LORENA

- Bom. - Hera se esquiva do golpe direcionado aos seus pés. - Está cansada?

- Não. - Reviro os olhos. Igor, Matheus e Bruno riem do canto da sala. Com um bastão de um metro e meio Hera disfere golpes que desvio sem nenhuma dificuldade e depois de mais alguns minutos ela para.

- Acho que por hoje já está bom. - Hera apoia as mãos no bastão me olhando, seu corpo se inclina e Hera tenta controlar a respiração. - Você sequer suou. Quanto tempo foi dessa vez? - Ela olha para onde todos estavam sentados, nos observando.

- Quatro horas seguidas, sem pausa. - Igor diz, Bruno faz uma careta, de choque. Bruno não sabe que sou uma híbrida, então para ele isso é anormal, até mesmo para um lycan. Por conta dos últimos acontecimentos mal tivemos tempo de conversar, mas hoje fiz questão de trazê-lo para o meu treinamento corporal com Hera, para que passássemos um tempo juntos.

- Cacete. - Matheus se desencosta de um equipamento de exercícios e se levanta do banco em que estava sentado. - Que tal irmos comer agora? Estou faminto, está com fome Lorena? Por que eu estou. - Ele caminha em direção a saída despreocupado. - Vou pedir para Lúcia preparar algumas dezenas de lanches para nós. - Lúcia é uma das cozinheiras que trabalham para a Família Real, vi ela poucas vezes e gostei dela, é uma mulher simpática.

Igor ri indo em direção a saída assim como Hera, deixando Bruno e eu para trás.

- Perdi muita coisa? - Bruno se levanta de um banquinho e alonga o corpo.

- Nem faz ideia, infelizmente não posso te contar, por segurança a Família Real. - Dou um sorriso triste e ele dá de ombros.

- Tudo bem, agora você faz parte da Família Real e tem que começar a pensar na sua segurança, porque se tem pessoas com inimigos a rodo, para dar e distribuir, essa pessoa é o Supremo Alfa e a Família Real.

- Nem me lembre disso. - Caminhamos em direção a saída da sala de treino da mansão.

- Como você conseguiu ficar quatro horas seguidas lutando? Isso é surreal! - Bruno põem as mãos nos bolsos me encarando.

- Não posso falar. - Digo sem graça.

- Ah! Tudo bem, de qualquer forma acho que desconfio do porquê. Semana retrasada estavam falando por aí que você matou o rebelde que invadiu a alcateia, com seus poderes, ninguém viu e ninguém tem provas, mas depois de ver o que eu vi hoje... Estou desconfiando da coisa certa? - Uma pergunta indireta e inteligente para quem não pode perguntar explicitamente.

- É, está. Se Hera souber que isso saiu da minha boca vou negar tudo. - O encaro.

- Mas o quê saiu da sua boca? - Bruno faz cara de confuso e rio.

- Queria ser cínica como você.

- Não está perdendo nada em ser sempre sincera e transparente, eu e Carla brigamos direto porque na maioria das vezes ela acha que estou passando a perna nela, quando não estou. - Semicerro os olhos em sua direção. - Tudo bem! Admito que só quando acho necessário.

- E quando você acha necessário? - Ele pensa por um tempo. Já estávamos no corredor da mansão indo em direção a sala de jantar, de onde as vozes de Hera, Matheus e Igor vinham altas.

- No último ataque eu literalmente quase morri, precisei me transformar para me curar mais rápido antes de chegar em casa. Claro que Carla não sabe disso, disse que fui atingido de raspão por um dos vampiros, ela não acreditou, obviamente, mas não me fez mais perguntas. - Deixo um suspiro sair quando penso no que Bruno deve ter passado.

- O seu lado do muro foi invadido?

- Não, mas entraram vampiros demais, um grupo deles foi para o meu lado do muro, eu e alguns colegas abandonamos o posto para socorrer alguns civis que estavam nas ruas, teríamos morrido se não fossem outros civis se juntarem a nós para ajudar, e só conseguimos eliminar os vampiros ali porque todos se transformaram.

- Presumo que Carla também não saiba disso? - Ele nega com a cabeça. - Se Luís souber que você e seus colegas abandonaram o posto vai ficar furioso, pode até ser expulso.

- Eu sei, mas ele não sabe, e os civis que nos viram prometeram não contar, em agradecimento.

- E os outros colegas de trabalho que viram?

- Também disseram que não vão contar. - Quando chegamos ao umbral da porta, que nos leva a sala de jantar vimos três enormes bandejas prateadas com lanches de todo tipo em cima. Hera, Mateus e Igor devoravam os lanches alheios a nós que agora observávamos a cena surpresos. Lúcia foi bem rápida dessa vez. Depois de alguns segundos Igor nos nota.

- Vão ficar aí só olhando? Não pretendo guardar para ninguém. - Igor se inclina sobre a mesa pegando outro sanduíche o levando a boca. Hera e Matheus se viram para nos olhar mas não dizem nada.

Bruno e eu nos aproximamos da mesa e olho as três bandejas. Uma com lanche aparentemente natural, outra com x-burgueres e a última tinha um cheiro de patê de sardinha. Sem escolher muito peguei um prato intacto em cima da mesa e pilhei um pouco de cada sabor no prato, me servi de um refrigerante e me sentei para preencher o vazio no meu estômago. Bruno permaneceu olhando os lanches.

- Esqueci de falar, pode ficar a vontade. - Digo e ele sorri satisfeito, só então Bruno começa a se servir. Quando todos já estamos cheios o suficiente, permanecemos sentados nas cadeiras da sala de jantar.

- Estão de folga hoje? - Pergunto para Hera. Apesar de ser final de semana e saber que Hera folga nos finais de semana, não sabia que os irmão dela também folgavam nos mesmos dias. Hera dá de ombros.

- Sim, o Supremo quis dar folga para todo mundo hoje, os últimos dias foram estressantes demais, achou que todo mundo precisava de um dia normal, sem trabalho.

- Aí está, duas palavras que não fazem parte do nosso vocabulário há muito tempo: normal e sem trabalho. - Igor debocha. Assim como Hera, Igor e Matheus vestiam somente uma calça larga com um tecido fresco semelhante a um pijama, suas regatas brancas e os pés descalços completaram o visual caseiro.

- Queria poder ter mais dias normais, já não posso dizer o mesmo do 'sem trabalho'. - Matheus beberica seu copo de refrigerante. - De qualquer forma, acho que se não trabalhar para passar o tempo, enlouqueço.

- Então, aproveite esse dia normal, porque amanhã o trabalho começa as seis da manhã. - Hera cruza as pernas deixando o calcanhar em cima dos joelhos.

- Por mais que minha companheira não goste, quando chegar em casa vou aproveitar minha folga dormindo. - Bruno suspira cansado.

- Eu já estou farta de dormir. - Reclamo me lembrando das noites em claro na sala de câmeras, que saudades. Os últimos acontecimentos sempre acabam comigo desmaiada e dormindo por dias seguidos, portanto, dormir está fora de cogitação, dormirei somente quando for necessário.

- Com a energia que você tem, realmente acho difícil você sentir vontade de dormir. - Hera comenta.

- Talvez você queira compartilhar essa energia comigo. - Bruno diz coçando os olhos como se já estivesse com sono.

- Compartilharia se fosse possível. - Depois de alguns minutos jogando conversa fora, acompanhei Bruno até a saída e voltei para sala de jantar, onde Hera, Matheus e Igor ainda estavam sentados, visivelmente cansados. Me sentei novamente no lugar em que estava. Hera se sentava na ponta da mesa, Matheus e Igor do lado esquerdo de Hera e eu do lado direito.

- Alguma notícia da bruxa? - Matheus me pergunta e nego com a cabeça. - Será que ela é louca o suficiente para aparecer aqui dentro da alcateia? - Matheus olha para Hera que até então estava distraída mexendo no celular.

- Espero que não, mas se ela aparecer aqui dentro e conseguirmos pegá-la, vai se arrepender amargamente. - Hera diz e faço uma careta.

- Ninguém vai fazer nada se a pegarem. - Hera, Matheus e Igor olham para mim surpresos. - Ela errou em aparecer em nosso território, mas ela deixou bem claro que não estava aqui para guerra, agradeceria se tentassem conversar ao invés de partir para a violência.

- Na última invasão dois bruxos foram mortos. - Igor comenta.

- Foram mortos porque estavam aqui para matar e atacar, ela deixou bem claro que não queria nada disso, o fato de ela ser uma Profeta do povo dela prova isso, Profetas não são violentos.

- Talvez a Rainha dela só queira nos enganar, nos fazer acreditar que não querem brigar para baixarmos a guarda e atacar. - É Matheus quem diz dessa vez.

- E se elas realmente só quiserem conversar e nós as atacarmos, sem mais nem menos?

- Não seria sem mais nem menos. Encontramos pessoas do povo dela junto com os invasores em todos os ataques. - Hera diz baixo e ignoro o fato de sua voz ter soado tão ameaçadora. - Já sabemos o que elas querem e minha resposta é não.

- Hera, se ela estiver certa sobre os meus poderes nem mesmo Miranda é uma pessoa capacitada para me treinar, eu não quero sair disparando luz matando pessoas toda vez que me sentir irritada ou assustada. - Seguiu-se uns segundos tensos de silêncio. - Quando ela aparecer de novo, quero saber o porquê dela estar interessada em treinar uma mestiça. Eu não devo ter nenhum valor para o povo dela, a questão é: porque ela se importa em me treinar e porque quer me levar até a rainha dela. - Reflito em voz alta.

- Uma vez ouvi dizer que Profetas, tanto da nossa espécie quanto de outras espécies, são sempre direcionados a seguir o caminho da paz e da diplomacia. Talvez a Profeta queira mostrar para a Rainha Branca que você realmente exista, afinal quem acreditaria que uma híbrida existe pela boca de outra pessoa? Eu não acreditei quando Miranda nos contou na reunião. - Matheus reflete.

- Nem Miranda acreditava quando contou. - Igor comenta. - Mas faz sentido, talvez a Rainha Freya queira ver você com os próprios olhos antes de fazer alguma coisa.

- Ela não vai fazer nada, porque Lorena não vai para a aldeia delas. - Hera completa irredutível.

- Não preciso ir até a aldeia delas para Aliandra me ensinar, ela pode me ensinar na floresta. - No momento em que as palavras saem da minha boca me questiono o porquê de querer tanto que Aliandra, uma bruxa, uma inimiga, me treine. Franzo o cenho e me encosto na cadeira novamente. Todos me encaram, como sempre. - Não sei porque quero tanto isso. - Digo inexpressiva e com o olhar perdido sobre a mesa.

- Eu sei o porquê, e digo que você não precisa disso. Não tem que provar para ninguém que não é uma bruxa. Bruxa ou não você é minha companheira e o resto não me importa. - Depois que as palavras de Hera deixaram sua boca percebi que o que ela dizia era verdade, quero provar que não sou uma bruxa, não para os outros, para mim, e a melhor maneira de provar isso, é treinando com Aliandra, mostrando para ela que não sou o que ela pensa que sou.

- Relaxa cunhada, ninguém vai tirar você de nós, mesmo que você seja uma bruxa de verdade. - Igor pisca sorrindo para mim e reviro os olhos.

- Se for esse o motivo de você querer tanto treinar com a bruxa, preciso dizer que faz sentido. - Hera rosna para Matheus em repreensão, mas o mesmo ignora e mantém o olhar em mim. - Eu acho...

- Não acha nada Matheus. - Hera o interrompe, e Matheus ignora mais uma vez.

- Eu acho que a Lorena tem direito de saber o que ela é. Quer dizer, ela é a única híbrida do mundo, porr*! Se alguém aparecesse alegando coisas sobre mim, e existisse uma grande possibilidade de serem verdade, eu ia querer tirar a limpo para saber.

- Cala a boca Matheus. - Hera o repreende novamente.

- Você não ia querer saber Hera?

- Não.

- Você fala isso porque a Lorena é sua companheira, mas sou seu irmão, te conheço a vida toda, digo com toda certeza, você não só ia querer saber, mas ia até a aldeia das bruxas quando as encontrasse, para tirar a história a limpo.

- Concordo com Matheus, ela merece saber. - Igor se intromete e finge avaliar as unhas quando Hera lhe lança um olhar atravessado.

Uma chama bem pequena de prazer se acendeu em mim quando vi os dois irmãos de Hera defendendo meu direito de escolha. Meus irmãos verdadeiros nunca levantaram um dedo para me ajudar. Nunca sequer falaram comigo além de me xingar. Nesse momento me senti acolhida e aceita pela primeira vez desde que vim morar com a família de Hera, que ela insiste ser minha família agora. Para mim, Hera dizer que sua família é a minha não vai me fazer acreditar que realmente é isso, depois desse gesto dos irmãos de Hera, me senti um pouquinho acolhida, ainda assim, fazer parte da família me parece íntimo e grande demais. É algo que leva tempo. Ainda não me sinto parte da família e não me sentirei tão cedo.

Fim do capítulo