Você quer dançar?
— O que achou do seu reforço literário?
— Eu vi alguns autores no ensino médio, mas nunca tinha me aprofundado.
A aula ainda não tinha começado e eu conversava com Amanda nesse meio tempo. Tinha emprestado os livros que achava necessário no preparo para fazer a prova do vestibular e ela, como a boa aluna que era, dedicada e paciente, entregava-os antes do prazo que imagina que ela fosse entregar, e sempre conversávamos sobre eles, entre outras coisas.
Naquela altura, já tinha feito o que estava ao meu alcance naquele quesito, porém o nosso convívio já estava estreito o suficiente para que isso tivesse ficado em segundo plano.
— Agora vendo dessa forma, vejo que deveria ser mais valorizado – ela voltava a dizer, olhando para mim.
— Com certeza, além de que o ensino datado das escolas deixa ainda mais chato, como por exemplo, matemática.
— Devo concordar inteiramente com você.
Folheei meu caderno atrás de uma folha em branco para desenhar, e via Amanda me olhar furtiva, desviando o olhar quando a olhava de volta. Ela sempre me olhava assim, mas em vez de eu perguntar o porquê ela fazia isso, me prestava apenas a olhá-la de volta.
— Meninas, vamos? – disse Luiza.
— Pra onde? – perguntou Amanda, desviando o olhar para olha-la.
— Não vai ter aula hoje, os professores não vão poder vir. Triste, né? – Luiza pegou suas coisas – Vamos, antes que mudem de ideia.
— Sério? – Amanda dizia, com certa frustração.
— Uma tarde de folga e está achando ruim? – Luiza voltou a falar e caminhou para fora, gesticulando para que seguíssemos.
Peguei minhas coisas sem dizer nada, assim como Amanda.
— Vamos lá pra casa? – logo disse Luiza – Compramos umas besteiras, vemos um filme...
— Eu não sei... – Amanda dizia pensativa, e parou quando chegamos na frente da escola – Você quer ir, Hǎi yún?
— Fica pra próxima – eu sabia que o motivo do convite não era endereçado a mim.
— E você, Amanda? – Luiza dizia, indo para a frente dela. Amanda olhou para mim e em seguida para Luiza.
— Fica pra próxima também.
Luiza olhou com surpresa e um tom de confusão.
— Você que sabe – ela deu as costas – Até amanhã.
Amanda olhava para mim, passando alguns segundos em silêncio.
— Bem...O que você vai fazer agora? – Amanda perguntava, arrastando as unhas nas alças de sua mochila, olhando para as pessoas que passavam por nós.
— Vou dar uma passada na livraria, quer ir comigo?
— Claro, então vamos até lá – ela foi pegar sua bicicleta e subiu nela, comigo fazendo o mesmo em seguida.
Quando paramos e ela trancou sua bicicleta, Ivan, o proprietário da loja, nos cumprimentou.
— Senhorita Hǎi yún, trouxe uma amiga consigo?
— Sim, senhor. Saímos mais cedo da aula hoje.
— Como você se chama, senhorita? – disse ele, curioso.
— Amanda.
— Fique à vontade, Amanda – ele deu um sorriso amigável e voltando a sua leitura.
Andei na frente das fileiras, passando os olhos pelos livros e puxando um deles, entregando nas mãos de Amanda.
— Conhece?
— Não – ela olhava com atenção para a capa – Cecília Meireles.
— Você vai gostar.
Continuamos a andar, até chegar nos fundos.
— Você sempre faz isso?
—O quê? – perguntei, indo me sentar na mesa que tinha de fundo.
— Vem pra cá, e traz alguma pessoa consigo – Amanda continuava a dizer, colocando suas coisas na mesa.
— Só quando me responsabilizo de ajuda-las com a matéria.
— Pensei que já tinha lido as leituras obrigatórias.
— Ler nunca é demais.
Ela concordou com a cabeça, e nos sentamos nas cadeiras, uma de frente para a outra. Puxei meu caderno e peguei meu lápis e via Amanda folhear o livro, atenta.
E, sem pensar muito, comecei a esboçar o que via à minha frente. Amanda lendo, concentrada, curiosa com as palavras que estavam à sua vista, encostando-se na cadeira, séria.
Até que em um certo momento, ela falou:
— Você não está com calor?
— O quê? – disse, distraída.
— É que você está usando uma camisa de mangas longas – ela dizia, olhando entre o livro – Não está com calor?
Quando ela disse essas palavras, lembranças recentes inundaram minha mente. Lágrimas, dor, sangue, alívio, repreensão, lágrimas, dor, sangue...
— Não, está tudo tranquilo.
Voltei a desenhar, agora dando uma forma mais firme ao esboço. Estiquei-me e deixei meu braço livre apoiado na mesa, estendido.
Até que eu senti um leve formigar vindo da ponta dos meus dedos e, quando levantei a vista, pude sentir os dedos dela encostando nos meus. Pensando que aquilo tinha sido uma coincidência, continuei da mesma forma, mas na medida em que, tentando disfarçar que via, seus dedos rolavam pela superfície, tocando ainda mais nos meus.
Quando olhei para frente, havia algo diferente. Era a maneira de olhar de Amanda.
Ela sempre olhava de forma fortuita, por muitas vezes furtiva, desviando o olhar quando nos olhávamos. Por mais que quase sempre nos falássemos pelo telefone, quando estava com ela de fato, as coisas eram diferentes, e eu tinha convívio com ela o suficiente para saber que aquilo era realmente diferente.
Seu olhar agora era direto, como se procurasse me ver além daquilo, procurando de alguma forma ter mais daquilo que via. Sua boca entreaberta deixando o ar sair lentamente de seus pulmões, pressionando os lábios em seguida, tomada pelo receio da atitude que tomava.
E, nesse momento, também me permiti fazer o mesmo que ela. Recostava-me a ponta dos meus dedos contra os seus, e senti que o formigar das pontas dos meus dedos subiam indo pelo meu braço e chegando até meu peito, fazendo eu respirar devagar, recobrando o ar logo ao olhá-la diretamente.
— Aconteceu alguma coisa? – perguntei a ela. Amanda logo recobrou a postura, arfando e piscando algumas vezes, como se voltasse de um transe.
— Eu acho que já tenho que ir.
— Já? – perguntei, franzindo as sobrancelhas – Ainda está cedo.
— É que tenho umas coisas para resolver... – dizia ela levantando a mão que estava sobreposta na mesa, passando pelo pescoço, me olhando com desconfiança – Desculpe.
— Tudo bem – levantei junto com ela – Tem algum problema se eu voltar com você?
— Não, nenhum.
Devolvemos o livro, e seguimos o caminho sem dizer nada. Amanda estava reclusa, desconfiada, como se tivesse sido pega cometendo alguma coisa que não devia. Suas bochechas estavam coradas, e ela pressionava os lábios, receosa, enquanto íamos até minha casa.
Suas mãos que guiavam a bicicleta estavam firmes, mas tremulavam. Pensava se minha atitude de fazer o que fiz a deixou envergonhada ou se estava me deixando aqui por educação ou por que queria, ou se era pelo que Luiza podia estar falando de mim...
Ela parou em frente de casa, mas antes que ela fosse embora, não pude deixar de perguntar:
— Está tudo bem? – disse, pressionando os lábios.
Amanda estava com a mesma feição de antes, agora me olhando com atenção.
— Não... – ela balançou a cabeça, confusa – Quer dizer, sim.
Amanda deu um sorriso tímido, constrangido.
— Até amanhã? – ela perguntou para mim.
Algo no jeito de Amanda fazia com que, pelo menos naquele momento, eu pudesse fazer o que queria fazer. Não sabia dizer se era pela forma que olhava, ou de como eu a olhava, mas foi o suficiente para que eu desse alguns passos em sua direção e colocasse minhas mãos em seus ombros, esticando-me para beijar o seu rosto.
— Até amanhã.
E me afastei dela, entrando para casa sem olhar para trás. Nos momentos de coragem que duram alguns segundos são seguidos de momentos tomados pela vergonha. Vergonha, não arrependimento.
Coloquei a mão em meu peito, sentindo meu coração bater rapidamente, acelerado, e meu ar quase faltar. Entrei em casa e, após tomar banho e jantar, fui ao meu quarto e peguei meu caderno, vendo o desenho que tinha feito dela. Senti aquilo tomar conta do meu peito mais uma vez ao imaginar seu sorriso, o toque da sua pele contra meus lábios, a sua presença.
No MP3 tocou “Do You Wanna Dance?” do Ramones. Engoli em seco, e continuei o desenho. Na medida em que desenhava, aquela sensação persistia e no fundo eu sabia o que estava acontecendo.
Sua imagem não saia de minha mente e fazia meu corpo reagir ao me lembrar dela dessa forma.
Eu estava definitivamente apaixonada por Amanda.
Fim do capítulo
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