Como dois estranhos
— Sério, Nana?
— Juro para você.
— Mas que merd*! – ele exclamou enquanto conversávamos antes da aula – Eu sou tão feio assim?
— Você não é feio, só...Vai que não faz o tipo dela.
— Mas pra mandar eu nascer de novo? – ele dizia emburrado.
— Não foi bem o que ela disse... – segurei em seu ombro.
Ele olhou de canto de olho, e logo voltou a rir.
— Já entendi o que ela quis dizer, Alana.
— O quê?
— Ela não gosta de homens, cara.
— Não viaja, Matheus – comecei a rir.
— Ela mandou eu mudar de corpo, Alana. Só se eu virasse mulher.
— Ou sei lá, vai que ela falou que se atrai por aqueles padrões bombados.
Matheus cerrou os olhos, e voltou a rir.
— Você não engana nem a si mesmo.
— Você que está dizendo que uma dançarina de boate é gay e que me engano?
— E qual mal seria se fosse? – ele deu com os ombros – Trabalho não se mistura com vida pessoal.
— Daqui a pouco vai dizer que ela estava dando em cima de mim.
— Não estou sugerindo nada, mas e se estivesse?
Encarei-o por um momento, e balancei a cabeça. Ele me empurrou sorrindo e logo depois, a aula começou.
*
— Pode entrar.
Entrei no laboratório, e mais uma vez o cheiro de formol me incomodou. Catarina estava em uma das longas mesas, analisando um livro e anotando em um caderno. Seus óculos caíam do rosto enquanto ela anotava, mas assim que me viu, fechou o livro e pegou o caderno.
— Como você está, Alana?
— Bem, eu acho.
— Fez o dever de casa?
— Acho que sim – puxei do bolso um papel amassado e entreguei a ela.
Catarina olhou com atenção, e gesticulou para que eu sentasse, logo sentando em minha frente. Ela voltou a fazer anotações no caderno, olhando o papel que tinha entregue.
— Se incomoda se eu repetir o que você escreveu aqui?
— Nenhum problema – tinha fumado um baseado com Matheus antes de vir para justamente regular o nervosismo que teria ao ser confrontada.
— Coisas que eu gosto: minha mãe, meu irmão, a comida do meu irmão, meu melhor amigo, maconha, vinho tinto, filmes antigos, ecstasy, misto quente, ácido lisérgico, festas, chuva e... mulheres – ela arqueou as sobrancelhas.
— Exatamente isso, senhora.
— Você tem algum hobby, Alana?
Pensei um pouco, até que cheguei em uma conclusão.
— Eu gosto de observar as coisas.
— Algo da sua preferência?
— Quando era criança, gostava de ir ao campo ver as flores e como elas cresciam...Mas isso já faz muito tempo.
— Não faz mais isso por quê?
— Crescemos e nos tornamos chatos e ansiosos, e paramos de ver o brilho nas pequenas coisas – respondia enquanto batia os dedos na mesa.
Ela parou de anotar e me encarou. Pela primeira vez, pude ver a cor dos seus olhos que eram de um tom de avelã, que chamavam atenção por conta das lentes dos seus óculos, que deixavam bem claro.
— Nisso tenho que concordar com você – ela voltou a anotar – Mas não fez mais nada desde então?
— Acho que comecei a usar drogas no meu tempo livre, e é isso.
— Sua rotina sempre foi assim?
Pensei por mais um tempo, e suspirei.
— Não.
Catarina me encarou, colocando o caderno entre as pernas cruzadas, e me olhando de soslaio.
— E quer falar sobre isso?
— Não me sinto à vontade falando da minha vida com uma estranha.
— Justamente por eu ser uma estranha você deveria falar, já que não vou ter nenhum julgamento precipitado de você, já que não a conheço.
Cerrei os olhos, enquanto ela continuou com a mesma pose.
— Você é boa mesmo nisso.
— Tento dar o meu melhor.
— Nem sei por onde começar.
— Você sabe qual foi o ponto de ruptura, certo?
Ela levantou o olhar, e eu suspirei alto, olhando para o outro lado.
— Sim, eu sei.
Olhava para um lado e outro, sentindo a ansiedade tomando conta de mim. Batia os pés no chão, analisava o meu redor.
— Eu sinto que nunca vou superar a Paula.
— Sua ex?
— Sim.
— Por que?
— Porque tudo na minha vida era a Paula, eu construí minha vida em sua volta, tá ligada? Projetei tudo com ela ao meu lado, e ela... – olhei para o lado – Ela me deixou.
— Houve alguma motivação para o término de vocês?
— Primeiro ela disse que o problema era o relacionamento à distância, já que ela conseguiu uma bolsa para estudar em outro canto, depois eu soube que eu era uma grande otária que estava sendo corna, sabe-se lá há quanto tempo.
Catarina continuou me olhando, então continuei falando:
— Ela tinha um caso com uma colega de turma – meu tom de voz tinha assumido a morbidez de lembrar daqueles momentos – Aluna exemplar, mais bonita, poder aquisitivo maior, mais inteligente, tinha um trabalho, engajada, tudo o que eu não sou.
— Você manteve contato com essa Paula?
— Claro, porque eu sou uma idiota – dei com os braços – Só para ver ela seguindo feliz, está até noiva, acredita? Noiva, bem de vida...Vagabunda desgraçada.
— E você?
— Eu? – comecei a rir – Eu sou isso que você está vendo, tudo de contrário que a madame lá queria pra vida dela. Eu era uma desinteressada, uma problemática, o problema eram os pais delas descobrirem de nós, mas ela está noiva, porr*! O problema sou eu mesmo.
Pressionei os lábios, encarando o chão. Não queria chorar, e Catarina manteve-se firme.
— Você sabia que a maioria das pessoas que se tornam toxicodependentes são por conta de desilusões amorosas?
Levantei o olhar, e ela confirmou com a cabeça.
— Analiso o seu e mais outras dezenas de casos aqui, Alana – ela gesticulava – A maioria dos centros de reabilitação, onde já pude ir, assim como moradores de rua tem como essa uma das maiores causas.
— Faz bastante sentido.
— Depois do seu término com essa Paula, você notou que as drogas que usava de forma recreativa começou a se intensificar, certo?
— Com certeza. Comecei a beber muito mais, a usar outras coisas também, mas nada que eu uso consegue mais...
— Mascarar o que você sente – ela se levantou, e gesticulou para que eu a seguisse – Quero te mostrar uma coisa.
Fomos em frente a um quadro, que continham várias anotações e gráficos.
— Pode se sentar, por favor.
Ela pegou uma vareta comprida, e começou a apontar para as coisas no quadro.
— Quero que você entenda uma coisa: somos todos compostos de reações químicas. Quando uma vai desregulada, seu corpo emite sinais de que alguma coisa está faltando. É o que acontece quando sentimos sede, fome, etc.
— Estou escutando – cruzei os braços, analisando.
— Aquilo que chamam de amor é basicamente dopamina, mas que também tem outras coisas como noradrenalina, oxitocina, serotonina e até mesmo endorfina.
— Tudo bem, agora não estou mais entendendo tão bem.
— Dopamina é o que te traz a sensação de felicidade e a adrenalina, o que causa a aceleração do coração e a excitação e... – ela apontou para uma das anotações – É a mesma encontrada nas drogas que você costuma usar.
Parei por um instante.
— O que significa?
— Seu cérebro procurou trocar uma coisa pela outra, basicamente.
— E se eu troquei, por que ainda me sinto mal?
— Porque ele correlacionou uma coisa à outra – ela colocou a vareta na mesa – Se toda vez que você usar alguma coisa para resolver outra, seu cérebro vai fazer essa associação.
Olhei para Catarina mais uma vez, que parou ao lado do quadro.
— Você é tipo um gênio do mal?
— Não – ela riu – Quem dera fosse.
— E qual é o seu plano com o Dr. Frankenstein?
— Ajudar a fazer associações diferentes para que assim a pessoa não procure as drogas, resumindo bem. Já foi comprovado que só o isolamento e a repreensão não funcionam, então...- ela andou, até se sentar na mesa ao meu lado – Eu, com o auxílio do meu orientador, procuro modos que sejam mais eficazes para uma melhora na vida.
— Mas naquele dia, você estava bebendo e fumando.
— Não sou perfeita – ela disse, sorrindo – E também disse que era para melhorar a vida dos dependentes, não que eu sou contrária a tudo isso. Acredito que tudo, com moderação, não faz mal.
— E quando começarei a correr na rodinha?
— Já está correndo – Catarina se levantou da mesa, andando ao meu lado – Deixo outro dever de casa a você.
— E seria qual?
— Quero que revisite coisas as quais gostava, e veja como isso vai te deixar. Se fizer isso, se dê alguma coisa de sua preferência como presente.
— Calma, eu vou fazer uma coisa que gosto e vou me presentear? Isso não faz sentido – respondi, me levantando enquanto a seguia para a parte de fora.
— Acredite em mim, faz.
Caminhamos até a porta, mas, antes que eu saísse, virei para ela e falei.
— Imagina se relacionar com você, sempre vai ter uma resposta racional para algum momento amoroso.
— Por isso minha única relação é com a ciência, Alana – ela respondeu, sorrindo – Até a próxima.
Dei os ombros e acendi um cigarro, descendo as escadas.
— E aí, ela já abriu seu cérebro? – disse Matheus, que me esperava na parte de fora do campus.
— Quase – puxei o telefone do bolso – Tenho que ir.
— Qual foi? – ele perguntou enquanto caminhava do meu lado.
— Tenho um encontro hoje, lembra?
— Quando você vai parar de fazer esse tipo de coisa? – ele me advertiu, bagunçando meu cabelo.
— Não sei – apaguei o cigarro no lixeiro ao nosso lado – Vamos logo lá pra frente, que ela já está me esperando.
*
— Alana?
Estava colocando minha camiseta de volta, enquanto ela estava na cama, deitada, envolta nos lençóis, tragando um fino cigarro.
— Sim? – disse, olhando para trás.
— Separei um dinheiro pra você ali na bancada, caso você precise para alguma coisa...
— Você sabe que não precisa disso.
— Eu faço questão – ela deu mais uma tragada em seu cigarro – Em te agradar de vez em quando, como você me agrada.
Dei um sorriso presunçoso, indo em sua direção.
— Se seu marido descobre, te mata.
— O que é a vida se não um grande risco? – ela fumava me encarando. Puxei o cigarro de seus lábios e dei uma tragada ao devolver, soprando a fumaça para longe.
— Quando te encontro de novo?
— Ele volta amanhã, mas vai viajar semana que vem... – ela se levantou da cama, vindo em minha direção – Entro em contato com você de novo.
Fui até a bancada, e peguei o dinheiro reservado. Coloquei na carteira e antes que eu fosse à porta, ela me segurou pela camiseta e me beijou.
— Vou sentir saudades.
Sorri de canto, e me despedi dela.
Caminhando pelas ruas, acendi um cigarro. Já era altas horas da noite, e no meio do caminho, avistei um canteiro cheio de flores.
Andei até eles e me agachei. A iluminação refletia nas flores pequeninhas que estavam ali, amontoadas.
— Pra que servem as flores?
— Não sei, minha filha, embelezam, eu acho.
— Só isso, mamãe?
— Não, as abelhas também as polinizam.
— O que é polinizar?
— Você pergunta demais, Alana.
Peguei uma daquelas flores, e guardei comigo mesmo até em casa.
Quando cheguei, vi que Alan não estava em casa. Coloquei a flor na mesa, e abri a geladeira. Não tinha nada alcoólico.
Fui até meu quarto, e revirei o guarda-roupa. Alan tinha passado por ali, com certeza, então afastei o guarda-roupa e bingo, ali estava, uma garrafa de vinho quente.
Mexi na minha gaveta de calcinhas, lugar onde sabia que Alan nunca mexeria e ali estava o resto da maconha. Abri a rolha com o dente e bebi enquanto bolava dois baseados, fumei e senti o torpor tomar conta do meu ser.
— Mamãe, a senhora só não é mais filha da puta porque tem o papai.
Voltei a beber, e quando vi, meu quarto estava tomando pela densa neblina da maconha.
Logo depois, ouvi batidas no meu quarto.
— Entra.
Era Alan, cabisbaixo. Entrou sem dizer nada e se sentou ao meu lado.
— Pensei que fosse me brigar.
Ele pegou o baseado de minhas mãos e deu algumas tragadas, assim como grandes goladas do vinho, mesmo seco.
— Caralh*, Alan, o que aconteceu?
Ele permaneceu em silêncio, mas ao passar o baseado para mim, suspirou.
— A Valentina terminou comigo.
— Sério, Alan, mas por que?
— Ela descobriu tudo.
— Em tudo você diz...Tudo?
Ele suspirou alto, se jogando para trás.
— Sim, senhora.
— Mas que merd*... – respondi, voltando a beber – Devemos ser amaldiçoados.
— Estou começando a achar que sim.
— E agora?
Olhei para ele de soslaio, e ele fez o mesmo.
— Vou ligar para o depósito.
— Dessa vez, eu não falei nada – dei com as mãos, enquanto me levantava e ia atrás dele.
Fim do capítulo
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