Capitulo 4
Quarta feira! Dia de entrar na sua personagem favorita, uma turista em Paris. Há dois anos que vivia num eterno estado de encantamento. Depois de um período sombrio, de questionamentos e profunda apatia, despertara uma versão sua que desconhecia. Vivia um autêntico sonho. Morava e trabalhava em Paris. Trabalhava como relações públicas no hotel Elysées Union. Um trabalho que a estimulava, e era um desafio constante. Descobrira-se ousada, persistente, ainda mais sonhadora e capaz de transformar qualquer sonho em realidade. Tantos milagres...sim, ainda acreditava neles. Sorriu ao pegar a sua camera fotográfica. Era um detalhe que não podia esquecer. Seus dias de folga eram sempre destinados a namorar Paris com suas lentes e a enamorar-se pelas infinitas belezas. Saía sempre sem nenhum plano definido, aberta a surpreender-se. Mas, naquele dia em particular, tinha em mente uma exposição de pintura numa galeria nova em Saint Germain de Prés. Respirou fundo e agradeceu por tanto. Nem em seus melhores sonhos ousara chegar tão longe. Estava tudo no lugar...ou quase. O único ponto nebuloso eram as relações afetivas. Não conseguia. A principio, por opção. Queria reconstruir-se sem precisar de bengalas. Depois, mais forte, nada era suficiente. Ninguém. Bastava-se.
--E é tão bom. Acho que só um milagre para tirar esse coração do lugar. - Sorriu e imagens vagas serpentearam pela sua mente. O coração aqueceu. - Juízo para quê, não é Vitória?
Rindo alto, deixou o seu apartamento para mais um dia de aventura.
*****
Sem pressa, Vitória deliciava-se pela exposição. Consumia aquela expressão artística nos mínimos detalhes e seus sentidos correspondiam sob diversas formas. Arrepiada e com os olhos brilhando, perscrutou cada obra. Ainda que embriagada pela beleza, um som estranho ao ambiente chamou a sua atenção. Não era nada estridente, mas marcante. Olhou para um lado e viu um casal tão embevecido quanto ela. Estavam em êxtase, mas no mais absoluto silêncio. Olhou para o outro lado e viu uma mulher numa cadeira de rodas elétrica. Alguma coisa chamou a sua atenção. Ela observava a obra com um olhar diferenciado. Parecia entendê-la ao pormenor. Deslizava pela sala. Devagar. Num impulso, seguiu-a. A nuca...a forma como pendia a cabeça para um dos lados...o perfume. Antes de concluir qualquer coisa, o seu coração já galopava no peito, suas mãos estavam suadas e sua boca seca. Respirou fundo e apertou os olhos. Queria acordar. Despertar daquele devaneio sem sentido. Já tinha esquecido aquele fim de semana. Tinha sido uma ilusão. Três longos anos...
Viu-se no encalço da mulher. Parecia ter rodopiado e caído num sonho. O coração já não cabia no peito. Batia. Batia naquela velocidade, no descompasso mais ritmado de sempre. A cabeça girou a ponto de deixá-la tonta. Nada fazia sentido...
--Desculpa, eu...
A mulher virou o olhar e instantaneamente, Vitória ajoelhou-se aos pés dela. Tocou-lhe as pernas, apalpou com calma. Segurou-lhe as mãos entre as suas e chorou. Chorava e ria sem entender se era realidade ou o melhor dos sonhos.
--Emma...Emma.- Repetiu muitas vezes sem acreditar na mensagem dos seus sentidos. Todos em alerta.
De olhos fechados, Emma parecia absorver a beleza do momento. Tremia e agarrava-se ao contato das mãos quentes de Vitória.
--Isso é mesmo real? Então sempre exististe e não era loucura de uma doida varrida? O que fazes aqui? Há quanto estás em Paris? Emma?
--Há uma semana e eu sabia que estavas aqui, só não sabia onde e nem como encontrar-te...- Sorria com lábios trêmulos.
--Eu não ousava pedir mais milagres, não depois de tantos...- Sorria ajoelhada aos pés dela. Nada mais existia...
--Ensinaste-me a acreditar neles. Eu aqui...é um milagre. - Tocou-lhe a face e sorriu.
Uma voz fez-se notar. Educadamente, chamava por senhora Rozabal.
--Ah sou eu...tenho uma reunião agora. - disse olhando para Vitória - Já vou, obrigada - direcionou o olhar ao senhor que a chamava.
--Tens uma reunião aqui? Hoje é meu dia de folga, queria...- Parou de falar abruptamente. Não sabia como agir. Sua mente pregava peças...
--Tem um Café ao final da rua. Podemos nos encontrar por volta das 13 horas?
--Claro que sim!
Emma manobrou a cadeira e seguiu o senhor elegante que a esperava. Vitória levou a mão ao coração e piscou inúmeras vezes. Instintivamente, pegou a camera e fotografou a cena. Precisava de provas que tudo não passava de um delírio. Saiu da galeria pisando em nuvens...
*****
Sentada numa das laterais do Café, Vitória experimentava um estado de ansiedade sem precedentes. Roía as unhas, inquietava-se na cadeira, olhava de um lado para o outro a ponto de doer-lhe o pescoço. Trinta minutos depois da hora marcada e nem sinal de Emma. Talvez tivesse desistido...talvez...enfiou a cabeça entre as mãos e esperou...
--Estou atrasada, mas...
--Ah...mulher, não faça isso comigo. -Olhou-a aliviada e de sorriso aberto.
Acomodaram-se. Olharam-se com vagar. Encantadas. Inebriadas. Tocaram-se. Ah os sorrisos...
--Tive receio que não viesses. Demorei a acreditar na minha sorte. Não sei como consegui acompanhar a reunião.
--Uma coisa de cada vez...respira.
Emma sorriu e respirou profundamente.
--Só não te esperei na galeria porque percebi que não seria de bom tom. Eu tive medo que fosse mais um dos meus delírios. Depois que foste embora, bem depois, eu percebi o que sempre quiseste dizer...estavas doente...
--Hum-hum...muito, sem qualquer esperança de sobrevivência. Eu estava cansada de lutar. Tinha desistido...
--Sabes que eu acredito em milagres...
--Eu sei...- Sorriu.
--Por muito tempo eu pedi a Deus que te salvasse. Poderia não te ver nunca mais, mas queria que vivesses...eu mudei a minha vida depois de ti...sou dona do meu destino. Obrigada pelo bilhete e pelo conteúdo...salvaste-me a vida.
--Não! Abri uma fresta e tu escancaras-te o portal. O teu pedido foi atendido. Quase morri, mas havia algo maior, mais forte que sempre me resgatava no último sopro de vida.
Suspiraram ao mesmo tempo. Estavam ansiosas e se perdiam nas palavras. O atendente apareceu e por instantes respiraram mais calmas.
--Eu tenho uma condição muito rara e...
--Não vamos falar de doença. Estás viva! Linda! Á minha frente. Quero falar de vida.
--Ensinaste-me a ter esperança...a acreditar...
--E tu me ensinaste a acreditar em mim. Uma pessoa que passou apenas algumas horas na minha vida e conseguiu arrancar-me daquela mediocridade. És mesmo real?
Emma sorriu. Riu.
--Eu tinha tantas saudades disso...saudades tuas...
--Por que demoraste tanto para aparecer?
--Não pude vir antes...não me reconhecerias...
--Emma...estou tão feliz. Sinto uma vontade tão grande de gritar, pular, dançar...
--A nossa dança na chuva...salvou-me. Tu és...
As lagrimas vieram sem pedir permissão e elas não ofereceram qualquer resistência. Algum tempo depois, de mãos dadas, devaneavam.
--Acho que hoje posso tudo, delirar à vontade, sem qualquer censura...
Emma sorriu e concordou.
--O que seria o teu delírio?
--Queria estar sentada numa janela, a tomar um vinho com vista para a torre iluminada. Daqui a pouco acendem as luzes...
--O que te impede de fazer isso?
--Algumas coisas, como por exemplo, não ter vista para a torre da minha casa. Eu moro num apartamento de 30 metros quadrados e é a maior manifestação de prosperidade da minha vida.
--Paris...
--Pois. Lembras do meu sonho? Sabes que me ajudaste...
--A intenção era essa e foi graças a isso que eu sempre soube onde te encontrar. Só não sabia que seria hoje e naquela galeria. Ah, vou trabalhar lá como curadora de arte e também no Museu de Orsay.
--Wow...e isso significa que vais viver aqui?
--Sim. Eu sempre gostei de Paris e também sempre quis morar algum tempo por aqui...
--Permita-me dizer que a cada minuto a minha felicidade atinge novos picos...não me acorde, por favor...não me acorde...
--E o vinho com a vista? Aceitarias passar no meu hotel? Temos uma vista maravilhosa para a torre.
--Estamos perto?
--Hum-hum...
--Compro o vinho pelo caminho. Já sei que a senhora tem o paladar requintado.
Riram.
--Digamos que estou mais interessada na companhia...
*****
No hotel com a vista deslumbrante:
--Era isso que sonhavas?
--Nunca ousei tanto...tenho até receio de falar alto e acordar...
De pé à janela, Vitória mantinha os olhos fechados enquanto apreciava a brisa da noite. A sucessão de eventos daquele dia ainda lhe parecia irreal. A sensação de felicidade plena não se assemelhava a nada que já tivesse vivido...
O cheiro único invadia-lhe os sentidos. Um toque abaixo dos seios, fê-la deleitar-se. Um beijo na nuca deixou-a arrepiada. Um beijo na nuca? Girou o corpo devagar e seu olhar cruzou o de Emma. Sem entender nada, obedeceu a um impulso vital. Beijou-lhe a boca. Gem*ram em simultâneo. Não era apenas um beijo, era o ápice de um encontro há muito esperado. Zonza de desejo, Vitória recuou alguns centímetros. Precisava entender...
--Estás de pé...-Disse com a voz embargada pela emoção.
--É um autentico milagre, depois de tudo o que aconteceu. Os médicos não acreditaram quando dei os primeiros passos. Ainda é cedo para celebrar, mas...
--Vais conseguir. Vamos conseguir, meu bem. Vamos celebrar cada pequena vitória.
--Posso ter retrocessos...
--Ficas linda nessa cadeira. Tu és linda!
Beijaram-se com sofreguidão.
--Um brinde à vida!
--Sim! Um brinde aos milagres de amor.
Fim do capítulo
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Rita Santos
Em: 05/12/2023
"Só mais uma vez, amanhã talvez..."
Parabéns, lindo conto.
Resposta do autor:
Muito obrigada :)
Bjs
brunafinzicontini
Em: 12/07/2021
Que delicadeza, Nadine! Um sonho se realizando para as duas... O milagre acontecendo. Você consegue envolver-nos de tal maneira que nos sentimos vivendo o momento, exatamente naquele local! Sentimos tudo – o cenário e as sensações das personagens. A magia do envolvimento das duas... Sim, conseguimos nos emocionar com elas, como se estivéssemos partilhando do mesmo momento! Magia pura, Nadine! Você sabe nos conduzir por caminhos inesperados! Parabéns, mais uma vez, pela maestria com que conduz as palavras, levando-nos a um mundo de encantamento.
Beijos,
Bruna
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preguicella
Em: 08/07/2021
Que lindooo! O milagre aconteceu!
Sabia que vc não ia nos decepcionar! hahaha
Bjão
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