Rafaella não precisou bater duas vezes na porta e logo os vizinhos chegaram.

- por favor, eu preciso de ajuda...

        O casal de idosos trocaram olhares confusos e a ruiva tratou de se explicar.

- eu moro, aliás, morava com uma amiga, namorada, sei lá, o fato é que brigamos e ela não voltou por esses dias, hoje eu vi no jornal que ela foi assassinada - Rafa falou ao mesmo tempo em que enxugava as lágrimas que escorriam uma atrás da outra.

- entre e nos conte essa história direito querida - Falou a senhora de longo cabelos pretos e nariz adunco, depois envolveu a ruiva com os braços levando-a para dentro de casa, em seguida acomodou Rafaella no sofá dizendo que ia buscar um chá de camomila, e discretamente chamou o marido para dizer: 

- ora homem não faça essa cara, se a nossa Vanessa tivesse encontrado alguém como nós no seu caminho, talvez a tragédia que aconteceu com ela teria sido evitada, pense nisso?.

       O homem coçou a barba rala, olhou para a foto de uma moça bonita, morena e com um enorme sorriso em cima do aparador e suspirou tristemente ao lembrar da filha assassinada.

- tem razão querida, vamos ajudar.

        A ruiva com toda paciência do mundo, explicou detalhes de como passou todos esses meses em companhia de duas yorkshires e de Karina, contou da amnésia, dos flashs de memória que estava tendo, do livro que estava escrevendo e como manteve-se distante socialmente, o casal ouvia tudo com atenção redobrada, lamentando todo o acontecido, em dada hora, a senhora simpática perguntou se todos estavam com fome e ao ouvir um sim em conjunto foi fazer um café bem cheiroso que trouxe com um gostoso bolo de doce de leite, antes ajeitou a mesa com uma toalhinha xadrez e passaram a conversar sobre coisas triviais para desanuviar a tristeza, depois a senhora repousou a xícara no pires dizendo.

- minha querida, vamos a polícia?, só Deus sabe quem é você, precisamos descobrir, por hoje pode dormir no quarto da minha filha, seja muito bem vinda e saiba que está tudo bem limpinho, ela iria gostar de te-la aqui, viu?.

- ela não vai se incomodar de ter alguém no quarto com ela?.

- querida, infelizmente a minha Vanessa não está mais entre nós...

-lamento muito, eu entendi errado, desculpa.. mas, olha, tem Begônia e Rosa, duas yorkshires que são da casa, tem as minhas roupas, tudo está lá...

- vamos buscar suas amiguinhas, claro, vai ser uma alegria ter cachorrinhos e uma moça tão educada como você, se acalma que somos uma família do bem, amanhã descobriremos tudo, certo?.

       Rafaella ficou emocionada com a hospitalidade do casal, e fizeram o combinado, buscaram as duas cachorrinhas que animadas sentaram no colo da dona na casa e de lá não quiseram sair, a ruiva sorriu constatando que suas companheiras tinham encontrado enfim uma casa definitiva, depois pediu licença para sair e após um longo banho seguiu com uma pequena mochila para o quarto da filha do casal, em uma parede olhou as várias fotos da sorridente morena, sempre com a mesma amiga, além de outras pessoas, e em cima da cama ficava um quadro que reproduzia "Filosofia, Medicina e Jurisprudência de Gustav Klimt.  A cama  de Vanessa era de casal e cheirava a lavanda, Rafa olhou intrigada o resto do quarto, sentindo calafrios, depois virou os olhos em direção a mesinha de cabeceira, olhando outras fotos de Vanessa em diferentes idades, curiosa abriu a gavetinha e viu um diário, levantou-se e caminhou até a porta, depois colou o ouvido para escutar se o casal já tinha ido deitar, como estava tudo muito silencioso, inclusive pela ausência de latidos de Rosa e Begônia, deitou-se na cama e passou a folhear o diário, pela data viu que era de três anos atrás, na contracapa havia uma foto de Vanessa com a mesma moça e junto a frase "O amor rompe barreiras", e um arco-íris muito mal desenhado, mas, que achou muito fofo, sorriu e começou a ler as páginas, quando chegou na metade já era bem tarde, mesmo assim folheou até a última página e vendo que datava do começo de dezembro de 2013, sorriu novamente para guardar o diário e foi com o rosto da moça na cabeça que adormeceu, para sonhar com uma espécie de gruta onde encontrava com Vanessa, mas, não conseguia lembrar de suas palavras quando despertou.

       A ruiva levantou balançou a cabeça para afugentar o sonho, trocou de roupa e seguiu até a sala onde o casal arrumava a mesa.

- oi querida, sente-se, estou terminando de preparar as coisas do café da manhã, dormiu bem?, está com uma cara tão cansada.

- desculpe, eu fiquei até mais tarde observando as coisas da sua filha, a energia dela é tão forte.

- Vanessa sempre foi uma pessoa especial, a perdemos há três anos para a maldade humana.

- entendo...e saibam que lamento muito...

- eu sei querida, agora toma seu café que temos um dia longo, vamos a Polícia que precisamos descobrir quem é você mocinha, não deve ser fácil sua situação, espero que a gente consiga as respostas para tudo, enquanto isso você fica conosco.

- agradeço, mas, faço questão de buscar todas as compras que tem na casa, só lembramos de trazer a ração de Rosa e Begônia, aliás, onde elas estão?.

- ah, sapecaram e agora estão dormindo na minha cama, as danadinhas...

- estou vendo que criaram em instantes uma relação de muito amor, se a senhora quiser ficar com elas, será um prazer, elas vão fazer companhia e pelo visto elas mal chegaram e já se sentem em casa.

- querida, você deixaria elas comigo?, tem certeza, nossa, eu amaria, já me afeiçoei a elas, nem acredito...tem certeza?.

-elas serão bem cuidadas, sim, elas podem ficar.

          Na delegacia a Delegada sorriu para Rafaella pedindo que entrasse com o casal que a acompanhava, escutou o depoimento enquanto a escrivã anotava tudo no notebook, por fim levantou, fez alguns telefonemas e voltou.

- olha, você pelo que tudo indica realmente se chama Rafaella, provavelmente alguém foi enterrada em seu lugar.

Rafaella sentiu tontear e piorou quando a policial mostrou as reportagens da época, assim como fotos suas.

- mas, dra...como essa moça foi enterrada em meu lugar?.

- pode me chamar de Virna...olha, a religião dos seus pais não permitiu que o corpo fosse violado, porque segundo suas crenças é proibido, como entraram com uma liminar não pode se fazer a perícia, então, como tudo indicava que fosse você, o caso foi dado como encerrado e tudo foi agilizado, bom, agora estamos aqui.

- impressionante...

- Rafaella, preciso avisar que uma amiga sua e a Tv Curitiba estão ai, os jornalistas todos aglomerados esperando você se pronunciar, posso deixar que sua amiga entre?, depois vai querer dar uma entrevista coletiva ou ainda não é o momento?.

- pode deixar a amiga entrar, ainda não estou pronta para jornalista, se puder dispensar eu agradeço...

          Sophia entrou na sala acompanhada de uma investigadora, correndo para abraçar Rafaella.

- Rafa, meu Deus, você está viva, eu nem estou acreditando, como você está?.

- bem...você é...Sophia?.

- você lembra de mim?.

- sonhei com você, estava escrevendo um livro com uma personagem...agora sei que é você...

        Após o breve diálogo um investigador pediu licença para entrar, estavam ladeados por uma senhora e seu marido, ambos estavam emocionados e com os olhos rasos.

- Dra, trouxe aqui os pais de Rafaella, podemos entrar?.

- claro Ray, obrigada - Após o investigador sair os pais se aproximaram de Rafaella com os braços abertos.

- minha filha, sei que tivemos nossas diferenças, mas, te amamos muito, que felicidade que está viva, Deus nos honrou com esse presente.

        A ruiva franziu a testa, se esforçou, mas, não teve lembrança alguma, de nenhum dos dois, muito menos uma conexão, apesar do abraço discreto, se desculpou educadamente dizendo que não lembrava deles e preferia seguir com o casal que a abrigou com tanto carinho, a psicóloga da Polícia alertou que era melhor não pressiona-la e em concordância os pais de Rafa pegaram o contato do casal e foram embora.

       Já na casa do casal, Rafaella seguiu para o quarto de Vanessa, estava precisando ficar sozinha depois de tantas emoções...adormeceu, estava em uma praia linda, o mar azul batia na areia clarinha da praia, trazendo delicadas conchinhas coloridas, o sol era gostoso lambendo sua pele de leve em uma carícia gostosa, sentou na areia e quando olhou ao lado ela estava lá...a moça sorridente das fotos.

- oi, você é?...

- sim, Vanessa...muito prazer Rafaella, fico feliz que esteja com meus pais, e obrigada por deixar Begônia e Rosa com minha mãe, ela ficou muito emocionada, e eu também.

- preciso te confessar uma coisa...eu li...o seu diário...

- eu sei querida, não tem problema, depois que deixei o corpo físico, tantas coisas perderam a importância, entende?.

- Vi que tem uma namorada...

- Liz seguiu sua vida, está casada com uma pessoa que a ama e fico muito feliz....preciso na verdade de uma ajuda sua para outra coisa...

- o que seria?.

- o rapaz acusado...não foi ele quem me matou, foi uma mulher...a...

        A batida na porta trouxe Rafaella de volta, tinha a sensação que havia sonhado com Vanessa mais não conseguia lembrar.

- querida, venha almoçar, já passamos na hora faz tempo.

        Rafa olhou o casal e teve vontade de perguntar mais alguma coisa mas, não teve coragem, por fim sorriu se enchendo de coragem.

- Só tiveram Vanessa de filha?.

        O casal se olhou com lágrimas nos olhos.

 - Na verdade Vanessa é gêmea, bivitelina, a irmã não é idêntica, infelizmente...ela não seguiu um caminho certo na vida e atualmente está presa, uma bela moça, mas, cheia de encrenca na vida, não quer nos receber e de tanto dar com a porta na cara desistimos.

        A senhora saiu trazendo consigo um porta retratos com a foto de uma moça de fato muito bonita.

- essa é a nossa Leonarda...o que tem de bonita tem de preocupante, nas fotos de Vanessa do quarto você deve ter visto ela...

- se eu puder ajudar...

- quem sabe querida, quem sabe...

.

      Léo andava lentamente pelo pátio, passava uma mão na outra demonstrando todo o seu nervosismo, sentia que o estômago embrulhava inteiro por dentro enquanto esperava a oportunidade de falar com Cris, ainda tinham muita coisa a resolver e não tinha superado o que havia feito a ex namorada, sabia que precisavam conversar e resolver suas questões, antes que Cris a esquecesse ou que voltasse a antiga penitenciária, porque tinha a convicção que estava ali apenas em um castigo temporário dado por uma de suas ficantes.       Quando Cris apareceu, Léo correu em sua direção, tentando ser discreta.

- precisamos conversar pequena...

- e quem disse que quero conversa contigo?.

- me deixa explicar Cris, não tive alternativa, foi um combinado de Gerusa com os chefões.

- e quem é essa Gerusa?.

- uma policial da civil que sempre peguei, até você aparecer...

- depois de você eu deixei todos os meus casos, você sabe disso...

- eu não sei de nada...saiba que não esqueci o seu tchau debochado e muito menos o "hasta la vista baby", enfie seu deboche no cu, que não te quero mais...

- Cris, me dá uma chance, se acontecer algo contigo...eu não vou me perdoar, deixa eu cuidar de você, quem sabe se a gente arruma um novo médico, pode ter um tratamento novo, eu consigo a grana, a gente dá um jeito...só...me dá uma chance vai...

        Cris sentiu a sinceridade nas palavras de Léo, encostou sua testa e afagou o seu rosto.

- querida, o Alzheimer não tem cura, as células cerebrais degeneram e morrem, causando um declínio constante na memória e na função mental, e quando acontece assim de forma precoce como foi o meu caso é complicado...o meu quadro é irreversível...lamento muito, se tivesse te conhecido antes...talvez, quem sabe?. mas, você é jovem Léo, tem a vida pela frente...vamos sentar naquele banco, vem....

       Léo foi levada a sentar e sentiu seu rosto queimar de tristeza e desespero, não podia ser verdade, a doença de Cris não podia ser tão cruel assim...pensava que tivesse cura, ou que pudesse retardar, as lágrimas queimavam a face enquanto era embalada pela ex namorada.

- Léo, estou vendo que tudo que sente por mim é sincero, tenta mudar sua vida, você tem tempo, é tão jovem e inteligente, cumpre sua pena e deixa o mundo do crime para trás...você nunca me disse...porque entrou para essa vida, veio de uma família muito pobre?.

- nada disso...eu venho de uma família simples, mas, nunca me faltou nada, sempre tive tudo, tivemos aliás...eu e minha irmã, sempre tivemos tudo o que a gente quis...claro que a Vanessa sempre foi a mais queridinha dos meus pais, eu era aquela criança rebelde, sentia que ficava com os restos, e nunca gostei de ser coadjuvante, minha mãe dizia que era coisa da minha cabeça, mas, não era, bom, depois arrumei uma namorada, a Liz, ai a minha irmã veio e pá, tomou ela de mim, nunca a perdoei...mas, não quero falar da minha família...

- porque Léo?.

- dói Cris, eu errei muito com eles, não perdoei Vanessa e bom, hoje de nada adianta, ela está morta.

- perdoe em seu coração, deixe que essa dor se vá...

      Cris desmaiou, Léo se desesperou e correu debruçando seu corpo ao encontro da ex namorada, foi quando viu os olhos de Cris abrirem e uma voz completamente diferente sair de sua boca.

- irmã, sou eu...Vanessa, segue tua vida, eu já te perdoei há muito tempo, você me perdoa também?, me desculpa, eu me apaixonei pela Liz...

       Léo deu um grito agudo, dolorido...

- mana??, Vanessa...me perdoa irmã...

  Mas já era Cris de volta...

- Léo, me ajuda, minha cabeça...está doendo demais...

- Calma Cris, vou chamar alguém no ambulatório...

- Não vai...não vai dar tempo...quero que você me dê sua mão, quero partir olhando os olhos de alguém que me amou de verdade, como sei que me ama...

- Não meu amor, não vai...eu te amo Cris...    

    O grito ecoou pelo presídio...Cris havia morrido de um aneurisma cerebral formando ao longo dos anos, mas, deixara no coração de Léo um pequeno legado..."mudança".

    Adeus Cris...

Fim do capítulo