Faça isso certo
Judite Ramos Monteiro, mais conhecida apenas como Jude, tinha vinte e três anos e era, como costumava dizer, uma sagitariana convicta. Além da liberdade, ela adorava os prazeres carnais como ninguém, seja com sex* deliberado ou fartura de bebida ou de comida. Sempre fazia tudo ao máximo, sem se importar com as consequências que isso trazia.
Conheci Judite no ensino médio. Era uma aluna repetente de uma turma a mais que a minha, fumante e sempre aparentava estar sob efeito de alguma substância ilegal. Tínhamos tudo para não nos darmos bem, mas ela foi a única que não me olhou com qualquer preconceito.
Ela era lésbica assumida, como gostava de dizer com orgulho. Não se importava em ser vista encarando garotas ou as cantando, ela dizia que se os garotos podem fazer isso, ela também podia, afinal, dividiam coisas em comum como o interesse claro por mulheres.
Jude sabia usar seus atributos físicos a seu favor, como o cabelo loiro que caía pelos ombros, o jeito de se vestir, o seu jeito de sentar descompromissado, assim como, quando usava óculos escuros, os abaixava para olhar alguém de perto. Seu papo, assim como sua postura, era o ponto crucial para que todas as garotas que eu conhecia se interessasse por ela.
Nessa mesma época, eu mostrei que tínhamos o mesmo interesse por garotas e nosso laço de amizade se estreitou. Basicamente um das garotas com que fazia trabalho disse para outras que eu estava olhando para ela e, um dia, juntaram-se para escrever em letras garrafais a palavra “sapatão” no meu caderno, em tom de ofensa.
Jude sempre era desinibida, e quando viu a situação, não pensou duas vezes antes de tomar satisfação com as garotas, alegando que se mexessem comigo, mexiam com ela. Jude sempre foi mais alta do que todas as garotas que conheci e usava isso a seu favor levando em conta seu físico tão magro quanto o meu, no caso dela proveniente da sua dieta desgarrada de café e cigarro.
Um fato importante de nos tornamos tão próximas é nossa afinidade por arte. Cineasta amadora, devora livros como nunca tinha visto uma estudante fazer, sempre procurando por mais. Sobre arte, é a única, com agora exceção de Amanda, que me senti à vontade de mostrar meus desenhos, os quais sempre me incentivou a continuar fazendo.
Foi o jeito oito ou oitenta de Jude que chamou a atenção de Luiza.
Luiza Araújo divide a mesma idade que eu. Filha de um diplomata com uma advogada, é a filha mais nova e a mais mimada, o que era perceptível na forma que se vestia, falava ou se portava. Sempre tinha os itens mais caros e de última geração, estudou na mesma sala que eu e era amiga de um interesse amoroso meu. Conheci ela por conta disso, e em compensação, ela acabou conhecendo Jude.
Jude subiu no telhado da nossa antiga escola para fugir da aula, chamando atenção de todos. Ela tinha essas atitudes extremas, como fumar dentro da escola, colocar alguém que praticava bullying dentro do lixeiro, brigar com garotos, retrucar professores e odiar, acima de tudo, aulas de exatas, o que fazia ela literalmente fugir delas.
Quando Luiza viu aquilo, se apaixonou à primeira vez, afinal o que combina mais com a personalidade de uma garota paparicada pelos pais do que se envolver com uma garota delinquente? E claro, Jude, ao ver aquela figura tão peculiar, também se interessou.
Foram questão de dias para que elas começassem a ter algo a mais, que culminou em um namoro cheio de altos e baixos. Jude era louca e Luiza tinha ciúmes até da própria sombra e o que antes era a chama de algo intenso, apagou-se na mesma intensidade das infinitas brigas delas. Ria lembrando de todas as vezes que estava na casa de Jude – cedida pelos pais, que não moravam na mesma cidade que ela e sua irmã, Julia – e fazia um verdadeiro escândalo na frente, seja atirando as roupas dela pela janela como nos filmes, ou a xingando para todos os vizinhos, já acostumados, ouvirem.
Quem via pensava que Jude era uma verdadeira cretina, mas os fatos mostravam que não. Toda a vez que estavam juntas, Luiza nunca demonstrava que estava com ela e, para piorar, dava em cima de garotos na frente de Jude. Luiza dizia que era para manter as aparências, porém o ego de Jude era ferido a cada troca de olhar ou risinhos. Tal prática só valia para Luiza, já que se Jude era vista conversando com outra garota, ela, por mais de uma vez, gritava com a garota, puxava Jude de lá constrangida e, às vezes, ainda virava o copo no rosto dela.
Até que acabou, e eu agradeci muito quando isso aconteceu. Acabou a ponto de Jude seguir com outras pessoas e Luiza querer embarcar em outra, claro, secretamente.
E lidar com as crises de Luiza mais uma vez seria demais para mim. Parecia que aquele capítulo iria se repetir, mas em outro cenário. Sentia isso ao entrar naquela escola e, para abafar aqueles pensamentos incômodos, coloquei os fones no maior volume que tinha para poder abafar a barulheira que estava fazendo ali.[1] Os alunos começavam a entrar nas salas, mas a maioria estava no espaço do refeitório comum. Alguns deles me olhavam curiosos, outros me olhavam com repreensão, sendo que outros pareciam estar prontos para falar qualquer coisa para mim.
Ao chegar na sala e ir para meu costumeiro lugar, vi que Luiza já conversava com a garota novata, apontando a caneta em sua direção e falando com animosidade. Quando ela notou que eu chegava, ela parou de falar e eu sentei aonde costumava sentar, ao seu lado. Abri o caderno e comecei a rabiscar, sem prestar atenção mais ao meu redor.
Vi que elas murmuravam alguma coisa entre si, mas não reparei o que era, provavelmente deve ser Luiza falando sobre alguma coisa sem importância e aquela garota tendo que ouvir todo aquele falatório ao qual fazia. Olhei de soslaio para ela, e vi que ela estava de cabeça baixa, com Luiza empurrando-a devagar. Luiza não perdia tempo mesmo. Revirei os olhos comigo mesmo e voltei a desenhar.
A aula começou, e logo tudo ficou escuro. Tive que abaixar o volume do fone para não ficar tão visível que eu o usava, e olhei para o lado mais uma vez. A garota novata usava um caderno velho e, enquanto o folheava, percebi que ela respirava profundamente, comentando alguma coisa para si e olhando para a frente.
Quando reparei que se tratava do caderno, olhei com atenção, mas sem deixar de olhar para a frente. Ela deveria estar com algum problema relacionado a isso, pelo que deduzia olhando para sua feição que pressionava os lábios e respirava profundamente. Eu sabia o que era aquela sensação, era a sensação de se sentir perdido em determinada situação.
Tinha passado por algo do tipo recentemente, mas não no mesmo contexto dela.
Ela foi até o final do caderno, que já não tinha folhas sobrando, e mesmo assim anotou o que a professora dizia, olhando para os lados como se procurasse por auxílio de alguém, mas que não quisesse atrapalhar com isso, até que ela, como se entregasse os pontos daquela situação, debruçou-se sobre a cadeira.
Continuei olhando para aquela situação sem entender o que fazer. Como ia fazer isso? Tentei fazer alguma coisa naquele primeiro momento, mas Luiza iria intervir mais uma vez, querendo se sobressair de qualquer forma.
Então, ela virou e me olhou e eu, como se tivesse sido capturada no meu meio de observação, desviei o olhar para a frente. Ela continuou olhando para a frente e, quando a aula acabou, pausei a música para saber o que de fato tinha acontecido.
— Acabou as folhas do meu caderno. É que ele é antigo e...
— Por que não falou comigo, Amanda? – dizia Luiza – Eu tenho uma resma de papel comigo, pro fichário.
O nome dela era Amanda.
— Não quis atrapalhar...
Amanda parecia ainda mais angustiada na medida em que falava. Não consegui prestar atenção em outra coisa que não fosse a professora Lorena se aproximando de nós. Eu sabia o que iria acontecer.
Professora Lorena começou a discutir com ela sobre o fato dela não ter material, que ficou visível com ela parando de anotar as coisas e ficar olhando só para a frente. Amanda se levantou e tentou argumentar sobre o que tinha acontecido, mas Lorena se mostrava impassível em relação a isso.
Ela, como minha mãe, não admitia pessoas que não levassem as coisas no mínimo com muita seriedade, e seguir o cronograma à risca significava isso. Ao ver o rosto angustiado da Amanda tentando mostrar que isso não aconteceu por uma série de fatores e de Luiza tentando ajudar sem sucesso, com Amanda abaixando a cabeça e encarando o chão, desiludida, me trouxe uma náusea o suficiente para que eu intervisse.
— Então eu fico para ajudá-la – disse enquanto me levantava, e vi que elas olharam para mim. Respirei fundo e fui até a professora.
— Ela mesmo falou que é novata. Como qualquer novato, precisa de um prazo pra se adaptar no qual ela já está fazendo isso e quanto os materiais, vou me certificar que daremos um jeito de ajudá-la a consegui-los, certo? Eu e Luiza, se possível.
— HÇŽi yún, eu sei que você quer ajudar, mas...
— A senhora sabe como é ruim para alguém se adaptar a uma nova rotina, ainda mais um novato.
Lorena olhou para mim, e com esse olhar sabia que ela já tinha mudado de ideia. Ela balançou a cabeça negando e voltou a me olhar.
— Espero ver isso nas próximas aulas então.
Ela saiu, olhando com desconfiança para Amanda e em seguida olhando para mim, seguindo o caminho para a saída.
Amanda parecia estar aliviada, e Luiza deu alguns tapinhas em seu ombro, falando palavras para animá-la, ou chamar sua atenção. Amanda voltou a me olhar, e quando percebi que eu estava olhando de volta, coloquei a música de volta nos fones[2] e voltei a desenhar alguma coisa para me distrair.
Sequer podia acreditar que intervi dessa forma na vida de alguém a qual nem conheço e, em um momento inevitável, olhei para a direção delas mais uma vez e vi Amanda olhando em minha direção, sorrindo timidamente.
Não tive outra reação se não sorrir de volta para ela, da mesma forma, mas logo balancei a cabeça e voltei para meu caderno.
Na hora da saída, vi que ela me olhava curiosa, mas não com o olhar que a maioria fazia. Era um olhar novo, curioso, de que não tinha julgamentos, e sim apenas querendo saber quem eu era, ou o que eu era.
Cogitei que tinha sido por conta do que tinha feito naquele momento, mas depois imaginei que se tivesse que falar sobre isso, teria a hora certa. Passei por elas sem dizer nada e segui direto para a casa.
*
— E aí, HÇŽi – disse Jude, que ligara para mim – Como está sendo na escola?
— Normal, tolerável, eu dizia.
— A Luiza está me mandando mensagem dizendo que tem uma nova pessoa... – Jude começou a rir – E aí?
— Você me ligou pra isso?
— Sabe que não, quero sua versão dos fatos.
— Ela fica se oferecendo pra Amanda, mas eu acho que ela não se tocou ainda disso.
— O nome da novata é Amanda? Vocês se falaram?
— Sim, mas... – pressionei os lábios – Não nos falamos, só aconteceu uma situação e eu acabei falando.
— Você se met*ndo em alguma coisa, HÇŽi yún?
— A professora foi meio estúpida com ela, não consegui ficar calada...
— É por esse senso de justiça que precisamos de mais advogadas como você nesse país... – Jude disse, rindo.
— Nossa Jude, vai se foder...
— E quando você vai interagir com essa tal Amanda?
— Você sabe que eu não puxo assunto pessoalmente – dei os ombros – Não tenho coragem.
Um barulho começou a se formar do lado de dentro de casa.
— O que foi isso? – perguntou Jude.
Coloquei o telefone em espera, e tentei reparar no que estava acontecendo. Quando percebi, voltei a falar com Jude.
— São meus pais discutindo.
— Quer que eu te ligue depois?
— É melhor.
— Então até mais, se cuida.
Ela desligou, e eu peguei meus fones de ouvido. Ouvi a conversa ficar mais intensificada, e aumentei o volume da música[3] que comecei a ouvir, até que tudo começasse a ficar abafado: aquela discussão, meus pensamentos e eu mesmo.
[1] Nobody’s Home, Avril Lavigne.
[2] The Kids Aren’t Alright, The Offspring
[3] Carbona Not Glue, Ramones
Fim do capítulo
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