O jornal do meio-dia começava de uma forma diferente naquele sábado, apresentado há anos pela experiente Ana Beatriz Fortes, o estúdio hoje era dividido por duas repórteres em ascensão: Ana Paula Cangussu e Tailine Andrade, colegas de profissão, rivais nos bastidores.

De um lado do ringue, Ana Paula, 34 anos, com seus modestos 1,57m, cabelos claros repletos de procedimentos de salão, com seu inseparável salto alto e roupas elegantes, como sempre. Já havia apresentado aquele jornal em outras ocasiões por motivo de folga ou férias da âncora Ana Beatriz.

Do outro lado, Tailine “Tratorine” Andrade, tratorine era o apelido dado pelos colegas pelas costas. Se a pauta parecesse boa, ela passava por cima de todos para cobrir. O visual não era o importante, o furo sim. Com 27 anos e imensa fome de jornalismo, ela tinha o sonho de se tornar a âncora definitiva daquele jornal.

Roda a vinheta e a câmera aberta mostra as duas repórteres sorridentes no estúdio hiper iluminado, é a vez de Ana Paula falar.

­­­— Bom dia, estou hoje em companhia de Tailine Andrade apresentando o jornal do meio-dia para vocês, enquanto nossa colega Ana Beatriz tira férias.

— Merecidas, férias, diga-se de passagem. — Brinca Tailine. — E por falar em férias, o JMD de hoje traz uma matéria especial sobre o fim das férias escolares e o retorno às aulas, nós visitamos algumas lojas e conferimos como a inflação atingiu em cheio o material escolar e está pesando no bolso do trabalhador.

— Vamos falar também de um assunto de extrema importância: o aumento repentino nos casos de dengue na cidade, o que fazer para evitar o mosquito e os números atualizados da secretaria de saúde, vamos de link ao vivo hoje com o secretário João das Botas, não perca, é daqui a pouco no jornal do meio-dia.

Tailine volta a falar interrompendo a vinheta dos comerciais.

— Também vamos falar ao vivo hoje com duas mães que estão passando um sufoco danado para comprar tudo que a escola de seus filhos está pedindo.

Começa a vinheta, entra nos comerciais.

— Você poderia ter falado sobre isso na hora da sua matéria. — Criticou Ana Paula.

— Meu link ao vivo também merecia ser mencionado na escalada.

— Todo mundo sabe que o material escolar está caro, não é hard news.

— Ah você quer pauta forte? Vai para a porta da cadeia municipal.

— Eu tenho orgulho de meus anos trabalhando no jornalismo policial, ok? — Rebateu Ana Paula. E você, que não tem experiência de fato em nada, fica cavando pauta no Whatsapp.

O jornal voltou interrompendo a discussão. Foram seguindo o teleprompter com os textos pré-determinados, com algumas improvisações.

Já próximo do final, voltaram a se alfinetar.

— E então, o que estão achando do jornal hoje? Gostaram do formato? Nosso objetivo é sempre de trazer o melhor da notícia para sua casa, para o seu lar. — Disse Ana Paula.

— E se você gostou, tem dúvidas, elogios, críticas, deixa seu recadinho nas nossas redes sociais, coloca aqui na tela, Silvio! Se você prefere o formato do jornal com apenas uma apresentadora, ou se quer mais links ao vivo, escreve lá que a gente lê. — Disse Tailine sorridente.

— E não esqueça de dizer se prefere eu ou a Tarine apresentando, viu? Aqui tem experiência e dedicação a você, telespectador.

— É Tailine, mas você sabe disso, não é, querida?

— Desculpe, acho que errei seu nome, mas você aí de casa sabe que Ana Paula Cangussu é o nome do jornalismo da TV Central, é o nome que você conhece. — Piscou para a câmera.

— E a TV Central precisa de novos rostos, novas formas de jornalismo, para deixar o jornal cada vez mais atrativo para você, telespectador. — O sorriso cínico para a câmera permanecia.

Ana Paula voltou ao teleprompter.

— É hora da previsão do tempo com nosso querido Mateus Pinelli, vou aqui falar com o Mateus que está na tela esperando para dizer se essa chuva vai continuar ou se vai dar um tempo. — A experiente repórter disse caminhando na direção da tela onde estava o homem do tempo.

— Pode deixar que eu falo com o Mateus, ok? Mateus, diga para nós, e os deslizamentos no morro do Cocal, como estão?

Tailine disse isso e colocou discretamente o pé para frente, fazendo com que Ana Paula tropeçasse nele e despencasse de cara no chão do estúdio.

— Gente, alguém ajuda aqui a Aninha, acho que ela escorregou, será que tem alguma goteira no estúdio? — Tailine disse com a mão espalmada para cima como se procurando alguma goteira no teto.

***

— Perdemos dois patrocinadores. Dois. Vocês vão cobrir o prejuízo? — Jorge, o diretor do canal estava sentando de forma impassível atrás de sua mesa, e à sua frente, as duas jornalistas sentadas lado a lado.

— A culpa foi dela, toda dela. — Disse Ana Paula, ajeitando o curativo no nariz quebrado.

— Ela começou, isso é recalque, eu não fiz nada. — Rebateu Tailine, sem se deixar abater.

— Nada? Ela me derrubou! Eu deveria ter prestado queixa!

— Chega! É a demissão que vocês querem? — Bravejou o diretor, um coroa malhado de barba grisalha. — Isso nunca aconteceu na história de nosso canal antes, viramos piada no Brasil inteiro!

— Tivemos quatro pontos a mais de audiência. — Murmurou Tailine.

— O que você disse?

— Nada não.

— Acho bom. — Jorge conferiu alguma coisa no celular e voltou a falar. — Segunda-feira vocês duas vão para São Pedro do Passa Quatro, gravar uma matéria sobre a casa mal assombrada.

— Que?? — Tailine exclamou.

— Isso que você ouviu. Vou mandar dois rapazes da cinegrafia com vocês, quero uma matéria completa sobre a casa da família Valverde, falem com os moradores da cidade, com a imobiliária, visitem a casa, narração em off, matéria completa, aparecendo o rostinho de vocês duas, intercalem na apresentação, enquanto uma fala para a câmera, a outra dirige, e assim vão revezando.

— Você ficou doido, Jorge. — Reclamou Ana Paula.

— Até lá seu rosto já estará sem esse hematoma, quero vocês duas no vídeo.

— Eu não vou para esse fim de mundo com ela. — Disse Tailine com irritação e braços cruzados.

— Eu é que não quero chegar perto de você! Isso é um risco para a minha vida, não sei mais do que ela é capaz de fazer para passar por cima dos outros, não é à toa que a chama de tratorine.

— É isso ou demissão, vocês escolhem.

***

Depois de sete horas chacoalhando numa pick-up do canal, finalmente o quarteto chegou a São Pedro do Passa Quatro, cidadezinha do interior que tinha seis mil habitantes, matas verdejantes, e nada para fazer.

— Vocês não vão me ajudar com a mala? — Dizia Ana Paula irritada, arrastando uma mala branca enorme pelos ladrilhos de uma ruela molhada da chuva.

— Já estamos carregando todo o material de filmagem, foi mal aí. — Respondeu Sérgio, o cameraman.

— Nem olhe para mim, estou carregando minhas coisas. — Disse Tailine com uma pequena bolsa de viagem e uma mochila nas costas.

Os quatro chegaram num pequeno (e único) hotel da cidade, Joaquim, o outro cinegrafista, acertava a entrada dos hóspedes com o recepcionista/gerente/proprietário.

— Boa noite, temos quatro reservas.

— É da TV lá da capital, né? Tá aqui as chaves.

— Mas só tem três.

— Estourou o cano em um dos quartos.

— Quantos quartos esse hotel tem?

— Quatro. Mas não tem problema, gente, as duas meninas dormem juntas em um quarto, e os dois marmanjos ficam cada um com um quarto. — Disse o dono.

— De jeito nenhum. — Logo exclamou Ana Paula.

— Então dorme com um dos moços.

— Pior ainda.

— Moça, se quiser dormir no sofá aqui da recepção, nem vou cobrar nada.

— Eu não posso acreditar que isso está acontecendo. — Bufou Tailine incrédula.

— É cama grande de casal, moças, não tem problema ces dividirem.

As duas se entreolharam, exasperaram ao mesmo tempo.

— Vamos ter que dividir o quarto, e eu espero que ninguém morra nem mate nesses próximos três dias. — Finalizou Ana Paula.

Continua.

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Fim do capítulo