo por gente, sempre nos apoiamos.
— Vida difícil dentro de casa?
— Nem me fale – pressionei os lábios e arqueei as sobrancelhas, olhando com pesar — Meu irmão é minha única família.
— Você não fala com seus pais?
— Não, senhora – balancei a cabeça negativamente – Eu não falo com minha mãe desde que vim morar para cá, e meu pai finge que nós não existimos, desde que ele arranjou outra mulher e outra família.
— Mas que merd*.
Levantei uma das sobrancelhas, e comecei a rir.
— Estranho ver você falando palavrão – voltei a tomar o café morno.
— Já disse, eu sou humana – ela se recostou na cabeça.
— Você está uma humana muito bonita hoje, a propósito – disse para ela, olhando diretamente para ela.
— Obrigada – suas bochechas ficaram levemente coradas – Não é todo dia que recebo um elogio.
— E você, por que escolheu o curso que está cursando? O que te motivou?
— Sempre questionei muito as coisas, tenho crises existenciais pesadas desde criança e estou levando minha própria vida para um buraco, tem uma coisa que se adeque melhor com isso que Filosofia? – disse, rindo.
— É.. – ela começou a rir também – Até que faz sentido, mas o que quer fazer depois da faculdade?
— Fugir da casa e virar caminhoneira.
— É sério?
— A parte de fugir de casa, sim. A de caminhoneira, não, mal sei andar de bicicleta.
— Mas o que irá fazer depois que fugir?
— Não sei, provavelmente ir para o interior, conhecer a filha de algum fazendeiro, me casar com ela e criar galinhas. Tem uma vida melhor que essa?
Nossos pedidos chegaram. Catarina pegou um pedaço do bolo de morango e comeu, soltando um gemido de satisfação.
— Nossa, isso é uma delícia mesmo.
— Não te falei? Prova um pouco do meu.
Ela pegou um pedaço da minha torta e comeu também, fazendo o mesmo barulho.
— É ótimo também.
Voltamos a comer.
— Não acredito que você vá fugir de casa mesmo.
— Duvida? Já estou até com parte do dinheiro guardado.
— Mas por que fazer isso? Você não vive feliz com seu irmão?
— Alan precisa seguir a vida dele sem mim – apontei com o garfo para ela – E eu preciso tomar um rumo longe dessa vida. Não me encaixo nisso, Catarina, acho que devo tomar novos ares.
— Seus demônios internos vão te perseguir por onde for, vai por mim.
Olhei para ela de soslaio, e voltei a comer.
— Experiência própria?
— Sim – ela respondeu, sem deixar de comer – Bastante.
— Pelo menos vou ter crises existenciais em um lugar calmo, não em um lugar que me deixa ansiosa o tempo todo.
— Não julgo você, Alana, se eu pudesse, faria o mesmo.
— E o que te impede em fazer isso?
— Convenção social, família, amigos, não sei, tantas coisas...
— Todos me abandonaram, então não me sinto mal de abandonar tudo isso também.
E voltei a comer, sem dizer mais nada, assim como Catarina fez o mesmo. Assim que terminamos de comer, pagamos e saímos.
Estávamos caminhando ao lado uma da outra, mas com uma certa distância. Puxei um cigarro do bolso e acendi, oferecendo para ela, que recusou.
— Você não foi abandonada, Alana, você ainda tem a seu irmão e a seus amigos, pessoas que devem te amar muito.
— Tudo isso é efêmero, Catarina. Tudo isso – apontei para nossa frente – Vai se desmanchar como pó, eu e você também, então deveria me importar com essas convenções?
— As pessoas são horríveis e abomináveis e só fazem as coisas guiadas pelo desejo, mas ainda há um risco de bondade em cada um.
Continuamos o resto do trajeto em silêncio, até que terminei o cigarro.
— Você vai para onde daqui? – perguntei para ela.
— Para a casa, provavelmente.
— Hoje é sábado, não vai sair para nenhum canto?
— Se for sair, será um barzinho com amigos, nada demais, e você?
— Vou encontrar o Matheus para irmos para uma festa, e acho que só.
Ela parou de andar, e voltou a olhar para mim.
— Tem certeza de que quer fazer isso?
— Por que você diz isso?
— Você está tão bem sem usar nada... – ela deu os ombros – Você sabe que vai cair em tentação.
— Não irei, eu vou ficar de boa, consigo me controlar.
— Uma coisa, Alana, é você conseguir se controlar sem os reforços te cercando, tendo fatores impeditivos, outra coisa é você estar em um ambiente totalmente nocivo para alguém em recuperação.
— Eu já disse que vou ficar bem – voltei a repetir.
— Você vai ter uma recaída, eu tenho certeza.
— Você sempre tem que ter a razão?
— Eu não quero ter, eu a tenho – ela continuou falando e caminhando – Eu lido com tanta coisa do tipo que sei reconhecer de longe.
— É? – continuei andando ao seu lado – Se você sabe de tanta coisa, então me diga uma coisa sobre mim.
Ela parou de caminhar mais uma vez, e ao ficar na minha frente, olhou bem em meus olhos.
— Você sofre com a sensação constante de abandono porque possivelmente seu pai, sua figura maior de ego, abandonou sua família na infância e repudiava sua sexualidade porque possivelmente sua mãe te destratou, assim como negação de relacionamentos passadas, o que te levou ao alento nas drogas seja lá quais forem, mas são as que conseguem mascarar melhor o que você sente.
Cruzei os braços, e a encarei séria.
— Está indo muito bem, continue.
Ela olhou como se estivesse desacreditada, mas continuou falando.
— Então a única pessoa que te deu o ideal de relacionamento acabou te deixando, o que reforçou seu comportamento negativo de abandono e você voltou a usar cada vez mais coisas, em um período maior de tempo.
Aplaudi ela, de forma irônica.
— Então já que você é tão boa nisso, permita que eu tente também.
— Alana, já chega.
— Que tal que você se mascara como essa estudante tão focada e premiada pra suprir alguma falha que tem em si mesmo?
— Por que não interpreta meus sonhos também, psicanalista?
— Vai ver é por isso que você não namora. Quem vai suportar alguém tão certinha como você?
— E vai ver que ninguém quer ficar com você porque você é explosiva.
— Tem gente que quer ficar comigo sim – dei os ombros – Você não sabe nada da minha vida.
— E você não sabe nada da minha – ela cerrou os olhos.
— Vai se foder então.
Ela se aproximou, ficando a poucos centímetros de mim. Respirei fundo e ela fez o mesmo.
— O que você falou?
— Mandei você se foder.
Dei um sorriso sarcástico, e ela fechou a cara.
— Não vou responder suas ofensas – ela continuou se aproximando.
— É? E vai fazer o que então?
Senti seu rosto a centímetros do meu, e ela sussurrou as palavras.
— Não irei fazer nada.
Ela deu as costas e foi caminhando a passos largos, mas senti algo que não deveria ter sentido.
— Catarina, espera...
Meu telefone começou a tocar. Era o Matheus.
— Caralh*, Matheus, não tinha outra hora pra você me ligar?
— Só queria saber se você já estava vindo, sua grossa.
— Tá – continuei olhando-a indo embora – Eu já estou indo.
Passei o tempo na casa de Matheus jogando videogame com ele e chegamos na casa de Vitória, um pouco antes do início da madrugada. Costumávamos chegar nesse horário já que era o mais animado, e assim que cheguei, peguei uma garrafa de qualquer bebida que vi na frente e virei o gargalo em meus lábios, sentindo o líquido quente descer pela minha garganta.
— Calma lá, Nana – ele segurou no meu braço – Acabamos de chegar.
— Eu estou suave, cara, já te falei, hoje vou ficar tranquila.
— E se você ver a Paula? Vai ficar de boa?
— Eu não quero saber dela, que se foda ela e todo mundo. Me passa logo seu vape.
Entramos na parte onde estava rolando a festa, com a música tocando alto e as garotas dançando em uma fila horizontal. A fumaça vinha de algumas mesas, e a maioria das pessoas bebiam e se animavam de outra forma.
Dei dois puxas no vape e passei para Matheus. Nos sentamos em uma das cadeiras vagas e logo vimos a anfitriã chegando até nós, sentando logo no meu colo.
— Nana, não acredito que você está aqui! – e beijou meu rosto – E aí, Matheus?
— Tranquilo, Vic.
— Estamos dividindo um bong ali, estão a fim?
Virei para o Matheus, e dei um olhar sugestivo.
— Com certeza.
Ela se levantou e segurou minha mão, nos guiando até lá.
Fim do capítulo
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