O que eu quero
— Alana, você trouxe seu projeto?
— Eu trouxe, professor.
— Matheus, você tem que parar de ficar acobertando a senhorita Alana o tempo todo.
Mal conseguia levantar minha cabeça. Tinha prometido para mim mais uma vez que não beberia mais, como em toda vez. Vomitei o banheiro inteiro junto com Alan, que ainda estava de cama. Teve que levar atestado para o trabalho, falsificado por um amigo.
— Ela não tá muito bem hoje, professor.
Ele deu uma olhada de canto, e deu os ombros, analisando o projeto.
— Tá me devendo uma – disse Matheus, chacoalhando meu ombro – Nossa, parece que você está morta.
— Eu não quero mais isso pra minha vida, Teteus.
Matheus cerrou os olhos, aproximando-se de mim.
— Do que você está falando?
— Eu não aguento mais essa vida de viver de ressaca e bêbada, qual foi a última vez que você me viu sóbria?
— Quando você quase morreu misturando MD com tarja preta.
— Pois é – cruzei os braços, me apoiando na cadeira – Tenho que parar com isso.
Matheus cerrou ainda mais os olhos, e começou a rir, balançando a cabeça.
— Já sei o que aconteceu.
— O quê?
— Você está apaixonada por aquela mulher da boate.
— Vai se foder Matheus, claro que não – respondi, balançando-o.
— Claro que está, só uma coisa te motiva nessa vida além de bebida, e se chama mulher.
— Deixa de ser otário. Eu conversei com uma pessoa e reconheci que minha vida é uma merd* mesmo.
— Eu já te falo isso faz tempo.
— Mas agora é diferente – segurei seu ombro – Aconteceram umas coisas bem...ruins – não podia comentar com ele o que aconteceu com Alan.
— Eu espero que seja de verdade dessa vez, viu? – ele apontou para mim, me puxando para um abraço – Quero o seu bem.
*
— Pode entrar.
— E aí, doutora – disse à Catarina, enquanto andava a passos largos, sentando em uma cadeira à sua frente – Quais são as novidades?
Ela me encarou entre os livros, e os fechou.
— Você parece estar feliz hoje.
— Estou com uma ressaca infernal, só estou tentando disfarçar que na verdade estou morrendo por dentro.
Catarina ajeitou os óculos e pegou uma prancheta.
— Fez o que te pedi, sobre procurar outras coisas além das drogas?
— Sim, mas aí eu fiquei chateada, bebi com meu irmão e acabei bêbada por três dias.
— E como foi?
— Relembrei de umas coisas chatas, daí fiquei puta e fui encher a cara.
— E quais coisas seriam essas?
— Meu pai – respondi incisivamente.
Ela parou de anotar, e cruzou os braços.
— O que tem seu pai?
— É um filho da puta, com todo respeito à minha avó.
— E tem algum motivo do seu pai ser um filho da puta, ao seu ver?
— Ele finge que não existimos mais.
— E como é isso?
Franzi as sobrancelhas, e me levantei.
— Você falou que isso não seria uma sessão de terapia.
— E não é, mas nunca parou pra pensar que isso possa ser um dos seus gatilhos?
— Minha vida toda é um grande gatilho, doutora.
— Eu não sou doutora, Alana – ela colocou a prancheta de lado – Mas sei o suficiente que isso é um claro comportamento defensivo. Esqueceu que estou aqui para te ajudar?
Olhei bem para ela, suspirei e voltei a me sentar. Ela continuou me olhando.
— Eu achava que tínhamos uma família perfeita. Meu pai era legal, minha mãe o amava, vivíamos muito bem, nunca os vi brigando, até que... – suspirei devagar – Ele foi embora morar com a amante, se separou da minha mãe e minha adolescência foi resumida em brigas judiciais por guarda e pensão, que resultou que ele paga uma boa grana a mim, mas em compensação, devem fazer três anos que não tenho notícia dele. Fim.
— Ele tem outra família?
— Sim, a família dele – apontei para mim mesmo – Não estou inclusa nisso.
— Você comentou que começou a beber na adolescência, além de uso de outras substâncias, você remete a isso?
— Claro que não – disse, rindo – O problema era outro.
— Sabe dizer qual?
— Eu não me aceitava como sou.
— Como?
Comecei a rir, me balançando de um lado para o outro.
— O fato de eu ser lésbica, doutora. Eu achava que meus pais estavam se separando por desconfiarem de mim, só depois de muito tempo que vim ver que não.
— E você aceitou que não?
— Está falando que sou assim porque ainda sou reprimida? – levantei uma das sobrancelhas.
— Eu não disse nada, Alana. Você acha que é?
Encarei-a, e ela não mexeu sequer um músculo.
— Vai se foder.
— Acho que já tenho minha resposta.
— Você que deve ser reprimida, doutora.
Ela se levantou, e ficou ao meu lado.
— Acho que já deu por hoje.
Dei um sorriso sarcástico, e me levantei sem dizer nada, indo até a porta e depois indo embora.
*
— Olha só, se não é a mocinha de novo.
— E aí – dei uma piscada para a atendente – Como vai você?
— Vou bem, obrigada – ela se virou para mim – Veio ver a Lavínia?
— Adivinhou.
— Vou avisar que você está aqui.
Sentei em uma das cadeiras do bar, e acendi um cigarro. Já me sentia familiarizada com o ambiente neon daquele lugar e, enquanto tragava o cigarro, a atendente voltou.
— Ela falou que você pode encontrar ela lá atrás – ela apontou para trás – Corredor à direita, última porta.
— Obrigada.
— Não tem de quê – e deu outra piscada para mim.
Segui pelo caminho mostrado para ela, e bati na porta.
— Sou eu.
Mas ninguém respondeu, então girei a maçaneta e vi que a porta estava aberta.
O ambiente estava todo escuro, com exceção de uma luz vermelha de fundo. Uma música que reconhecia de algum canto[1] tocava baixo no lugar, dando um ar cinematográfico, complementado com os espelhos de fundo, e roupas penduradas em cabides.
— Lavínia?
— Está ficando quente – ela sussurrou de algum canto.
Continuei caminhando, até que em um lugar, vi que ela estava de costas, sentada em uma cadeira como uma diretora de cinema. Ela estava de olhos fechados, usava uma máscara como dos bailes dos filmes de época e usava uma peruca azul, curta. O som vinha do seu telefone.
— Achei você.
Ela deu um sorriso largo, mas não saiu do lugar, e nem abriu os olhos.
— Achou.
— O que está fazendo?
— Relaxando um pouco antes de entrar, e você?
— Adivinha?
Ela abriu os olhos, e se levantou, indo em minha direção.
— Veio comprovar se o que eu disse era verdade?
Olhei para ela de forma sugestiva, e ela passou as mãos em meu pescoço. Respirei fundo.
— Talvez.
— E se não for? – ela dizia bem próximo de mim, passando as mãos em meu queixo.
— Acontece.
— E se for? – ela deslizou os dedos até minha boca, passando o polegar sobre meus lábios.
— Seria ótimo, então? – respondi, sussurrando.
Ela passou as mãos sobre os meus ombros, e encostou a cabeça nele.
— Está sentindo isso?
— O quê?
Lavínia aproximou o rosto do meu, a ponto que pude sentir a sua respiração próximo a mim.
— Essa tensão entre nós.
Peguei-a pela cintura, ficando ainda mais perto. Ela segurou minhas mãos e a deslizou sobre a sua cintura, e logo por suas pernas, respirando fundo para que eu pudesse me conter.
— Sim, estou sentindo.
— E não acha isso divertido? – ela sussurrava em meu ouvido, segurando minhas mãos com força.
— Por que resolveu brincar comigo, então? – sussurrei de volta.
— Talvez porque você tenha o rostinho mais bonito que já passou por aquela porta.
— Como sei que não está mentindo?
Ela pegou uma das minhas mãos e passou entre suas pernas, sentindo-as úmidas.
— Pareço estar mentindo para você?
Segurei suas mãos, e a encostei contra a parede atrás de nós. Olhei diretamente em seus olhos, e ela com um sorriso irônico, continuou me encarando de volta.
No entanto, ouvimos batida na porta.
— Lavínia, é a sua vez! – gritou alguém do outro lado.
— O dever me chama – ela disse para mim, segurando meu rosto.
— Por que isso sempre acontece?
— Sou uma garota requisita – ela se afastou de mim, mas antes que saísse, segurei em suas mãos.
— Quando tem um tempo em sua agenda?
Ela parou, colocou seu sobretudo de cetim e se virou para a porta, mas antes que fosse, olhou para mim.
— Quando você estiver sóbria, ou vai acabar dormindo – e mordeu os lábios.
— Anotado – fiz uma saudação para ela, e assim ela saiu. Não tardou muito para que eu saísse também, voltando para a casa.
Ao chegar lá, Alan estava no sofá assistindo televisão.
— Como você está? – perguntei a ele, dando um beijo em sua cabeça.
— Péssimo. Valentina vai fazer o procedimento amanhã.
— E isso não era o que você queria? – sentei ao seu lado.
— Era, mas...Não queria que nosso relacionamento acabasse assim. Ela falou coisas bem grosseiras para mim, você sabe o quê.
— Alan – segurei os seus pés que estavam ao meu lado – Nascemos para ficar sozinhos, essa é a verdade. O mundo não nos merece.
— Ou o mundo não merece a gente, acredito mais nessa hipótese.
Continuei assistindo televisão, até que ele comentou.
— A mamãe ligou, perguntou por você.
— Como ela está? Ela está bem?
— Está levando, como sempre.
Assenti com a cabeça, batendo nos pés dele enquanto continuava assistindo à programação.
— Ela sente sua falta, Naninha.
— Ela me chamou de aberração e me mandou embora de casa, Alan.
— Mas isso já faz anos e ela já se arrependeu, você sabe.
— Pois a mágoa continua a mesma, não parece que passou nenhum dia.
— Não fala assim, a mamãe te ama.
— Você fala isso porque não teve que ouvir as merd*s que eu ouvi.
Ele ficou em silêncio, e suspirou fundo, voltando a assistir à televisão.
— Desculpe.
— Vou pro meu quarto.
— Eu vistoriei tudo, inclusive sua gaveta de calcinhas e atrás do guarda-roupa – ele cruzou os braços, me encarando – Você não me engana mais.
— Vai se foder, Alan – disse, me levantando.
— Faço isso pro seu bem – ele respondeu gritando de onde estava enquanto eu ia para o meu quarto – Uma hora você vai me agradecer.
Respirei fundo e me joguei na cama. Não fazia um dia que estava sóbria, e minha vida já parecia uma grande merd*.
[1] Oblivion, Grimes.
Fim do capítulo
Comentar este capítulo:
Deixe seu comentário sobre a capitulo usando seu Facebook:
[Faça o login para poder comentar]