Estação por ArvoreDaVida
Verão
Cristina estava sentada na cama, as costas apoiadas na cabeceira e a bandeja com o café da manhã à sua frente. Inês, sentada ao pé após insistência de Cristina, observava-a sorver o chá e comer as torradas. Então Cristina limpou a boca no guardanapo e empurrou a bandeja, que Inês pegou enquanto se levantava.
— Quero conhecer essas tais cachoeiras… — segredou num tom reservado, enquanto a mão esquerda arrancava a pele morta solta sobre o lábio seco e branco quase pedindo desculpas por aceitar um convite que talvez tenha sido feito por mera educação.
— Claro, senhora! Quando estiver pronta, desça, e a estarei esperando.
Enquanto se aprontava, questionava-se o porquê de querer sair daquele quarto tão somente após um bilhete simplório de uma funcionária daquele hotelzinho e, como resposta, estranhamente reconheceu a si mesma em uma memória muito antiga. A pessoa que um dia fora! Achava que esta, de tão morta, não havia restado nem mesmo a lembrança. Tendo agora ciência do seu ledo engano, foi um tanto assustada e reticente que, cambaleante embora disfarçasse bem, desceu as escadas: uma mão segurava a barra do vestido e a outra portava a sombrinha, para proteção pois fazia sol e a pele sensível poderia ficar marcada. Enquanto descia, procurou por Inês, que falava ao telefone, e esta, notando a mulher se aproximar, sorriu em sua direção. Cristina não retribuiu, mas posicionou-se próximo ao balcão, esperando que Inês findasse a ligação para saírem. Foi com espanto, no entanto, que recebeu a primeira fala de Inês:
— Seu marido, senhora — disse ao mesmo tempo em que segurava o aparelho na direção de Cristina, que fechou a cara, fazendo-se irritada.
Nada disse, apenas saiu do hotel e esperou que Inês fosse procurá-la do lado de fora. Se Estêvão estivesse em sua frente, o teria xingado, calhorda que abandona a esposa num fim de mundo e não somente não vai buscá-la como também demora dois dias para telefonar. Se tinha tanto zelo por ela, como costumava dizer, que o demonstrasse indo até lá.
Os sentimentos que instantes antes eram de redescoberta de si passaram à rabugice. Nem mesmo o sorriso radiante que Inês lhe ofereceu foi capaz de trazer o humor de antes. Foram todo o caminho caladas: Inês, que carregava uma cesta com algumas comidas e indicava silenciosamente o caminho, era observada de soslaio por Cristina que, graças a sombrinha, escondia não somente o mau-humor, como também a análise gradativa que fazia no rosto da outra. Pegou-se, num instante, olhando não somente a pele corada, os cabelos cacheados, os olhos profundos, mas também a boca grande, viva e avermelhada. Então involuntariamente mordeu o próprio lábio, percebendo-o, porém, o avesso: fino, morto e, sabia, esbranquiçado. Ficaria ainda mais rabugenta, mas não teve tempo, pois começou a escutar o forte som de queda d’água e, de repente, sentiu a mão de Inês tocar a sua ao mesmo tempo em que começava a correr, obrigando-a a fazer o mesmo. Adentrando mais na mata, Cristina se assustou, teve receio que caíssem, que se machucassem, mas continuou correndo, tomando cuidado com pedras e galhos. Ora ou outra, mirando Inês, que era toda vida, acabava por esboçar um pequeno sorriso.
Quando finalmente chegaram, Cristina, que nunca estivera numa cachoeira, achou-a colossal com aquela cascata gigantesca e poderosa. Olhou para o lado e deu novamente com Inês lançando-lhe um sorriso radiante, retribuiu dessa vez, ainda que contidamente. Encantou-se com o fato de Inês simplesmente tê-la puxado pela mão. Não se lembrava da última vez em que correra, talvez tivesse sido quando ainda era menina.
Cristina fechou a sombrinha no momento em que Inês pôs a cesta no chão, observando-a tirar de lá uma caixinha e depois se aproximar. Ficou surpresa com a inesperada proximidade, mas logo Inês tratou de se explicar:
— Seus lábios estão ressecados — então abriu a caixinha, retirando um pouco da pasta e passando-a com cuidado na boca de Cristina, mas sempre olhando em seus olhos. — É tão bonita!
— É uma de suas funções, mentir para hóspedes enfermos? — questionou receosa por novamente estar sendo caracterizada daquele modo.
Mas Inês não respondeu, apenas sorriu incrédula com a suposição. Então abaixou-se, pegando um dos pés de Cristina, que quase caiu com o movimento, e tirou uma bota e depois outra. Depois tirou os próprios sapatos e segurou Cristina pelas mãos, levando-a para banhar-se nas águas. Quando estavam para entrar, Cristina paralisou.
— Essa cachoeira ladra, mas não morde. As águas são tranquilas, quentes e rasas. Confia em mim!
Confiou
Ao entrarem, seus vestidos grudaram ao corpo, os cabelos encharcaram-se, e, quando notaram, Cristina soltava-se. Inês então a deixou assim, solta, enquanto nadava, cantava e, vez ou outra, jogava água nela. Cristina ficou boiando, observando à sua volta, àquela calmaria. Em certos momentos, colocava a ponta dos dedos em frente aos lábios, como se tentasse disfarçar o leve sorriso que nascia ao admirar Inês, que era feliz e não cobrava dela a mesma felicidade. Mas de repente se fechou, questionando-se quanto tempo duraria aquele fragmento de aconchego numa vida repleta de nada.
Notando-a absorta, Inês perguntou, ao aproximar-se, o que a afligia.
— Não vai se interessar em lamentações.
Em resposta, Inês apenas levantou as sobrancelhas, encorajando-a a falar seja lá o que fosse.
Disse olhando para a água:
— Ano que vem eu faço trinta. Trinta de uma vida monótona, deprimente, desprovida quase totalmente de qualquer alegria. Sempre me pergunto qual o sentido de uma vida coberta por uma sombra. Deus não me reservou nada de especial — Então mirou Inês, que não tirou os olhos de si nem por um segundo, e quase se arrependeu da confissão que fizera, temendo, também por ela, ser tida como louca.
— Ele, se é que existe, não reservou nada especial a ninguém. Acho que a vida é como uma canoa à deriva em alto mar: segue uma trajetória alheia ao nosso controle.
— Não é muito otimista.
— Queria algo otimista?
— Não… Mas quando toco nesses assuntos sempre dizem “seja feliz”, “a vida é divina”... Como se eu não tentasse. Tentei inúmeras vezes mudar quem sou.
Inês então, mais uma vez surpreendendo-a, a abraçou e sussurrou ao pé do seu ouvido:
— Não mude quem é. É singular, tem o direito de ter dilemas e desejos próprios. É sempre conveniente adequar-se às regras, mas não precisa se não quiser.
Abraçadas, deixou que Inês falasse, depois ela mesma falou. Ficaram trocando confidências ao pé do ouvido tanto tempo que nem notaram quando o céu escureceu. E quando as pesadas gotas começaram a cair: Inês saiu primeiro, estendendo a mão para Cristina, que segurou com firmeza pois temia escorregar. Quando finalmente estava em terra firme, viu Inês soltá-la e então sentiu um vazio formar-se diante da ausência do seu toque.
Continua...
Fim do capítulo
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samsbarela
Em: 18/07/2021
Queria votar, dar mil estrelas, mas não encontro mais os botões pra fazer isso nesse site.
Resposta do autor:
Ai, você é um anjo, espero que saiba disso <3
Obrigada mesmo pelo carinho! <3
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Alex Mills
Em: 28/06/2021
:O olha só dona Árvore, adorei o capítulo :D até eu queria ir nessa cachoeira agora!
Muito bom!
Esperando por mais :)
Dona Cristina ignorando o senhor Estêvão, tô botando fé, tem que pisar nele também, Cristina!
OBS: Inês, tá cheia do Nivea para passar na Cristina ahahah
Resposta do autor:
"Dona Árvore" kkkkkkkkkkkk meu deus, eu amei demais!
Ai amiga, te entendo! Tudo o que queria nesse momento era uma mulher bonita me levando pra cachoeira kkkkkk
Dona Cris certíssima em ignorar o calhorda do marido, ele que lute!
Kkkkkkkkkk usar Nivea pra conquistar a crush kkkkk ai eu amo uma personagem!
Ai, obrigada demais por estar lendo meus textinhos <3
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