Treze
- Eu não sei mais o que fazer, juro que já tentei de tudo. Estou cansado, não tenho conseguido dormir direito há dias! Faço sempre tudo o que está ao meu alcance, e sempre parece tão pouco! – reclama Fábio, cabisbaixo, em um tom de voz quase inaudível.
O rapaz aparentava cansaço no olhar e a fadiga era notável em seu rosto. Estava sentado na última mesa do bar, que ficava próximo à oficina onde trabalhava. De repente tinha virado um frequentador assíduo do local. Estava com o cabelo desarrumado, e apoiava a cabeça em uma das mãos. Com a outra, cutucava o rótulo da garrafa de cerveja, que estava molhado.
Aquele tinha sido um dia muito quente – talvez o mais quente do ano. Fábio se consolava na cerveja gelada, e suspirava com alívio sempre que o ventilador virava em sua direção. Era um bafo quente num boteco asfixiante, mas aquilo o fazia se sentir um pouco mais vivo. Há dias que a gente se agarra a qualquer coisa.
- Eu imagino que deva estar difícil, sinto muito por isso. Mas você precisa resistir, e insistir! A Bia precisa de você – lembra Teresa, colocando brevemente a mão no ombro dele – Você sabia que seria assim, Fábio! Avisaram lá no hospital que ela poderia ficar desse jeito! Lembra que disseram que seria bom até ela passar com um médico, algum terapeuta?
- Sim, mas não imaginei que seria tão...
- Eu sei – ela diz, diante do silêncio do rapaz, ao deixar os braços caírem sobre as pernas.
Teresa acreditava que, dependendo da briga, ainda que entre marido e mulher, havia sim a necessidade de enfiar a colher. E ela se metia porque gostava do casal o suficiente para não se deixar envolver pelos problemas que a cada dia afundavam o casamento, mais e mais. Desde que perdera o bebê, Bianca estava insuportável – tanto que nem Teresa, amiga de anos, estava conseguindo algum tipo de interação; nem ela escapava do seu mau humor. Mas era notável que era Fábio quem mais sofria com tudo isso. Estava ali, do lado dela o tempo todo.
O amor que ele sentia por Bianca justificava o porquê de suportá-la – mas não o impedia de ter amor-próprio. Agora ele se via dividido entre o amor que sentia por ela, e o amor que sentia por ele mesmo.
- Eu também perdi aquele bebê, poxa! Eu também sofri e ainda sofro com essa história toda! Mas nem por isso me deixo afundar! Não posso! Já faz tanto tempo! A vida continua, caramba.
- Eu sei – afirma Teresa.
Ela sentia que podia fazer pouca coisa para ajudar, mas ouvir os lamentos de Fábio era uma delas, e era importante para ele. Desabafar tem efeito terapêutico. Por isso vinha exercendo o papel de ouvidora, desde que notara que mais ninguém tinha paciência para aquela tarefa. As pessoas gostavam mais de palpitar do que escutar. E os palpites nem sempre eram bons – principalmente considerando a delicadeza e fragilidade daquela situação. Falta tato para muita gente.
E pelo que sempre ouvia das conversas entre os amigos de Fábio, sabia que cabia a ela dar bons conselhos. Ou não falar nada, e só escutar. Estar perto, se mostrar presente.
- Ela não tem mais paciência comigo, não tem paciência com o Joaquim. Acho que não tem mais paciência nem com ela! Fica o tempo todo com a cara fechada, dá para ver que está sempre brava, não fala nada e quando fala, é estúpida...
- Sei...
- Só que não é sempre! E quando ela não é estúpida, dá a impressão de ser tão frágil... Dá para ver que ela está despedaçada, e me dá vontade de pegá-la no colo, de consolá-la, dar amor. Eu vejo que ela sofre muito com essa situação! Mas ela mal me deixa chegar perto. E quando por um milagre ouve o que tenho para dizer, cospe em cima de mim palavras que me ofendem. Que me machucam!
- Onde que ela está agora?
- Foi comprar roupa com o Joaquim. Ele só foi junto com ela para não contrariar, porque ele também percebeu que ela está diferente. Ele se culpa pelo o que aconteceu, Terê. O moleque tem três anos e convive com a culpa de ter deixado os brinquedos no meio do caminho! Soube que todos os dias que ele acorda chorando durante a noite, com pesadelo. Meio dormindo, fica pedindo desculpa, aos gritos. É um trauma, me falaram – ele diz – Fico vendo as pessoas que eu amo sofrer e não sei o que fazer para resolver.
Fábio completa a cerveja, e ainda segurando a garrafa bebe mais da metade de seu copo, em um gole. Enche o copo novamente, e bebe enquanto serve Teresa.
- Eu sei que recentemente a Bia andou dando uns petelecos no Joaquim. Ele me contou, mas me fez prometer que não diria nada para ela. Bianca nunca foi de violência! Principalmente com o Joaquim!
- Ela precisa de um tratamento, Fábio. Tem que se consultar com algum médico.
- E quem vai ser o doido que vai sugerir isso para ela? Se ela já grita como louca quando eu tento conversar com ela, imagine o que não vai falar se eu só insinuar que ela precisa desse tipo de coisa! Você conhece a Bianca.
- Eu vou te acompanhar, quero conversar com a Bianca – Teresa diz, vendo Fábio entregar uma nota de R$ 10 para o homem atrás do balcão.
- Tá, mas não vamos entrar nesse assunto de médico. Não hoje. Está muito tarde, estou cansado.
Já estava escuro quando Bianca chegou em casa. Joaquim estava sonolento e aparentava cansaço. Pela primeira vez, não quis mostrar para o pai o que tinha comprado, apesar de Fábio ter pedido para ver o que tinha na sua sacola. Preferiu deitar no colchão, não aceitando nem mesmo tirar as sandálias novas. Diante da negativa do filho, que era um resmungo, Fábio apenas olhou para Teresa, que devolveu o olhar.
- Não sabia que agora você precisava de babá – reclama Bianca, olhando pra Fábio e depois para Teresa. Não entendia muito bem o porquê de sentir tanta raiva do marido, mas notava que sempre extravasava parte de sua ira quando enfim conseguia tirá-lo do sério.
- Não seja grosseira, Bianca – pede Fábio, pegando uma lata de cerveja de maneira impaciente – A Teresa é nossa amiga e acho importante cultivarmos a amizade dela.
- “Cultivarmos a amizade” – debocha Bianca, servindo-se de água – Fala logo que vocês estão tendo um caso, Fábio. Assume logo que vocês passaram a tarde toda trepando, enquanto eu comprava roupa para o seu filho! Vai ser mais bonito se você falar de uma vez! Seja homem e assume.
- Vá à merd*, Bianca! – fala Teresa, notavelmente calma. Tentava sempre o caminho do diálogo, da conciliação, mas tinha vezes que precisava ser um pouco mais direta – Se você não se respeita, pelo menos me respeite!
- Deixa para lá, Teresa. Agora, é assim! A Bianca deu para achar que eu estou saindo com as mulheres da vila. Nunca, em toda a minha vida, dei motivos para ela desconfiar de mim e agora ela fica falando esse monte de besteira. Como se eu tivesse interesse em outra mulher além dela. Só quer é briga, não entra na onda dela, não.
- Eu não me importo se você está ou não saindo com as barangas da vila – garante Bianca, entre os dentes – Não me importo com o que você faz ou deixa de fazer. Por mim, você podia explodir agora mesmo.
- Ah, Bianca! Falo sério agora! Vá à merd*! – diz Teresa, exaltando-se um pouco mais – O Fábio é seu marido, ama você, está do seu lado e é assim que você agradece? Deixe de ser ingrata, valorize o que você ainda tem e cuida para não perder.
- O que você quer dizer com isso? – pergunta Bianca, aos gritos – Acha que não me cuidei e por isso perdi meu bebê?
- Você não teve culpa... – Fábio começou a dizer.
- É claro que eu tive! – interrompe Bianca, aos berros, jogando contra a parede o copo que tinha em suas mãos.
- Para com isso! – berra Fábio, segurando a esposa pelos ombros e sacudindo-a. Ele parecia em choque, mas ela também – Esqueça o que passou, Bia!
- Me solta – ela pede, num sussurro. Seus olhos brilhavam de raiva – Já pedi para me soltar.
- Bia! – chama Fábio, ainda segurando-a. Ela evitava olhá-lo. Conhecia-o suficientemente bem para saber que aquele tom em sua voz significava que ele estava chorando – Olha para mim, meu amor! Sou eu, poxa!
- Fábio, eu quero que você me solte.
- E eu quero que você volte a me amar!
Ele a soltou e no mesmo instante Bianca saiu da casa. Para onde iria, ninguém sabia. Fábio deixou-se cair no meio da sala e, tampando o rosto com as mãos, começou a chorar. Joaquim entrou na sala e, choramingando, correu para os braços de Teresa.
- Manda o bicho-papão embora, “tia Teê”! – ele pediu, com a voz entrecortada – Traz minha mãe Bia de volta, traz?
Teresa sentiu o coração apertar. Suspirou fundo, deu um beijo carinhoso na cabeça do garoto e colocou-o sentado em uma banqueta ali do lado. Com cuidado, catou os cacos de vidro do copo que se estilhaçou contra a parede e varreu o restante.
Despejou em uma pequena panela o café morno que encontrou dentro da garrafa térmica. Deu uma requentada no líquido e ofereceu para Fábio, após servi-lo em uma canequinha de plástico. Ao ver o filho, ele se recompôs.
Ela puxou o celular de dentro da bolsa, e depois de alguns segundos, o celular de Fábio vibrou.
- Te mandei o número de uma psiquiatra. Ela é uma ótima profissional. A vizinha da minha irmã trabalha para ela. Minha irmã comentou o que estava acontecendo com a Bia, a vizinha garantiu que ela seria atendida de graça. Liga amanhã, logo cedo, e marca consulta – pede Teresa, afagando o cabelo de Joaquim – Assim que você souber quando a Bia vai ser atendida, me avisa. Eu te ajudo a levá-la lá.
- Não sei...
- Ela vai, Fábio – interrompe a mulher – Nem que a gente tenha que obrigá-la.
Fim do capítulo
Capítulo ímpar, Bia invertida.
Comentar este capítulo:
Marta Andrade dos Santos
Em: 13/05/2021
Misericórdia pirou mesmo.
Resposta do autor:
É, mas tadinha!
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