Agulhas e alfinetes
Apesar da ressaca que me trazia uma enorme dor de cabeça derivada do abuso de vinho, sentia-me bem melhor do que antes, provavelmente por conta da conversa que tive com Jude que se arrastou noite adentro.
Porém, acordamos tarde e depois de uma briga com minha mãe por ter sumido de casa mais uma vez, fiquei pela casa de Jude até dar a hora de saímos de casa.
Ela me deixou na porta da escola, mas antes que eu saísse, ela segurou minha mão:
— Não esquece daquilo que conversamos.
Concordei com a cabeça, e segui escola adentro. A barulheira incomodava, mas quando cheguei na porta da sala, não era isso que incomodava, e sim saber que iria ver Amanda. Por mais que você pense naquilo várias vezes, na hora é totalmente diferente.
E por mais que eu tivesse pensado em diversas possibilidades, nada estava preparado para que eu acabei vendo: Amanda, de cabeça baixa, no colo de Luiza, que acariciava ela de forma sugestiva.
A cena foi como um soco direto no meu rosto, seguido de outro no estômago. As pessoas passavam por mim, mas não conseguia me mover, porém eu deveria fazer alguma coisa.
Segurei meu punho com firmeza, e respirei fundo, caminhando até a minha cadeira naquele trajeto que parecia interminável.
— E aí, Hǎi yún – disse Luiza, acariciando os cabelos de Amanda, que não se levantou.
Sentei e sabia que não conseguia esconder minha raiva ao olhar para a cara de Luiza. Tentei não focar no que acontecia do meu lado e enquanto a aula começava e seguia, Luiza continuava a tocar em Amanda, que não se levantava de nenhuma forma.
Até que, quando olhei para elas, vi Luiza piscar para mim.
E foi nesse momento que não consegui mais engolir o que acontecia e, no meio da aula, peguei minhas coisas e saí da sala, logo em seguida da escola.
Estava sem ar, e senti o peso do meu estômago subir para a minha garganta, ficando entalada ali mesmo. Quando pensava em Luiza, meu ímpeto era de brigar com ela, mas logo via que tudo isso era em vão. Não tinha nada que eu pudesse fazer.
A não ser por mim mesmo.
“Não fuja dos seus sentimentos, você sabe que isso não dá certo”, a frase que Jude tinha me dito ressoava em minha cabeça, mas...Eu não me importava. Peguei meu telefone e fiz uma ligação.
— Hǎi yún, há quanto tempo.
— Está ocupada?
— Pra você? Nunca. Por que?
— Posso passar aí?
— Claro, pode vir.
— Já eu chego.
*
Quando cheguei em casa, meu pai estava, assim como minha mãe.
— Hǎi yún, onde você estava? – disse meu pai, sério, olhando para o jardim.
Não respondi, e ele perguntou novamente.
— Onde tava?
— Na escola.
— Mentira – ele disse, virando para mim – Eu passei lá e você não estava.
Minha mãe estava ao seu lado, de cabeça baixa.
— Saí mais cedo.
— Pra onde estava?
Ele andou até minha frente, e levantou meu queixo para que eu o encarasse.
— Responde.
Fiquei em silêncio e nisso, ele deferiu um tapa firmemente em meu rosto, que o virou.
— Yǒng, não...
Ele ignorou minha mãe, e voltou para cima de mim.
— Dāngshí nǐ zài nǎlǐ,Hǎi yún[1]? – ele dizia, gritando.
E nisso, coloquei dois dedos abertos entre minha boca, e coloquei a língua para fora, rindo. Tal ato fez com que meu pai sentisse uma raiva que não tinha visto antes e, não satisfeito, bateu no meu rosto mais uma vez, até que eu caísse.
— Yǒng, para de bater na sua filha! – gritava minha mãe, mas ele a empurrou logo que ela tentou se aproximar.
Ele me segurou pela gola da camiseta, e me estapeou mais uma vez, com meu óculos caindo no chão, e me jogou contra a parede com força. Minha mãe começou a chorar, sentada no sofá enquanto eu tentava recuperar o fôlego perdido em meio a violência causada pela ira do meu pai.
— Você faz isso de se cortar – ele imitava uma gilete passando em seu braço – Pra chamar atenção.
Continuei em silêncio, mas ele continuou falando.
— Não quer atenção? Pois agora tem atenção.
Ele aproximou-se de mim, apontando o dedo em meu rosto.
— Se eu souber que você falta aula de novo, vai se arrepender.
— Mal vejo a hora – respondi, cerrando os olhos, olhando para ele, que ficou ainda mais furioso.
— Vai fazer o quê? Me bater de novo? – disse, sarcasticamente.
Ele socou a parede próximo de mim, e saiu casa afora, batendo a porta do quarto deles.
Minha mãe, ainda chorando, veio até mim enquanto eu juntava meu óculos.
— Hǎi yún, eu já falei pra você não...
— Eu vou pro meu quarto – disse, cortando o caminho pelo seu lado.
— Bǎobǎo, me escuta...
— Boa noite.
Entrei no quarto e tranquei a porta. Fiquei sentada na cama pelo tempo suficiente até ouvi-los discutindo, assim como o barulho de coisas sendo quebradas. Ouvi o grito lancinante de minha mãe o repreendendo, assim como o soar de tapa que dava pra ouvir em meu quarto, e o silêncio que se veio logo em seguida.
Coloquei meus fones de ouvido e a música que tocou parecia sarcasticamente propícia para aquele momento.[2] Olhei para a cabeceira da minha cama e, ao abrir a gaveta, vi aquela velha amiga olhando para mim novamente.
Respirei fundo, sentei-me e retirei minha camiseta e, ao fechar os olhos, senti a primeira passada passar friamente contra minha pele, logo em seguida de tudo estar confortavelmente quente no mesmo segundo. Passei logo abaixo dela outra dela, abrindo uma ferida antiga e naquele momento, continuei fazendo sem parar durante todo o caminho do meu braço, que subiu pelos meus ombros e passava para o outro braço enquanto a música tornava-se estridente.
Quando percebi o que tinha feito, e todo aquele conteúdo saindo dos meus braços, minha única reação foi rir. Não sabia o porquê ria, só sabia que o fazia e enquanto passava meus dedos sobre o vermelho que manchava meu lençol, assim como minha pele, a música fora parando e eu me deitava novamente, olhando para minhas mãos sujas de sangue e passando-as em meu rosto, arrastando até que eu me abraçasse, confortando a mim mesmo.
[1] Onde você estava? em chinês: 当时你在哪里
[2] Needles and Pins, Ramones
Fim do capítulo
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