Vinte e cinco
De longe, aquele estava sendo o dia mais atípico do seu ano, apesar de naquela manhã ter despertado como sempre. Ou quase isso. Já fazia uma semana que Beatriz vinha sendo assaltada por pesadelos, que sumiam quando acordava, mas deixavam aquela sensação típica de angústia. Ao perder o sono no meio daquela madrugada, não conseguiu encontrar inspiração para levantar e ir até o ateliê. Por algum motivo, aquela artimanha não a seduziu, e ela passou o resto da noite se revirando, em busca de um sono que não vinha.
Se convenceu que, se continuasse assim, cederia aos encantos daquele remédio que sempre a fazia apagar por horas. Mas passados alguns minutos, ao fazer menção de se levantar, Beatriz ficou na metade do caminho, e sentou aos pés da cama. Os cochilos que tirou até o despertador tocar foram todos ali, toda torta, atravessada no colchão.
Quando finalmente sua mente cedeu, e ela adormeceu, talvez vencida pelo cansaço, o relógio despertou. Já era hora de levantar. Longe de se lamentar, Beatriz se espreguiçou e foi direto para o chuveiro. Antes, separou a roupa que usaria, sem pensar muito na combinação entre as peças.
Ao sair do banho, vestiu a calça, que era um pouco justa, e uma camiseta que era bem soltinha, e combinava com um colar que tinha um pingente azul. Por coincidência, colocou um relógio que tinha a pulseira da mesma cor, só que um tom mais escuro.
Desceu as escadas conferindo no celular a previsão do tempo. Aquele seria um dia bastante quente e sem previsão de chuva.
- Que cheiro... diferente – ela diz, ao entrar na cozinha. Cícera cozinhava algo no fogão que não tinha um aroma exatamente ruim, mas também não era necessariamente bom.
- Fiz chá de folha de abóbora – a mulher responde, coando o líquido dentro da xícara – Tome, o ideal beber assim que é servido.
Beatriz tomou um golinho e fez uma careta. Pegou o jornal e não viu que Cícera a observava, com um olhar sério, penetrante. Em seu íntimo, se preocupava com a moça, mesmo sabendo que todos os eventos são sempre necessários, por qualquer que seja a razão por trás dos acontecimentos.
- A vida é sobe e desce – Cícera diz.
- Né – Beatriz responde, distraída. Estava lendo sobre a oscilação do mercado financeiro, depois de uma declaração homofóbica do presidente de uma multinacional – Eu adoro viver essa época de tecnologia, em que rapidinho o mundo fica sabendo das coisas – ela continua, como se a mulher estivesse realmente lendo os seus pensamentos.
- Não há mais barreiras – Cícera comenta, sorrindo pela primeira vez.
- Não há! E isso é maravilhoso, porque também permite que o conhecimento chegue a mais pessoas. Vai nos ajudar a sair dessa época de trevas! Conhecimento é luz!
Cícera sorri com o comentário e, pela primeira vez, se serve do chá oferecido à Beatriz – que põe o jornal de lado e encosta sua xícara na dela, como num brinde. Não quis comentar sobre o ineditismo do gesto. Olharam-se por um instante nos olhos, divertidas.
- Já parou para pensar que durante toda a sua vida você foi preparada para justamente viver a sua vida? – Cícera pergunta, num tom meio enigmático.
- Não – Beatriz responde, bebendo o resto do seu chá – Nunca pensei.
Aquela era uma questão intrigante, e ficou nos arredores da mente de Beatriz o dia inteiro, eventualmente voltando aos seus pensamentos nos intervalos entre as consultas. Só no fim do dia seu estômago parou de reclamar do gosto do chá, ingerido logo cedo, pela manhã. Foi justamente quando Beatriz mais se distraiu, depois que Fernanda ligou, dizendo que seu carro tinha quebrado.
A caminho da oficina, depois que ela compartilhou sua localização, Beatriz já nem se lembrava mais do diálogo com Cícera, e do que o seu comentário havia desencadeado. Agora seu foco era socorrer a namorada, que foi parar justamente na oficina em que Fábio trabalhava.
E Beatriz dirigiu até lá como se já soubesse onde era, sendo mais guiada pelo seu instinto do que pelo GPS, que comandava com a voz robótica as ruas em que ela deveria virar. E talvez só por isso, pela sensação que não sabia explicar, foi fácil cancelar o jantar com Fernanda. Podiam comemorar no dia seguinte, afinal.
Era isso o que pensava, na volta para casa, ignorando a chateação nítida da mulher ao seu lado, no banco do carona, que fez o percurso inteiro de bico e com os braços cruzados. E também foi o que abafou as reclamações de Fernanda, a caminho do churrasco, alguns instantes mais tarde. Amava a mulher e estava muito feliz por comemorarem um ano juntas, mas sentia que precisava aceitar aquele convite inesperado – Fábio e Bianca eram, para ela, quase um projeto inacabado, inconcluído. Ir até a festinha significava também uma missão de resgate, quase. Uma segunda (e quiçá última!) chance de fazer sua parte – como médica, mas também como mulher, como humana.
Mesmo que isso representasse deixar sua namorada brevemente aborrecida. Afinal, Fernanda certamente entenderia quando se acalmasse, e deixasse Beatriz explicar todos os seus argumentos para aquela mudança de planos.
A questão era só que ela ainda não conseguia explicar nem para si mesma o que era tudo aquilo, ainda estava formulando tudo, então não provocou nenhum tipo de diálogo com a namorada. Beatriz se sentia guiada por uma curiosidade que não tinha exatamente esse nome, mas que ela tampouco sabia especificar o que era. Era uma inquietude, mas com expectativas.
Esse sentimento se intensificou de maneira considerável quando chegaram ao destino, e pararam diante daquela casinha. Beatriz se sentiu muito desassossegada ao entrar na casa de Fábio e Bianca, mas não comentou nada a respeito. Nem quando ela e Fernanda se transformaram de repente no foco das pessoas que interagiam no churrasco.
Elas não sabiam, mas aquilo seria assunto por meses.
Não estavam exatamente brigadas, mas era comum, quando se eventualmente se desentendiam, perderem por um tempo o senso de união, e aí cada uma ia meio que para um lado. Era bom porque, nisso, não brigavam. Era muito raro brigarem, na verdade, Beatriz dificilmente deixava a situação chegar nesse ponto, por mais que às vezes Fernanda se zangasse bastante com algumas coisas que ela fazia. Mas ao final, aprovava aquele tipo de conduta. Era maduro não entrar em discussões, ela tampouco gostava de brigas, e Beatriz a fazia ver o quão irracional era discutir. A própria palavra já diz: desinteligência.
Então quando ficava brava, e depois de algumas frases notava que a mulher não respondia, Fernanda também se recolhia em seu canto. Aquele não era o sentimento predominante da relação, afinal, e sempre valia preservar o que tinham de bom.
Muito provavelmente esse foi o motivo que levou Fernanda a se juntar a mulheres que nem conhecia naquele churrasco; não estava fazendo muita questão da companhia de Beatriz naquele momento, e já que estavam ali, trataria de pelo menos se divertir.
Beatriz não achou ruim, também queria um pouco de espaço, e apreciou o breve diálogo que teve com Joaquim. Tudo é objeto de análise quando se é analista, então considerou valiosa também a oportunidade de conhecer Bianca, ainda que a conversa tenha a deixado desconfortável. Primeiro, porque jurava que conhecia aquele lugar, mas Bianca parecia irredutível em afirmar que morava ali desde sempre, e que pouca coisa tinha mudado. Segundo, porque agora estava com uma sensação, quase inédita, de ter falado demais, ao revelar para uma desconhecida o seu envolvimento com Fernanda.
Era o que acontecia quando Beatriz baixava a guarda, e relaxava. Ficava humana. E, para a psiquiatra, isso era sinônimo de vulnerabilidade, e perda do controle da situação.
- Está boa a cervejinha, Fernanda? – Beatriz cutuca, ao aproximar-se dela, que caminhou ao seu encontro.
- Acabo de constatar que cerveja não tem o gosto tão ruim depois que se começa a ficar bêbada – Fernanda sorri. Toda a chateação parecia ter ido embora, e ela parecia mesmo levemente alcoolizada.
- Sei – Beatriz responde, sentando-se desta vez próxima das mulheres, sendo acompanhada pela namorada. Teresa deu um sorriso para elas.
- Aí eu tive que dizer que aquele era um trabalho para macho – Milton diz, chamando a atenção de todos – Mas precisei deixar claro que eu não tenho nada contra ser bicha, para não dar nenhum problema para mim. Quer ser viado, seja (só que não na minha frente). Lá longe!
Todos riram, e dois dos homens fizeram breves gestos obscenos, mesmo com as crianças presentes (uma ficou olhando, curiosa). Fernanda e Beatriz se entreolharam, discretamente. Qualquer mal-estar que porventura havia entre elas sumiu naquele instante, a partir daquele olhar. Fábio estava mais ao fundo, abanando a churrasqueira, e parecia alheio à conversa, que seguia.
- Ninguém mais pode dar opinião, né – Bruno complementa, com o cigarro aceso, no canto da boca – Virou crime dizer o que se pensa. Mas vai falar uma coisa dessas, esse pessoal logo já se dói. Camarada meu quase foi processado esses dias, uma sapatão alegou homofobia. Vê se pode – ele diz, e todos os homens concordam. Fazem alguns comentários breves e mudam de assunto, quando Fábio se aproxima com a carne.
Bianca estava próxima dali, parada na porta, e encarava Beatriz e depois Fernanda, meio descrente. Teria entendido corretamente? As duas namoravam? Se fosse isso mesmo, por que nenhuma delas se portava ou se vestia de maneira masculinizada? Como era possível que aquelas duas mulheres, bonitas e notavelmente femininas, pudessem ter algum tipo de relacionamento? Já tinha visto alguns casais de mulheres, ali na vila mesmo, e sempre tinha uma que claramente era o “homem”. Ficou confusa porque no caso de Beatriz e Fernanda isso não parecia acontecer e tentou ver se havia algo no gestual delas que revelasse alguma coisa.
As duas estavam sentadas bastante próximas, mas não chegavam a se encostar. Por mais que realmente parecessem brigadas no começo, agora de repente pareciam ter feito as pazes, estavam se olhando de um jeito diferente. Mas nada que revelassem ser um casal.
Por que Beatriz teria dito aquilo, então?
Ela se viu pensando que a médica lhe parecera todo o tempo uma pessoa minimamente correta – diria até ética. E mesmo que Fábio não tivesse comentado antes que ela era inteligente e educada, pela rápida conversa que tiveram isso ficou bastante claro. De perto, constatou, demonstrava ser fina, elegante, uma mulher de classe, estudada.
Como era possível, então, que fosse lésbica?
Fernanda também não se enquadrava em nada nos moldes que Bianca tinha definido para aquele tipo de pessoa. Parecia ser uma moça normal, talvez só um pouco mais relaxada na maneira de se vestir.
Fábio estava próximo da churrasqueira e de longe notou que Bianca não estava mais como antes. Conhecia bem a mulher, e dali viu que ela parecia tensa, o sorriso tinha desaparecido. Então observou, naquela mesma direção, a troca de olhares entre Beatriz e Fernanda. Viu a cumplicidade no gesto – de novo! Claro que ele tinha notado mais cedo que as duas pareciam amigas demais, mas agora estava mais visível.
Notou que Bianca adentrou na pequena casa, e decidiu segui-la. Desconfiava que sua mudança de comportamento estivesse ligada ao casal nada convencional, que parecia igualmente incomodado. Ele precisou admitir que elas não davam mostras de ter um caso afetivo, mas se observasse bem talvez conseguisse encontrar algo que as denunciasse.
Antes de abandonar o posto do churrasco, coçou a cabeça, confuso. Achava estranho não ter sentido a repulsa que o arrepiava sempre que pensava em homossexuais.
- Talvez esse seja um bom momento para você parar de beber – Beatriz cochicha, vendo Fábio entrar na casa, atrás da mulher.
- Não estou bêbada, amor – Fernanda sussurra, com uma risadinha – Não ainda. Quem sabe mais duas ou três latinhas me deixem levemente tonta, mas...
- Lembra daquele rapaz que se consultava na clínica, que eu te contei que era homofóbico? Que a Cícera indicou porque a esposa tinha perdido o bebê? – Beatriz interrompe, abaixando o tom de voz no final da pergunta.
- Sim. O que tem?
- Ele é o anfitrião desse churrasco – Beatriz diz e sorri. Gostou de ver o brilho aguçar o olhar de Fernanda. Por mais que ela alegasse não estar alcoolizada, só agora se certificava que a outra enfim voltava ao seu normal. Estava incrédula, com os olhos arregalados.
- Não acredito, Bia! E você cancelou nosso jantar para me trazer à cova dos leões?
A alguns metros dali, apoiado no fogão, Fábio ouvia de Bianca o comentário que Beatriz tinha feito há alguns instantes. Ao reparar que a mulher estava nervosa e um pouco descontrolada, se viu pensando em várias coisas que poderia dizer para aliviar a tensão que tinha se instaurado.
- Então ela cancelou o jantar para vir aqui? – Fábio pergunta, sorrindo. Notou que, definitivamente, não era essa a reação que Bianca esperava – Então isso explica a cara emburrada da outra, logo que chegou. Você reparou como ela parece estar mais solta agora?
- Não é essa a questão, Fábio!
- Bia, por favor! Você mesma acabou de dizer que até então a conversa com ela estava agradável.
- E estava! Mas agora não sei como lidar com essa situação!
- Pergunte a ela! Ela é médica da cabeça! – Fábio aconselha, abraçando a esposa – Bia, você sabe bem o quanto eu te amo. E te amo muito mesmo!
- Mas...? – ela pergunta, diante do silêncio dele. Se afastou um pouco para encará-lo nos olhos – O que é, Fábio?
- Eu não acho que a Beatriz pretenda dar em cima de você! Quero dizer, ela namora com essa mulher, com essa Fernanda. Você não é cega e viu que ela é linda! As duas são. E nenhuma delas parece ser o tipo de pessoa que está em busca de uma aventura fora do relacionamento. Sei lá, só estou dizendo!
Bianca apenas suspirou, ruidosamente, virando os olhos. Sabia que Beatriz não dava mostras de cortejá-la, mas Fábio precisava entender que aquele era um momento conflitante para ela. Não sabia lidar com o fato de ter gostado de Beatriz, quando ela representava tudo o que sempre detestou, e criticou. Outro embate que enfrentava era com relação ao que fazer com o sentimento enorme de traição que sentia agora. Estava há vários minutos conversando com alguém que intencionou um dia “curá-la”, mas que na verdade era a verdadeira doente, no seu entender. Hipocrisia era o nome!
- Oi, dá licença. Posso entrar? – Beatriz pergunta, causando um sobressalto nos dois – Quero pedir desculpas, e avisar que nós estamos indo embora.
- Não precisa se desculpar – Fábio comenta, a olhando nos olhos. Apesar de estar sem o sorriso nos lábios, tinha no olhar algo próximo da compaixão. Parecia amigável, mais viva que nas consultas – Se alguém deve desculpas, acho que talvez sejamos nós.
- Não penso assim – Beatriz responde, no instante em que Fernanda entra, discretamente, na cozinha apertada – Quero pedir desculpas por tudo. Foi um erro. Nós não devíamos ter vindo, eu não devia ter feito referência ao meu relacionamento, não devia...
- Não mesmo – Bianca interrompe – Desculpe Beatriz, se pareço franca demais. Mas essa é uma casa de família, de respeito. Nossos amigos são pessoas simples e honestas. Ninguém de nós está acostumado com esse tipo de coisa.
Beatriz a encara. Seus olhos, apesar de discretamente contraídos, não emitiam nenhum sinal, estavam verdes e neutros. Bianca esperava por alguma resposta, talvez até algum xingamento, mas percebeu naquele instante que o silêncio da outra tinha sido ainda mais eficiente que qualquer retorno à sua agressão.
E essa sensação foi duplicada quando reparou, com o canto dos olhos, que Fernanda segurava sua mão, carinhosamente.
- É claro – Beatriz fala finalmente, sorrindo de maneira triste e muito breve, após longos segundos de silêncio – Me desculpe. Nós já estamos de saída.
Elas não se deram ao trabalho de retornar ao quintal para se despedir dos outros convidados. Não havia essa necessidade. Não disseram nem uma única palavra, mas sabiam que definitivamente não eram bem-vindas ali.
- Ah, mãe Bia! Mas hoje é um dia especial! – Joaquim reclama, vendo as mulheres entrarem no carro estacionado do outro lado da rua.
- E ainda é um dia especial, Joca. Mas é um dia especial para a gente. Só para nós – Bianca responde, afagando a cabeça do enteado e virando as costas para a porta. Já estava mais do que na hora de voltar para o quintal e para a companhia de seus amigos. “Verdadeiros amigos”, ela pensa.
- Mas ela precisava ficar aqui, para hoje ser ainda mais especial – o menino resmunga, olhando triste para o portão.
O único som entre elas era dos carros que passavam rápido no sentido contrário. O rádio estava ligado, mas em algum momento foi mutado e assim permanecia. Fernanda sabia que eram importantes para Beatriz alguns instantes de silêncio, para ela poder organizar seus pensamentos. Ela própria ajeitava os seus, estava constrangida, e revoltada. Se sentia impotente quando parecia que o mundo a acuava assim. Aquela não era a primeira situação do tipo que ela vivia.
- Acredito que eu te deva desculpas – Beatriz disse, enfim, diminuindo a velocidade ao se aproximar de um semáforo. Foi a primeira vez que se olharam.
Haviam feito todo o trajeto remoendo as palavras ditas há alguns minutos e agora tentavam demonstrar algum tipo de equilíbrio. Nem que fosse apenas para si mesmas. Sabiam bem que a probabilidade de acontecer exatamente o que o que tinha acontecido era grande. Quase uma tragédia anunciada.
Mas entre saber e de fato vivenciar a experiência havia uma grande distância.
- Não se desculpe, está tudo bem, querida. Também não se preocupe mais com isso tudo, amor – Fernanda pede, apoiando a mão na perna da outra.
Pela primeira vez, via mostras de irritação na mulher ao seu lado. Algo faiscava em seus olhos. Mas além de não ser nada concreto, Beatriz ou sabia lidar muito bem com esse tipo de sentimento, ou sabia disfarçá-lo de maneira exemplar. Ao menos enquanto ainda estavam ali, digerindo tudo na volta para casa.
- Não me preocupo. Quero dizer, não com eles ou com aquele monte de besteira que a Bianca falou (e outros caras, um pouco antes). Você sabe tanto quanto eu que a partir do momento em que não aceitamos uma agressão, o agressor fica com tudo para ele.
- Mas dói, né Bia.
- Dói. É incômodo mesmo. E muito revoltante. E dá vontade de fazer longos discursos sobre isso. Mas temos que seguir em frente, não é mesmo?
- É – Fernanda segura brevemente a mão da namorada – Azar o deles. E a própria Bianca é quem vai arcar com as consequências de tudo o que falou. E isso vale para todas aquelas pessoas, preconceituosas até o talo. O preço da ignorância é bem alto. Da falta de respeito, então...
- Sim, eu concordo. Mas tampouco me preocupo com a Bianca. Ela que saiba se virar com o resultado das suas próprias atitudes – Beatriz responde, entrando no estacionamento do prédio – A minha preocupação é com o estrago que eu fiz nos seus planos, Fernanda. Você tinha programado uma noite romântica e terminamos assim.
- Mas a noite ainda não acabou, Bia.
Beatriz apenas balança a cabeça, como sinal de reprovação. Não queria estragar seu fim de noite, mas era obrigada a admitir que boa parte de seu humor tinha ido embora. E por sua culpa! Estava muito arrependida pelas decisões recentes. Só agora analisava o que Fernanda havia dito a caminho do churrasco. Tinha razão quando disse que Beatriz tinha dificuldades para definir prioridades, às vezes.
Se sentiu mal por não ter priorizado a namorada e isso a fez segurar em sua mão, quando entraram no elevador. Fernanda sorriu com o gesto, e deu um beijo em sua testa.
- Me incomoda quando as pessoas não se expressam direito – ela reclama, enquanto o elevador subia – Não gosta de lésbicas, de gays? Tudo bem! É um direito da pessoa – sua voz, apesar de branda, estava um decibel mais alto, quando chegaram ao seu andar e a porta abriu – Mas não insinue que heterossexuais são mais decentes só porque são heterossexuais! Não venha dizer que homossexuais não são corretos e honestos apenas por serem homossexuais! Eu sou uma pessoa decente! Pago minhas contas e não tripudio ou engano as pessoas! Isso faz de mim uma pessoa honesta e correta! E ninguém pode dizer o contrário, muito menos usando como argumento a minha sexualidade. A minha intimidade. As coisas que eu faço dizem respeito a mim, e não interferem no meu caráter!
Assim que entrou em casa, Beatriz largou a bolsa num canto, tirou os sapatos e pegou duas taças de vinho. Escolheu uma garrafa na adega que tinha na cozinha, depois de olhar o rótulo por um breve momento. Fernanda não se sentia inspirada para beber; estava enjoada, de tudo. Recusou fazendo um gesto com a mão, e uma careta.
Elas se sentam na sala, uma de frente para a outra, no sofá. Fernanda acaricia os cabelos da mulher, como incentivo para que ela fale mais. Sentia que Beatriz precisava desabafar.
Observou a namorada beber, em um único gole, quase todo o líquido de sua taça, e acompanhou seus olhos até a tela colorida exposta logo à frente. Aqueles corpos femininos unidos puxavam Beatriz, de certa forma, à normalidade de sua vida. A pintura que ela mesma fizera era agora a responsável por trazê-la de volta à superfície de quem era. E em sua realidade bastava que ela se aceitasse e se amasse. Mesmo (e especialmente!) sendo lésbica.
- Meu pai foi quem mais me incentivou a fazer medicina e me tornar psiquiatra – ela fala, como se conversasse sozinha.
- É mesmo? Você nunca comentou – Fernanda diz, a puxando delicadamente para perto de si.
- Sim, ele foi o maior incentivador. Justamente porque meu pai foi o maior homofóbico que eu conheci em toda a minha vida, vivia carregado de preconceitos, falava umas coisas muito absurdas, me deixavam torta por dias. Foram anos me livrando de conceitos que eram dele, que ele me impôs. Anos no divã – ela sorri, mas um pouco triste – Minha convivência com ele me incentivou a estudar. Me estudar. Escolhi então a única profissão que poderia explicar quem eu era, e o porquê de eu gostar de mulheres.
- E qual o resultado de suas pesquisas, doutora? – Fernanda brinca, beijando o pescoço de Beatriz, que se arrepiou.
- Freud dizia que mais curioso do que a homossexualidade é a heterossexualidade. O pai da psicanálise afirmava que era muito mais interessante estudar a atração entre opostos – Beatriz responde, deixando-se ser beijada – Então, nesse caso, Freud não explica.
- E o que mais? – Fernanda sussurra, próxima demais de seu ouvido. Suas mãos deslizavam pela barriga de Beatriz, apertavam a cintura, e ela cedia, abrindo levemente as pernas para a mulher.
- Fiz breves pesquisas de campo, a título de conhecimento – ela brinca, colocando a cabeça mais de lado, para receber os beijos – E aí descobri que as mulheres são mais carinhosas que os homens. E são mais delicadas do que eles. Especialmente durante o sex* – diz, sentindo que os beijos estavam aumentando o compasso de sua respiração, fazendo sua voz sair entrecortada.
- São delicadas? Mesmo? – Fernanda pergunta, puxando o cabelo dela, tendo um gemido e um sorriso como resposta – Fale mais sobre suas pesquisas.
- Bom... A experiência me mostrou que tanto heterossexuais quanto homossexuais têm problemas mentais. Isso me incentivou a desistir de iniciar um tratamento à base de choque.
- Que sorte a minha! – Fernanda provoca, puxando Beatriz para ainda mais perto, ainda a beijando – Mais algum ponto relevante que queira ressaltar, doutora? Algo das suas anotações fantásticas e metódicas, das suas pesquisas? Ou alguma característica que queira me mostrar? Prometo que até o sol nascer te dou meu diagnóstico.
- Não sabia que eu estava sendo examinada...
- Não estava. O exame de verdade começa agora – Fernanda responde, apoiando a taça dela no chão.
Se beijaram enquanto se abraçavam, se puxando para o mais perto que conseguiam. Fernanda sentou um pouco no colo de Beatriz, de frente, bem encostada nela, e tirou a camiseta, revelando um sutiã preto todo rendado, muito bonito, que a namorada não conhecia.
Beatriz quis beijar ali, e como sempre fazia, cheirou longamente a região, empurrando os seios dela contra o seu rosto, afundando a face no espaço entre eles, gem*ndo de prazer e satisfação. Achava que além de perfumado demais, aquilo era um gesto de muita intimidade, que ela nunca quis fazer com ninguém a não ser com Fernanda, que era muito cheirosa.
A mulher retribuiu com um gemido, e a puxou de volta à sua boca, assim que tirou sua blusa. Fernanda veio com a boca mais quente, o beijo mais rápido, pressionando o dorso contra o corpo de Beatriz, que afundava no sofá, mas igualmente vinha de encontro a ela. Tirou o sutiã de Fernanda para que suas peles tivessem mais liberdade, e pudessem se tocar mais desimpedidas. Levou as mãos às costas para tirar a sua peça, mas a outra foi mais rápida e desabotoou primeiro, mantendo as mãos dela por ali, presas ao sutiã, acelerando o beijo e puxando sua nuca com a outra mão. “Mulheres são mais delicadas, né?”, ela pensou, sorrindo dentro do beijo.
Antes que Beatriz esboçasse qualquer reação, Fernanda deslizou a mão para dentro de sua calcinha, assim que desabotoou sua calça. Sorriu mais ainda, porque a mulher já estava molhada, e deu um gemido gostoso quando sentiu seus dedos tão perto de seu clit*ris.
Fernanda trouxe os dedos com o mel de Beatriz direto para a boca, e lambeu de um jeito sexy, voltando a fazer o movimento, lambendo mais uma vez. Como se a degustasse.
- Você é a mulher mais gostosa que eu conheço – ela diz, e Beatriz não soube em que sentido dizia aquilo.
Se beijaram novamente, com o gosto de Beatriz entre elas, que gemia enquanto Fernanda permanecia com os dedos a acariciando, agora sentindo a mão da mulher procurando por ela, tateando com urgência o cós de sua calça.
Fernanda ficou nua, exibindo antes uma calcinha que também era preta e rendada, e fio dental. Beatriz admitiu que era um belo presente de aniversário de namoro e a aplaudiu, a fazendo sorrir, de um jeito malicioso, mas igualmente sem-graça.
Voltou a deitar em cima dela depois de despi-la também, e se encaixaram de um jeito que as manteve bastante próximas, com o rosto e os quadris unidos, enquanto os dedos executavam praticamente as mesmas carícias, uma estimulando a outra em movimentos semelhantes.
Gemiam juntas e só não goz*ram ao mesmo tempo porque Fernanda se desconcentrou com o gemido de Beatriz durante o orgasmo. Foi um som meio enfurecido, mas também empoderador, ecoou na sala. Foi o suficiente para estimulá-la a goz*r também. Se sentiu dela, sua mulher.
- Eu te amo, te acho deliciosa – Beatriz disse, num murmúrio, se aconchegando no pescoço de Fernanda e respirando fundo, sentindo o seu cheiro – Casa comigo!
Fernanda riu, aninhando melhor a namorada no seu peito. Aquela já era a segunda vez que Beatriz fazia o pedido.
Fim do capítulo
Comentar este capítulo:
Lea
Em: 24/01/2022
" O covil dos preconceitos e homofóbicos, machistas"
Acho que o Fábio tem salvação!!
A curiosidade está me corroendo! Como vão descobrir que são irmãs?
No final,o primeiro ano de namoro foi muito bem comemorado e o presente aprovado!
Beatriz,faça esse pedido de casamento como a Fernanda merece! De preferência sóbria, depois de gozar não vale!
Resposta do autor:
Hahhaa
É, depois de gozar somos todas emocionadas demais rs
Me fez rir rs
Que bom que tá curiosa! Vai te fazer continuar lendo!
Mas já tá tudo se desenrolando, em breve vc vê! <3
Beijos!
Andreia
Em: 08/11/2021
Eu acho que está mulher que falou p Joaquim é Cícera.
A resposta que a Beatriz deu para Via foi mais que justa ela não falou nada dou mais que vc falar as coisas.
Está Bia e até boazinha perto de muitos que tem por aí que faz bem pior com preconceito e homofobia.
Mais ainda acho que está história das duas não acabou aí até pode vim coisas bem pior da Via para Beatriz aí só quero ver com que cara a Bia vai ficar quando souber q são irmãs.
Acho que Fábio tem sinais que vai amadurecer e ver as coisas com mais clareza que a Bia.
Vamos ver mais os próximos capítulos.
Bjs nossos....
Resposta do autor:
Tb acho que a Bia, Fábio e cia. são bonzinhos perto do que se vê!
E sabe oq é pior? Tô escrevendo uma história futurista e até em 5505 tem preconceiro, socorro!rsrs
Beijos!
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Irinha
Em: 13/06/2021
É muito bom vê as duas juntas e se blindando contra esses tipos de argumentos horríveis.bjs
Resposta do autor:
Então, e vc acredita que eu fiquei na dúvida?, se elas teriam msm essa cena de amor no final?
Fiquei pensando "mas será que a Bia tem cabeça pra essas coisa?"rs
Mas pareceu o correto! Justamente pq passa essa impressão de união e blindagem! <3
Beijos!
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cris05
Em: 12/06/2021
Como a autora sugeriu, eu meio que vim "preparada" pra ler o capítulo. Mas, putz, é muita ignorância!
Ô Cícera, tu não tem um chazinho contra ignorância aí não? Pode colocar doses cavalares de respeito e amor nessa receita.
#OpçãoSexualNãoDefineCaráter
Beijos
Resposta do autor:
Podia ter, né?, chá contra ignorância! Agilizaria bem as coisas! Evolutivamente falando!
Como não tem, chá de folha de abóbora ajuda na cicatrização rsrs
E ó, só pq vc é legal, já aviso: essa não foi a única cena revoltante do tipo na história! Mais pra frente tem mais uma! Já vai se preparando rsrsrs
Beijos e até o próximo capítulo!
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Marta Andrade dos Santos
Em: 12/06/2021
Nossa quanta ignorância.
Resposta do autor:
Muita!
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NovaAqui
Em: 12/06/2021
A homofobia falou mais alto
Vamos ver como será depois disso com os dois homofóbicos
Joaquim não queria que elas fossem embora!
Abraços fraternos procês aí
Resposta do autor:
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