Uma de minhas mentiras
Ao chegar na escola naquele dia, havia logo na chegada o nome dos alunos que tinham tirado a melhor nota. Curiosamente, quando bati o olho na lista, vi o nome da Amanda entre os primeiros, sendo a maior nota da turma onde estudávamos, se equiparando a das turmas específicas.
Ficava claro que esse fato ia trazer ela à tona para a diretoria, que a veria como o cristal a ser lapidado. Bem, nada do que Amanda já não merecesse, visto o esforço que fazia diariamente para estar ali.
Entrei na sala, e vi ela sentada em sua cadeira e Luiza apontando em minha direção. Amanda virou para me ver.
— Vi seu nome lá fora – disse ao se sentar ao seu lado – Parabéns.
— Estava falando para ela que íamos protege-la da fama – dizia Luiza, gesticulando em minha direção.
— Fama? – ela dizia, deslizando os ombros e afundando na cadeira – Não, eu gosto da minha vida aqui atrás.
— Mas você não vai nos deixar, não é? – Luiza passou o braço sobre o ombro de Amanda – Como vou viver sem você?
Olhei para aquela cena, e suspirei, revirando os olhos.
— A Hǎi yún não fala, mas vai sentir falta também – ela complementava, olhando séria em minha direção. Amanda olhou para mim, dando um tímido sorrido e abaixando a cabeça.
A secretária a chamou para a sala do diretor e ela, desajeitada, levantou-se.
— Com licença – disse para nós ao ir, me deixando sozinha com Luiza, o que não acontecia há um bom tempo.
Luiza mexia em seu telefone, mas sabia que era questão de tempo até que ela falasse comigo, o que demorou menos do que eu imaginava.
— Vi que você e a Amanda andam conversando...
— E o que tem? Sentamos todas juntas.
— Mas comigo você não fala – ela continuava a falar, sem levantar os olhos da visão do telefone.
— Luiza, tenho motivos suficientes para não querer falar com você.
— Você tomou as dores da Jude em relação ao que aconteceu entre nós.
— Não é isso – dizia, com certa indignação – Você sabe que não é.
— Então o que é?
— O problema é que você só se envolve com garotas quando lhe convém – estiquei-me de onde estava para falar mais perto dela, que levantava o olhar – Ou você esqueceu do que rolou na casa da Sofia?
Ela manteve-se calada, mas cerrei os olhos e gesticulei em sua direção.
— Eu até entendo a Jude por ela já ter a fama de lésbica requisitada, mas a Amanda, Luiza? – apontava para ela – Você nem sabe se ela é.
— Hǎi yún, pelo amor de Deus – ela ria – Eu tenho certeza que ela é, só está no armário ainda.
— O que te faz falar isso com tanta convicção?
— Só falei a verdade – ela deu os ombros – Que você não é educada com nenhuma garota e que era pra ela ficar esperta.
Levantei-me e fui em sua direção, tomada pela raiva.
— Você está maluca, porr*?
Luiza continuava com seu ar irônico, olhando direto para mim, e pressionando os lábios, dando um sorriso sarcástico.
— Mas aí ela ficou toda errada, falando que eu não deveria me meter na sua vida e que isso não mudava nada.
— O que te fez achar que tem o direito de falar de mim para ela?
— Está com ciúmes, Hǎi yún? Medo de perder a amizade de vocês?
— Você é desprezível, Luiza – respirei fundo, voltando para o meu lugar – Jude fez o certo em deixar você.
— E por isso estou tentando curar meu coração partido com outra – ela dizia com um tom inocente, o que me enojou no mesmo segundo.
Amanda apareceu na porta segurando um livro, acenando em nossa direção. Luiza olhou para ela, acenando de volta.
— Não se preocupa, eu tiro a dúvida pra você se ela curte ou não em breve – e se levantou, indo em direção a Amanda.
Luiza era a melhor personificação de duas caras que eu conhecia. Ela parecia se travestir de outra coisa quando queria alguma coisa. Uma garota comunicativa, amiga e companheira que sempre está ao seu lado, tentando te animar.
Mas a mesma garota que fazia isso era a que não pensaria duas vezes em te apunhalar pela costa, se isso fosse o necessário para que ela conseguisse o que queria.
Elas estavam conversando ali, com Amanda animada mostrando o livro que tinha ganho e, ao vê-la, senti um embrulho no estômago. Amanda, até onde eu pude conhecer dela, não era merecedora de nada aquilo e ouso concordar que era inocente o suficiente para não perceber quando alguém está mal intencionado em sua direção. Amanda era boa a ponto de não ver, ou não querer ver, a maldade nos olhos das pessoas, e isso se mostrava mais evidente na medida em que sentia a olhos nus a reais intenções de Luiza e nada podia fazer.
Na hora da saída, vi Amanda sentada junto a sua bicicleta, me esperando, agora sem Luiza. Ela se levantou logo que me viu e seguimos o caminho que sempre fazíamos, mas dessa vez, eu não conseguia me concentrar em dizer nada para ela.
Pensava no que Jude tinha dito, e no que Luiza disse sobre tudo aquilo. Queria falar para Amanda ter cuidado, mas também pensava que eu não deveria me meter em sua vida. Toda vez que olhava para ela, que encarava o caminho à sua frente e vez ou outra olhava em minha direção, me sentia mal por tudo que tinha ouvido a seu respeito e das intenções que tinham a seu respeito.
E em um ato impensado, segurei a manga de sua camisa, como um sinal de alerta involuntário que meu corpo teve em meio aquela sequência de pensamentos. Amanda virou e me olhou com mais atenção, esperando que eu falasse.
— Tem como você me deixar em casa hoje?
Ela arqueou as sobrancelhas, surpresa.
— Pensei que sempre te deixasse na rua de sua casa.
— Não – balancei a cabeça, envergonhada – Sempre fico próximo.
— Mas sem problema – ela subiu na bicicleta – Consegue vir no varão?
— Bem, não tenho o costume, mas posso tentar.
— Deixa eu levar a sua mochila – Amanda esticou as mãos para mim e entreguei minha mochila a ela. Subi de forma desajeitada naquilo, tentando me equilibrar como podia.
— Só me avisa quando chegarmos lá, pode ser?
Concordei com a cabeça, e ela seguiu o caminho ao qual mostrava para ela. O trajeto foi silencioso, não conseguia pensar em outra coisa para falar para a Amanda, mas ela cortou o silêncio.
— Por que você vinha andando de lá?
— Não queria incomodar...
— Agora que já sei onde é, não te deixarei mais andar sozinha por essas bandas, pode ser perigoso.
— O perigo às vezes está ao nosso lado.
Foi a única coisa que consegui falar sobre o assunto, e Amanda nada mais falou também até adentrarmos na rua da minha casa.
— Está vendo aquela casa ali? – disse, apontando para minha casa.
— Sim.
— É a minha.
Ela parou a bicicleta em frente, encarando a fachada da casa.
— Você quer água? – perguntei ao descer da bicicleta e Amanda me entregar a mochila de volta.
— Não, obrigada... – Amanda dizia, distraída – Mora só você, seu pai e sua mãe nesse casarão?
— Na maior parte do tempo só eu mesmo... – respondi, enfiando as mãos nos bolsos – Você sabe voltar daqui?
— Sei sim, senhora.
— Então... – disse, abrindo o portão de casa – Obrigada pela carona, Amanda, até amanhã.
Acenei para me despedir dela, e ela seguiu o caminho de volta para casa, até onde pude ver ela pedalando pela rua. Entrei em casa e de imediato, liguei para Jude.
— Fala, Hǎi yún, qual a boa?
— Jude, podemos dar uma volta?
— É claro, está sozinha em casa?
Olhei para os lados. Nenhum sinal de pessoas pela casa.
— Sim.
— Então se arruma que já vou te buscar.
*
— Luiza sendo uma filha da puta, você ainda se surpreende?
Jude e eu estávamos nos fundos de um supermercado, sentadas na parte de trás do carro que ela dividia com sua irmã, Julia. Compramos uma garrafa de vinho seco e dividíamos um dos seus cigarros, olhando para o movimento que ali tinha de outras pessoas que também faziam o mesmo que nós.
— Sempre me surpreendo com o tanto que ela pode falsa.
— Engraçado que... – ela dizia, tragando o cigarro e jogando a fumaça para cima – Ontem mesmo ela mandou mensagem para mim.
— Dizendo o quê?
— Que não me esquecia, que queria que nós déssemos certo...
— E você disse o quê?
— Se ela pensava que eu tinha nascido ontem – Jude respondeu, rindo – Não sei como vocês ainda não brigaram.
— Porque eu ignoro sua presença na maior parte do tempo – dei os ombros, servindo mais vinho para mim – Só às vezes que ela fica se jogando em cima da Amanda, ou falando alto alguma coisa...
— Falando na Amanda, fez aquilo que eu te falei?
— Sim.
— E aí?
— Ela me deixou na porta de casa, fomos na sua bicicleta.
Jude riu, desconfiada, e voltou a ficar séria.
— Fico imaginando seus pais vendo uma cena dessa, Hǎi yún.
— Ela está entre os melhores alunos da escola toda, acredita? – dizia, bebendo – A nota dela foi muito alta.
— Jura? Não consigo ser a melhor nem em existir.
— Ela é muito dedicada, estuda todo dia.
— Eu imagino, e inteligente também, pelo que você fala.
Olhei para Jude, que olhava para a frente.
— Falo muito dela?
— Bem... – ela entregava o cigarro para mim – Pelo menos uma vez em toda a vez que nos falamos.
Envergonhei-me, e abaixei a cabeça, balançando o copo seco entre minhas pernas.
— Ei, Hǎi yún, o que foi? – perguntou Jude, colocando a mão em meu ombro.
— Não acho legal o que a Luiza está fazendo com ela.
— Dando em cima dela?
— E fetichizando ela, como se ela fosse um objeto – peguei mais vinho par mim, colocando no copo vazio – Ela fica jogando para saber se a garota curte o mesmo que nós e isso é tão...Horrível.
— Sei exatamente o que é isso... – Jude concordou com a cabeça, e colocou a mão sob a minha – Mas sabe o que você faz?
— O quê?
— Se você se sente bem do lado dela, não deixa a Luiza te atingir. Você é maior que isso.
— Sou?
— Porr*, Hǎi yún – Jude dizia, rindo – Você se assumiu pros seus pais mesmo sabendo que seu pai é conservador, do que você tem medo?
Encarei para o conteúdo escuro do meu copo, pensativa.
— De mim mesmo.
Jude esticou os braços e me abraçou, afagando minha costa.
— Ei, não fica assim, tudo vai dar certo no final.
Assenti com a cabeça e voltamos a beber, sem tocar mais no assunto.
Quando cheguei em casa de novo, estava levemente alterada, e minha mãe estava na cozinha, mexendo em alguns papéis.
— Para onde estava?
— Saí com a Jude.
— Trouxe comida pra você, está na geladeira.
Caminhei até ela, e minha mãe me olhou com atenção.
— Estava bebendo, Hǎi yún?
Dei os ombros, indo esquentar a comida.
— Não é só porquê seu pai não está em casa que você pode ficar por aí, Hǎi yún.
— Não é só por que não tem ninguém em casa, você quer dizer.
Ela suspirou, e voltou a seus documentos.
— Eu não passo o dia a esmo por aí, Hǎi yún. Você fala como se eu gostasse disso.
— Então por que em nenhum desses momentos você pode ficar um momento comigo?
— Porque eu estou ocupada, Hǎi yún.
— Então... – disse, pegando meu prato aquecido – Coloca aí na sua agenda uma hora pra falar comigo, pra semana que vem, porque essa semana deve estar muito ocupada, certo?
Minha mãe olhou e, sem dizer mais nada, voltou a rabiscar os papéis em sua frente e eu fui até meu quarto.
Fim do capítulo
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