Porto
Carmen
Eu, novamente, me sentei em frente ao bar. O salão estava lotado, mais do que em qualquer outra noite. Dessa vez eu abandonei o vinho e bebia algo mais forte, não acreditava em como a minha vida virou um inferno em tão pouco tempo.
Olhei para o pequeno copo de vidro em cima do balcão e ela refletiu a minha imagem. Um chapéu discreto, o véu negro e meu batom preferido. Assim, com o rosto coberto e a minha boca grande destacada pelo tom carmesim, eu me sentia outra pessoa.
– Tu estás linda. – Sofia sussurrou atrás de mim, eu nunca imaginei receber um elogio seu.
– Gracias... – Sorri triste. – Usted também está.
– Parece que preto nos cai bem. – Ela sentou ao meu lado e reparei seus olhos inchados por baixo do véu. – Nunca vi esse lugar tão cheio.
– Ela era uma persona increíble com todos, não esperava menos...
– Até o Imperador mandou flores, como ele soube tão rápido? E o menino de recados, tadinho... Não para de chorar ali no canto. – Apontou para a criança sendo consolada por uma das meninas.
– Ela sempre dava alguns contos para ele... – Sorri triste com a lembrança.
Sofia pegou minha mão que descansava no balcão e apertou, a menina chorava e eu também. Olhei para ela. Estava crescendo e parei para me perguntar se eu irritava Margot como ela me irritava há uns tempos atrás.
– Venha cá... – Chamei e abri os braços.
Sofia me encarou alguns segundos sem saber o que fazer, mas por fim, se jogou no meu colo e chorou desesperadamente. Ela também estava sozinha agora.
– Eu sinto muito, Carmen... – Choramingou.
– Yo también... – Abracei mais forte e chorei com ela por algum tempo. - Vamos... acho que preciso dizer alguna cosa.
Ela concordou e nos levantamos. Enxuguei as lágrimas e parei no meio do salão antes de subir ao palco. O seu quadro estava pendurado na parede e o caixão preto bem posicionado em sua frente, a presença de Margot era forte até nessa hora. Acariciei sua mão gélida e rígida e chorei outra vez. Seu rosto estava levemente inchado e coberto pelo véu, sua pele pálida contrastava com o negro das vestes, o mesmo tom que ela usava desde que Jorge se foi. Suas mãos descansavam em seu peito e deixei ali um galho de suas orquídeas favoritas, as brancas e como sua delicadeza me lembrava ela. Pensei que era assim que Margot gostaria de estar, linda, como sempre.
Suspirei e me direcionei ao palco, haviam dezenas de homens ali, mas hoje não haveria orquestras, nem idas ao andar de cima.
– Senhores... – Chamei a atenção de todos, minha voz estava trêmula. – Eu agradeço a presença de todos aqui. Sabemos o quanto essa mulher era extraordinária e quanta felicidade ela proporcionou a vocês. – Todos riram com respeito. – É inacreditável, mas yo creo... – Misturei as línguas, estava dispersa. – Perdão... Eu acredito que tudo um dia se acaba, com a vida não é diferente. É o fim de um ciclo. Para Margot ele se fechou e... e espero que ela esteja bem.
"E com o homem que ela tanto amava."
Queria que Isabel estivesse aqui. Apesar de toda a mágoa, queria seu colo. Engoli o choro que ameaçava sair e continuei:
– Beberemos a essa senhora e à dama extraordinariamente linda que ela foi um dia. – Ergui a taça em minha mão e todos fizeram o mesmo. – À Margot Montenegro.
Todos responderam e logo a conversa começou a encher o salão. Voltei ao seu lado e pensei que não estava pronta. Talvez nunca estivesse.
– Ela realmente foi uma mulher lindíssima. – Um homem falou ao meu lado. Marcos, o Barão de Campo Belo. – Fui apaixonado por ela quando era jovem, mas a dama nunca me deu atenção.
Ri com ele enxugando uma lágrima que descia em minha bochecha.
– Se parece com ela. – Olhei intrigada. – São completamente diferentes na aparência, mas tens a mesma coragem e força que Madame Margot. Não preciso te conhecer para saber disso, vi no dia que correu Antônio daqui.
– Não o corri, Barão, foi usted quem fez isso, inclusive, muchas gracias... – Sorri triste para ele e voltei meus olhos para Margot.
– Foi um jantar fascinante e que bela moça, não? – Ouvi uma conversa atrás de nós.
– Uma francesa... e de muito bom gosto!
Olhei para os dois homens que conversavam, um deles era o Barão Gusmão Maia, o banqueiro.
– Agora a minha amiga saberá o que é um casamento. - Os dois riram alto e eu gelei.
Amiga?
Há dias tenho ouvido uma história de jantar de noivado, mas não dei bola, estava preocupada demais com a saúde e o estado de Margot para me preocupar com os jornais ou as fofocas do Império. Em nenhum momento me preocupei com o casório alheio, mas agora...
Marcos encostou em meu braço gentilmente e virou para se afastar.
– Barão... - Chamei e minha voz saiu fraca. Ele me olhou e eu me recompus. - Podes me responder uma coisa?
– Claro, Madame Carmen. Pergunte.
– Há dias tenho ouvido falácias sobre um noivado, quem será o felizardo? - Olhei para ele sorrindo amarelo, eu estava com medo da resposta.
– Não sabe, Madame? - Ele me olhou incrédulo. - A Capital inteira só fala disso. Estão alvoroçados com a notícia.
– Estive ocupada demais com a saúde de Margot. - Respondi e ele me pediu desculpas com o olhar.
– A Baronesa de Vassouras, nunca pensaram que ela realmente assumiria um casamento com uma mul... - Disse com naturalidade e meu ar sumiu, percebi que ele continuou falando mais algumas coisas, mas eu sinceramente não ouvi mais nada.
"Casamento? A francesa era Héloïse, obviamente. Como não me dei conta? Ela... ela realmente veio aqui só para se deitar comigo. Isabel veio aqui para me humilhar!
– Madame, tu estás bem? - Marcos perguntou e sua voz estava tão longe de mim.
– Não. - Respondi sinceramente.
"Casamento?"
– Venha, sente-se... - O Barão segurou meu braço e me puxou para uma cadeira próxima.
"Ela vai se casar... Ela... Como pode?"
– Com licença. - Pedi, eu já nem continha mais as minhas lágrimas. - Necesito irme.
Saí correndo antes que ele fizesse perguntas.
– Carmen? - Sofia perguntou quando me viu correr em direção a escada.
– No vengas detrás de mí, Sofía, por favor. - Pedi chorando e ela obedeceu.
Corri pela escada do bar, o vestido comprido me fez tropeçar no último degrau e eu caí deitada no chão, meu queixo colidiu contra a ponta do aparador, ali descansava uma escultura que Margot trouxe de Milão em uma de suas viagens. Ela caiu e se quebrou em zilhões de pedaços.
"Isabel... como ela teve coragem de fazer isso comigo?"
Senti o sangue quente escorrer pelo meu queixo, mordi a língua com a queda. Levantei e limpei a boca e as lágrimas de qualquer jeito. Corri para o quarto, entrei e bati a porta com toda a força que eu tinha.
"– Boa noite, Carmen. - Cumprimentou. - Gostou do presente?
– Boa notche, Baronesa. - Sorri maliciosa para ela – Sí, eu adorei e usted? Gostou de la canción?
– Sim... acho que podes começar a cantar para mim, eu vou adorar..."
– Pare. - Pedi para mim mesma, eu não queria lembrar de todas as vezes que fui feliz com ela, mas era exatamente isso que minha cabeça estava fazendo. Me mostrando todas as coisas que ela faria com outra mulher.
"– Bom dia, Baronesa.
– Quando vai parar de me chamar assim? - Ela perguntou divertida.
– Acho que nunca. - Mesmo com os protestos da minha consciência, aproximei meus lábios dos dela em um beijo simples.
– E aquela história de "sem besos na boca"? - Imitou meu sotaque.
– Cállate... - Ela sorriu e me puxou para um beijo de verdade."
– Por favor... por favor, pare. - Pedi e sentei no chão em frente a porta chorando desesperadamente.
"– Comeu todo o meu bolo de fubá! - Falou indignada.
Quase engasguei rindo.
– Não me culpe! Nem eu sabia que gostava tanto de bolo de fubá....
– Deve ser o bebê! - Vi seus olhos se iluminarem ao olhar para minha barriga e eu levei a mão até ali automaticamente."
– Mi Rafael... - Não tinha mais nada de meu, só as minhas lembranças.
"- Queria que as coisas fossem simples como faz parecer. - Sorri triste para Louis.
– Posso dar um conselho a ti? - Concordei e ele continuou. - Não dê ouvidos à Lucília. Ela sempre foi uma mulher difícil.
– Ela tem razão. Isabel merece mais. - Ele me repreendeu com o olhar. - A Baronesa deveria amar Héloïse..."
E agora ama. Ama e se casará com ela. Parei para pensar em meu sonho e talvez ele tenha sido um vislumbre do futuro. Um futuro que eu me negava a ter.
– EU TE ODEIO, BARONESA. - Gritei e eu não estava nem aí se todos ouvissem. Eu não estava nem aí para nada. - EU TE ODEIO.
Levantei rápido e minha cabeça rodou, não dei bola. A penteadeira que uns dias atrás joguei no chão estava novamente ali, erguida. A caixa de madeira com as lembranças que guardei dela estavam no mesmo lugar. Agarrei aquilo, abri a porta e corri até a pequena sala do andar de cima, por sorte a lareira estava acesa para ajudar na iluminação. Sem pensar joguei tudo ali e me ajoelhei em frente ao quadro de Margot chorando desesperadamente.
– ¿Cómo ella puede hacerme esto, Margot? - Perguntei esperando uma resposta que nunca mais viria. Provavelmente eu nunca tenha me sentido tão sozinha.
Levantei dali e voltei para o quarto.
– ¿POR QUÉ DESPUÉS DE TODO TODAVÍA TE AMO? - Fui até o roupeiro e peguei a camisa de Isabel. Rasguei-a completamente, como se eu pudesse rasgar e despedaçar o que eu sentia por ela. Eu não queria mais sentir nada.
Arranquei o véu e o chapéu em minha cabeça e me olhei no espelho. Minha boca estava suja de vermelho, mas não era só o batom, o sangue ainda escorria pelo meu queixo inchado pelo tombo... Fechei os olhos com força e quando os abri eu vi Isabel atrás de mim, mas seu olhar não era doce como costumava ser. Era aquele olhar, o mesmo daquela noite e eu me encolhi de medo. Fechei os olhos outra vez e quando os abri ela já não estava mais.
Eu estava bem próxima ao espelho, olhei novamente para mim e enxerguei a desgraça que eu era. Eu senti nojo, estava horrível e isso ia muito além das olheiras fundas, das bochechas magras e pálidas, do olhar cansado e triste. Meu corpo estava diferente, as costelas apareciam, meus seios caídos depois da amamentação, minha barriga ainda marcada pela gestação, meus braços finos deixavam minhas mãos parecendo maiores do que realmente eram. Eu me tornei uma mulher completamente diferente do que fui um dia.
Os fios de cabelo branco me mostravam que eu estava envelhecendo. A Baronesa ainda era jovem... Héloïse também. Por quê Isabel iria querer uma mulher como eu? Senti raiva. Uma que eu não sabia como controlar. Olhei para os meus olhos e soquei meu rosto com força, talvez com toda a força que existia em mim. O espelho se espatifou em mil pedaços aos meus pés, eu me sentia assim. Despedaçada. Quis correr para Margot e a realidade de sua morte me bateu forte, como um soco e eu levei as duas mãos a cabeça sem saber o que fazer. Ela se foi e... e mais cedo eu desejei que Isabel estivesse aqui comigo, para mim, porque eu a amava e mesmo depois de me machucar como fez, eu queria seu apoio, queria que ela me dissesse que tudo ficaria bem, queria Rafael e a alegria inocente que eu imaginava sempre que pensava nele.
Mas ao invés disso eu me dou conta, aqui, no chão do quarto que para ela eu já não passava de uma puta. A puta ousada que sei que ela procuraria quando sua esposa inocente já não a divertisse mais. Como fez há uns dias. Talvez, quando encontrasse essa mulher que acabei de ver no espelho, ela virasse as costas e outra puta ousada ocupasse o meu lugar, assim como Héloïse fez em seu coração.
E foi pensando nisso que eu agarrei um caco do espelho fino e comprido. Eu não podia viver assim. Segurei com força em minha mão e senti ele rasgar a palma, mas eu não me importei, ainda sentia os pequenos cacos cravados no dorso e o vermelho, minha cor favorita, manchava o chão do quarto.
Senti o vidro gelado contra o meu pescoço e parei ali. Minha respiração estava ofegante, eu sabia que daria certo, que a dor passaria, mas...
– Não faça isso, minha filha.
– Margot? - Eu podia jurar que ouvi sua voz. - ¿Por qué? Ya no estás aquí, estoy... sozinha.
Chorei por ela. Pela mãe que durante todo o tempo que estive aqui cuidou de mim. Senti seu abraço, como se eu estivesse novamente em seu braços, deixei minha mão descansar em meu colo e chorei tudo que podia. Eu sabia que ela estava ali para mim. Sabia que era uma forma dela dizer que sempre estaria.
– Covarde. - Meus pensamentos diziam isso agora. - Uma covarde incapaz de acabar com a própria dor. Isabel e muito menos Rafael merecem ter alguém como tu em suas vidas, sabe que eles estão melhores agora.
Ouvi a porta do quarto abrir e alguém sentar no chão ao meu lado. Escorei minha cabeça no ombro de Sofia, eu nunca imaginei que ela estaria aqui para mim.
– Descobriu, não foi? - Perguntou tirando o resto do espelho da minha mão.
– Sí...
– Tu não mereces isso! - Falou brava, acho que com a Baronesa.
– Mereço, Sofia. Sempre mereci...
***
O enterro de Margot aconteceu assim que o sol nasceu. As meninas ficaram até um pouco mais no cemitério, ficava um pouco distante da casa, mas logo todas se retiraram. Só sobrou eu, Sofia e Lázaro lá.
– Vamos, Madame? - O homem me deu a mão para levantar, estava abaixada em frente à lápide.
– Podem ir, ficarei aqui mais um pouco. - Eles concordaram e saíram juntos. - Ah, Margot... eu queria tanto ter a sua força. Eu não sei como tocarei a casa sem ti, muito menos se sobreviverei para isso... - Suspirei e enxuguei uma lágrima teimosa e admirei minha mão direita, o curativo que Sofia fez antes de sairmos estava um tanto sujo de sangue. - Ela vai se casar. Mas não é como aconteceu com Jorge, ela tinha uma opção. - Ri desacreditada e minha voz embargou. - Eu espero que ele tenha vindo te buscar e que estejam feliz e vivendo o que nunca conseguiram. Só lhe peço uma última coisa, Mamá...
Respirei fundo tentando parar de chorar.
– Cuide de Rafael por mim. - Abaixei a cabeça e escondi meu rosto nas mãos, eu não aguentava mais. - Só não permita que Héloïse o maltrate por minha causa. Que ella lo cuide como a un hijo y sea la madre que Rafael merece... É só o que me importa.
Deixei uma orquídea em sua lápide, sabia que ela ia gostar.
Saí de lá eram quase seis da tarde, o sol estava se pondo e eu voltei caminhando, não me importei se era perigoso. O que mais podia me acontecer?
Não abrimos naquela noite e nem na outra. Permaneci trancada em meu quarto nesses dois dias. Eu, várias garrafas de vinho e meu cigarro. Me embriaguei e dormi no batente da janela naqueles dois dias. Choveu forte e o clima refletia a minha própria desgraça. Muitas vezes Sofia e Lázaro batiam à porta, perguntavam como eu estava e eu me limitava a responder "Estoy bien..." tentavam conversar, mas logo desistiam. As empregadas me traziam as refeições e as levavam embora exatamente como estava. Pensei no que Margot diria se me visse assim, mas já não fazia a mínima diferença também, ela não estava mais aqui.
Depois de três dias a casa voltou a funcionar. Naquela tarde eu me obriguei a sair do quarto e desci até o escritório. A presença dela ainda estava lá, como se fosse abrir a porta a qualquer momento e me chamar para conversar. Sentei em sua cadeira, acho que minha, agora. Os óculos de leitura ainda estavam em cima da mesa. Abri a gaveta e algumas coisas estavam lá. Documentos, um revólver que me pareceu tentador e a chave do cofre. Levantei e fui até ele, eu precisava saber o que tinha, afinal, tudo aquilo era meu agora.
Os documentos da casa estavam ali, uma grande quantia em dinheiro também, algumas cartas velhas, que depois de forçar a vista entendi serem de Jorge, o documento da minha adoção também estava lá e a cópia do testamento. A original estava com um responsável, ele viria ainda essa semana conversar comigo.
Leopold ainda não voltou de viagem e certamente não sabe do que aconteceu com a velha amiga. Eu não fazia ideia de quando ele voltaria e nem em como administraria tudo aquilo sem ela. O bordel, suas outras propriedades, os títulos no banco... era muita coisa, ela me preparou a vida toda para isso, eu sabia o que fazer, mesmo assim não me sentia apta.
Acendi um cigarro e parei para ler o contrato que ela fez com o inglês. Margot me disse que vendeu metade do bordel para ele, mas acabei de descobrir que não foi exatamente a metade, ela ainda era dona de 55% da casa, o que significava que todas as decisões precisavam passar por ela. Sorri triste, era uma mulher muito inteligente.
A porta se abriu e Sofia entrou devagar, ela se tornou uma boa menina e passava grande parte do tempo querendo saber se eu estava bem.
– Que bom que saiu do quarto. - Sorriu para mim.
– Sí, preciso descer hoje, a casa tem que voltar a ativa. - Respondi sem tirar os olhos do papel.
– Deixe-me ver essa mão. - Pediu enquanto se aproximava.
– No hay necesidad, estoy bien. - Sorri amarelo para ela.
– Carmen, como tu és uma mulher teimosa. - Bufou e puxou meu braço delicadamente. Revirei os olhos e lembrei de Isabel, ela me dizia isso muitas vezes. - Isso está horrível! Por acaso trocou esse curativo no tempo que passou trancada no quarto?
Olhei para minha mão e realmente estava feio, o inchaço denunciava a inflamação.
– Me olvidé... - Sussurrei dispersa e voltei a atenção para o contrato. - Aí, Sofia!
Puxei a mão quando ela jogou quase meia garrafa de uísque nos meus machucados. A menina estreitou os olhos para mim e eu revirei os meus. Tratou das feridas sem a delicadeza de antes e desconfiei que ela estava brava.
– Olha, eu preciso conversar contigo. - Ignorei. - CARMEN!
– ¿Qué pasa, Sofía? - Gritei para ela e bati na mesa, ela não tinha culpa, eu sabia que estava preocupada, não me importei, só queria ficar sozinha. - ¡Déjame en paz!
– ¿Crees que a Margot le gustaría verte así? - Arregalei os olhos para ela. - Eu passei cinco anos da minha vida ouvindo tu me xingar em espanhol, Carmen.
Suspirei, mas sorri discretamente.
– Sei que não, mas preciso de um tempo. - Falei e deixei o contrato de lado. - Margot era minha mãe, Sofia.
– Não é somente por ela que está assim. - Bufei e fui até a janela com o cigarro entre os dedos.
– No sabes nada de mi. - Falei irritada.
– Sei que está assim porque a Baronesa vai se casar. - Senti meus olhos se encherem de lágrimas ao ouvir aquilo, mas estava de costas para ela.
– Não me importa mais o que ela fará. - Menti e minhas palavras saíram tão vazias que mesmo Sofia sendo uma menina, entendeu que aquilo não era verdadeiro. - Déjame en paz, necesito organizar las cosas por aquí.
– Vai descer hoje à noite?
– Sí.
Olhei seu reflexo pelo vidro da janela, ela baixou a cabeça e suspirou preocupada, seus olhos encontraram os meus refletidos ali brevemente e ela percebeu as lágrimas grossas que desciam por meu rosto, não disse nada, só me sorriu triste e saiu do escritório.
Tive vontade de quebrar a sala inteira, de sair dali e ir até àquela maldita fazenda e dizer à Isabel tudo que... eu nem sei o que diria a ela.
O relógio me mostrava que já estava quase na hora de abrir a casa outra vez. Guardei as coisas no cofre e subi com a chave para o meu quarto, era mais seguro lá. Procurei pelas minhas vestes um vestido preto e foi com ele que desci ao salão. Dessa vez, mais cedo que o comum, a casa ainda estava fechada, mas eu precisava orientar os empregados a ajustar o salão da maneira que Margot gostava. Seu retrato já estava de volta ao andar de cima.
– Não precisa ficar aqui, Madame. Pode deixar que tomo conta de tudo. - Lázaro tocou meu braço delicadamente e eu sorri para ele.
– Não se preocupe, eu estou bem. - Menti, mas ele se conformou e saiu.
A noite chegou e todas as meninas desceram assim que os músicos começaram a tocar. Todas menos Sofia. Procurei seu longo cabelo dourado pelo salão, mas não encontrei e me chamou a atenção. Pensei em subir para perguntar se estava bem, mas não foi preciso. Sorri verdadeiramente depois de meses sem fazê-lo. Sofia descia as escadas principais tranquilamente, mas estava diferente. Os cabelos presos em um penteado, um vestido verde esmeralda e bem decotado, a cor lembrava os seus olhos. Era muito bonito e sem aquelas armações exageradas que ela gostava de usar e, o que me deixou mais orgulhosa, seus lábios muito bem tingidos de carmesim. Ela me olhou e sorriu envergonhada e eu pisquei para ela. Os homens do salão abriram a boca assim que a viram. Estava linda. Se ela procurava minha aprovação como eu fazia com Margot na sua idade, com certeza ela havia conseguido.
Um homem se aproximou dela nos últimos degraus e deu a mão para que descesse, Sofia aceitou o gesto e agradeceu sorrindo, um sorriso ousado. Ela logo se jogaria em seu colo, mas me olhou e eu neguei discretamente para que ela não o fizesse. Ri quando ela jogou um beijo para ele, virou as coisas e o deixou para trás. Agora sim se parecia comigo.
– Engraçado, Sofia... - Comentei com ela assim que se aproximou do bar. - Seu batom me lembra alguém... - Sorri para ela. - Está linda, menina.
– Meu Deus, tu estás falando igual a Margot. - Riu de mim e bati com o leque em seu braço. - Obrigada...
– Ela se orgulharia de te ver assim. - Senti meus olhos se encherem de lágrimas, a saudade de Margot já era dolorida.
– Só porque eu roubei um batom do teu quarto? - Riu, estreitei os para ela e a menina pediu um licor de maçã, sua taça fina contrastava com a minha, de vinho, que descansava ao lado. Sofia aprendeu sobre sua personalidade. Se parecia comigo, mas era ela mesma e me enchi de orgulho.
– Não... porque tu cresceu, Sofia. Se tornou uma mulher e deixou de ser aquela menina petulante que imitava meus passos, mas odiava quando te comparavam a mim.
– Ah, cala a boca, Carmen. - Riu comigo. - Pensa em voltar?
– Não... - Respondi suspirando. - A verdade é que não sei o que farei a partir de agora.
– Por que não continua fazendo o que já fazia enquanto Margot estava aqui? Cuidando de nós e dos negócios?
– Porque está além de mim. Eu sei que posso, mas sinto que preciso, sei lá... Essa não é mais a minha vida, Niña.
– É por ela, não é?
– Sí... Eu não posso ficar aqui vendo ela se casar, vendo o meu filho ter outra mãe e nem saber da minha existência. É demais para mim.
Sofia suspirou e segurou minha mão. Sorri triste para ela e vi o Barão Gusmão Maia, um dos clientes mais importantes do bordel e, sem dúvidas um dos homens mais ricos da capital, surgir no grande portal de entrada.
– Vá... - Disse para ela e Sofia se surpreendeu. - Arranque uma fortuna dele.
– Pode deixar! - Saiu saltitante.
– Sofia... - Chamei e sorri orgulhosa para ela. - Seja difícil. É assim que eles gostam.
Ela piscou para mim e ajeitou a postura em um caminhar elegante. Sorri. Estava verdadeiramente orgulhosa dela.
***
Os dias depois que Margot se foi passaram torturantes e corridos. Eu passei a cuidar de suas orquídeas e me sentia perto dela enquanto regava suas flores tão adoradas. Fui no cemitério pela manhã, levei uma delas, a mais bonita, mas passei no florista e comprei outra para pôr no lugar. Os negócios me tomavam a maior parte do tempo, o que era ótimo, porque me enchia de afazeres e eu não pensava na tristeza profunda que se apossou de mim dia após dia.
Na noite passada sonhei com Isabel. Um sonho bom que só me fez ficar pior. Acordei sentindo seu cheiro no cômodo e decidi que mudaria, talvez no quarto de Margot eu lembraria menos da Baronesa.
Engoli seco antes de abrir a porta. Era a primeira vez que entraria depois que ela partiu. A primeira coisa que senti ao abrir a porta foi seu cheiro. Incrível como ainda estava presente ali. Suspirei e uma lágrima desceu livre em minha bochecha. Tudo estava arrumado perfeitamente como ela gostava.
Deitei na cama e abracei seu travesseiro. Chorei ali pela tristeza imensa que sentia. Parei de viver e passei a sobreviver e nem sabia até quando conseguiria.
Depois de longas horas, eu levantei dali e fui até o imenso roupeiro. Incrível como Margot tinha tantas roupas e eu não tinha ideia do que fazer com elas. Tirei os vestidos dali e coloquei todos em cima da cama, a grande maioria eram pretos, havia dois mais antigos e imaginei que eram de sua juventude. Lembranças, talvez.
Olhei para a imensa pilha de roupas em cima da cama. Acendi um cigarro, enchi uma taça de vinho, sentei na poltrona e escondi meu rosto entre as mãos. Tive uma ideia e saí do quarto correndo.
– Lázaro! - Gritei para o homem que passava por ali.
– Tudo bem, Madame?
– Sim. Pode me fazer um favor? - Pedi.
– Claro!
– Chame todas as meninas para o quarto de Margot, peça que venham logo.
Ele concordou e saiu. Não demorou para que elas invadissem o local.
– Está tudo bem, Carmen? - Sofia perguntou discretamente e eu concordei.
– Meninas, eu chamei vocês aqui porque sei o quanto Margot era importante para todas. Ela não era só dona desta casa, era nossa família, alguém que cuidava de nós... - Suspirei e segurei a mão de uma das meninas que chorava compulsivamente. - Eu... vou doar essas roupas todas, mas gostaria de perguntar se querem algumas delas. Para vocês mesmas ou como uma lembrança. Sintam-se à vontade para escolher, mas sem brigas, meninas, por favor.
Pedi de antemão, sabia bem como eram todas ali. Elas ficaram gratas e logo saíram do quarto com uma parte das roupas.
Fiquei só novamente e comecei a guardar todos os vestidos que sobraram dentro das malas para o cocheiro levar até a vila pobre mais próxima e distribuir às pessoas. Dispensei as empregadas e decidi fazer aquilo sozinha. Alguém bateu à porta e eu autorizei a entrada.
– Quer ajuda? - Sofia perguntou sorrindo triste.
Ponderei em recusar, mas isso também era importante para ela.
– Venha. - Chamei e ela entrou sorrindo agradecida para mim.
– Margot era uma senhora de muito bom gosto. - Dobrou um dos vestidos e guardou na mala.
– Sim... - De fato era, algumas peças ali eram de costureiras famosíssimas no mundo inteiro.
Terminamos de arrumar tudo em silêncio e o tom alaranjado, típico do crepúsculo, invadiu o quarto. Há uns meses, eu amava admirar o sol se pondo enquanto ninava Rafael e, junto ao meu filho, esperava Isabel voltar de seus afazeres. Hoje, o céu já não tinha tanta graça, um raio de sol banhava meu rosto e a luz incomodou meus olhos, a Baronesa elogiava sempre que chegava em casa e me encontrava na varanda. Dizia que era a hora do dia que meus olhos ficavam mais dourados. A lembrança me machucou e me perguntei se seria assim para sempre. Sofia olhava para a janela e suspirava vez ou outra apaixonada pela visão magnífica do Rio de Janeiro coberto pelo manto abóbora.
– Vá com Lázaro e o cocheiro até a vila, por favor? - Pedi.
– Mas vou me atrasar para a noite.
– Não tem problema. - Sorri para ela. - É bom que chegue no meio dela, chama a atenção.
Sofia sorriu largo e saiu correndo. Logo as empregadas pegaram as malas de roupas e levaram ao andar debaixo. Suspirei e caminhei até a janela, o laranja dava espaço para um tom roxo, não demoraria muito para o céu enegrecer e a música alta começar.
A carruagem da casa saiu em direção a vila, mas não foi essa que mais me chamou a atenção. Senti minha respiração parar, como sempre. Isabel desceu correndo e parou em frente a casa, podia ver seu peito subir e descer com a respiração descompassada em sincronia com a minha. Pensei que ela subiria, que me diria que essa história de noivado não passava de uma mentira e que agora que Margot descansou eu não tinha motivos para continuar ali. Pensei que viria até o meu quarto, que brigaria comigo, obviamente, mas me levaria embora. Minha missão já estava cumprida, eu podia voltar para ela e Rafael com a consciência limpa e com a sensação de dever comprido. Era exatamente o que eu queria, o que sonhei durante todos esses meses. Com o dia que voltaria para a minha mulher e meu filho com o coração tranquilo.
Continuei observando-a. Ela não olhou para cima, não me viu ali, mas eu jurei para mim mesma que se ela entrasse por aquela porta eu sairia correndo daquele quarto e abraçaria-a com toda a saudade que eu estava. Mas a Baronesa não entrou. Pelo contrário. Subiu rápido na carruagem e foi embora me deixando outra vez ali. Chorando desesperadamente por ela. Enxuguei as lágrimas e afrouxei o aperto em minha mão machucada quando a senti doer. Me afastei da janela quando a carruagem virava a esquina e saía da travessa onde ficava o bordel. Parei em frente ao criado-mudo, ao lado da cama, olhei para a minha mão esquerda, o anel que ela me deu continuava ali. Pensei que talvez ela tivesse se arrependido disso e tirei do meu dedo como se pudesse tirá-la de mim.
Sentei na cama chorando outra vez e sentindo a dor que vê-la me causava.
Não demorou para a noite começar, ou talvez tenha demorado, mas as horas passaram rápido demais para mim.
Pensei em não descer naquela noite, em ficar ali e continuar arrumando as coisas, em me enfi*r de cabeça na papelada do bordel e em tudo que eu precisava organizar, pensei novamente no revólver na gaveta do escritório também, mas o que não desgrudava dos meus pensamentos era Isabel. Eu sabia que ela estava na capital ainda.
Por fim, desci. Sentei no bar e pedi uma cachaça. Estava distante, pensando que a única coisa que me impedia de ir até Botafogo era o cocheiro que ainda não havia voltado da vila e esperava que ele voltasse bem tarde, tarde o suficiente para me fazer desistir da ideia.
Assim que levei o copo à boca, Lázaro entrou no bordel e meu coração disparou com a ideia de que o cocheiro estava de volta.
¡MIERDA!
Levantei correndo, subi as escadas e me olhei no espelho. Estava apresentável. Corri novamente e invadi a carruagem assustando o cocheiro.
– Perdão, Gilberto. - Pedi e ele riu logo em seguida. - Me leve até Botafogo.
Ele prontamente atendeu e assim que chegamos no bairro o guiei até a casa dela, nunca entrei lá, mas Isabel e eu passamos por ali uma vez. Meu coração batia descompassado em expectativa. Pensei em todas as probabilidades e não me importava com como seria sua reação, eu precisava dizer, olhando em seus olhos, tudo que disse nas cartas que enviei, mas que ela pareceu não acreditar. Ignorei meus pensamentos que me diziam todo o tempo que essa era a pior decisão que tomei até agora.
– Pare! - Gritei para o senhor que conduzia a carruagem e ele obedeceu, estávamos a alguns metros do destino.
Respirei fundo tentando aliviar o nó que se formava em minha garganta, estiquei meu corpo para pedir que continuasse, mas o portão da casa se abriu e a mesma carruagem que parou em frente ao bordel mais cedo, saiu dali. Estava devagar e eu parei na janela para observar. Quando passaram por nós eu pensei em descer, em gritar por ela no meio da rua e agir como uma jovem apaixonada, mas logo que a janela dela cruzou com a minha a realidade me bateu violentamente. A silhueta de Isabel estava na janela, mas eu vi, sentada em sua frente, outra figura feminina, o chapéu de aba larga e as mãos cobertas por um par de luvas azul-claro me chamou a atenção, estava escuro, eu não vi quem era a outra mulher, mas... era preciso? Seus olhos cruzaram com os meus, a minha carruagem estava no lado escuro da rua e seu olhar curioso me deu a certeza de que ela não me reconheceu.
Fechei os olhos e chorei, outra vez.
– Madame, está tudo bem? - Gilberto perguntou, talvez porque ouviu meu choro, o que era bem provável.
– Sim! - Respondi limpando as lágrimas. - Volte para a casa.
Eu entendi, assim que a vi com outra mulher que... era isso. Isabel estava realmente noiva. E eu? Bem, eu estava destruída pela tristeza, pela perda de tudo que tive um dia.
Assim que meus pés pisaram no quarto eu arranquei a roupa que estava e deitei na cama. Quis novamente jogar todas as coisas no chão, quebrar os móveis e destruir alguma coisa, mas não tinha forças, nem para isso. Me agarrei ao travesseiro de Margot e chorei como nunca. Eu precisava partir. Não aguentava mais e depois disso eu tive a certeza que este Império não era mais o meu lugar.
Quando amanheceu, eu continuei arrumando tudo daquele quarto. Não preguei o olho novamente, mas também não chorei mais. Não por falta de tristezas, mas porque acho que não tinha mais lágrimas para isso.
Enquanto saí, na noite passada, as empregadas trouxeram minhas roupas para esse quarto. Suspirei e observei a parede atrás do roupeiro. Havia algo ali que só eu e Margot conhecíamos. Tranquei a porta do quarto, fechei as cortinas e tirei uma chave pequena de dentro da gaveta do criado-mudo. Empurrei o enorme roupeiro com dificuldade e procurei pela pequena porta secreta atrás do papel de parede. Encontrei-a e abri, o cofre estava trancado ainda, girei a chave e ouvi o clique. Havia muitas coisas ali, era um compartimento pequeno, mas Margot era uma mulher que gostava de lembranças. A primeira coisa que tirei do cofre foi uma caixa média e pesada, todas as joias delas estavam ali e pensei que isso eu guardaria com carinho, ela amava cada brinco, anel e pulseira. Deixei em cima da cama e voltei minha atenção para as outras coisas. Sorri largo e emocionada e minha memória me levou diretamente à Madrid.
Reino da Espanha, 1847
Fazia algumas horas que estava com Margot, ela me deu abrigo e comida, pensei que me mandaria embora, mas me banhou e deu uma cama quente para dormir, eu ainda era pequena, mas ela encontrou uma camisola que caberia em mim e poderia passar a noite. Eu não disse uma única palavra. Ela me levou até um quarto diferente do dela e me colocou para dormir. Acordei gritando assustada de madrugada e foi a primeira vez que ela me deu seu colo.
– Vamos, ven a dormir conmigo. - Me convidou com um sorriso doce e não entendi o porque ela estava sendo tão gentil, cheguei a pensar que ela faria comigo o mesmo que aqueles homens e me encolhi de medo – No te lastimaré, Cariño.
Ela me abraçou forte e deitou na cama ao meu lado.
– Cálmate, niña... - Sussurrou e acariciou meus cabelos. - Yo te protegere. ¡Promesa!
Me encolhi em seu colo e ela cantou para mim. Aos poucos o sono me venceu.
Acordei em um pulo, pensando que ela era um anjo e que tudo aquilo era um sonho bom, mas assim que abri os olhos o quarto luxuoso estava presente, mas ela já não estava ao meu lado. O cheiro gostoso de café invadiu meu nariz assim que abri a porta do quarto. Desci devagar e a encontrei na cozinha, os cabelos longos e dourados estavam soltos, o sol batia neles e brilhava tanto quanto. Fiquei escondida atrás da porta observando-a. Ouvi um soluço baixo e me aproximei mais, bem devagar. Ela estava... chorando?
Saí da penumbra e ela sorriu assim que me viu, enxugou as lágrimas disfarçadamente, me fez sentar e serviu uma xícara de café para cada uma de nós. Encheu a mesa com guloseimas e eu avancei nelas, havia comido na noite passada, mas não sabia quando comeria de novo.
– Cálmate, Cariño, come despacio... - Sorriu doce e acariciou minha mão, me encolhi e ela me lançou um olhar gentil.
Cortou um pedaço de pão para mim pacientemente e encheu de uma geleia deliciosa.
– Aún no me has dicho tu nombre... - Ajeitou uma mecha do meu cabelo longo e despenteado, apesar dela tê-lo escovado com paciência na noite anterior, atrás da minha orelha. - Eres una chica muy hermosa, ¿sabes?
Olhei seus olhos azuis outra vez, assim, com o sol batendo em seu rosto, eles ficavam um tanto esverdeados.
– ¿No entiendes lo que digo? - Perguntou atenciosa, seu sotaque era forte, mas eu entendia perfeitamente, concordei tímida. - ¿Entonces no sabes hablar?
Ri do que ela disse e ela sorriu largo.
– Te compré un regalo cuando fui a la feria por la mañana. - Me trouxe um pacote de papel, mas não me entregou de imediato, olhei-a confusa. - Solo te lo daré si me dices tu nombre.
Ponderei se deveria dizer ou não.
– Carmen... - Sussurrei e ela abriu um sorriso largo.
– ¡Qué hermoso nombre! - Me entregou o pacote e eu abri ansiosa. Sorri e me senti feliz pela primeira vez na vida. Era um vestido branco, agradeci com o olhar e ela me deixou um beijo na testa. - ¡Vamos! Vístete y luego ven y ayúdame a preparar el almuerzo, soñolienta."
O mesmo vestido branco estava ali em minhas mãos e não acreditei que ela guardou por tantos anos. Margot me salvou. Enxuguei uma lágrima e sorri com a lembrança gostosa. O luto ainda doía muito.
Dobrei o tecido delicadamente e o deixei junto com a caixa de joias. Haviam mais algumas coisas no cofre, alguns bilhetes e cartas de Jorge estavam ali também, assim como no cofre do escritório, mas o que mais me chamou a atenção foram as coisas na prateleira de cima, as que estavam escondidas embaixo do meu vestido: uma toquinha de bebê e pensei que Margot tivesse comprado ao descobrir a gravidez de Jorge e, dentro dela, estava um broche. Um exatamente igual ao que prendia a manta de Rafael e estava sempre preso no peito de Isabel. O Brasão dos Albuquerque de Castro desenhado na prata polida me dava a certeza do que acabei de pensar. Margot deixou o broche junto a touca, uma lembrança da família que ela sonhou em construir com o homem que amava. Talvez ela nunca tivesse me encontrado se seu maior sonho se cumprisse, mesmo assim, guardava minha primeira lembrança junto das recordações das pessoas que mais amou na vida.
Guardei as coisas no cofre outra vez e dormi pensando se esse anel no criado-mudo ao lado da cama e a manta de Rafael seriam como essas coisas. Uma lembrança dolorosa de um sonho que nunca se realizaria.
Eu pensei que não podia piorar, mas consegui. E talvez, só depois de tudo isso, eu entendi que estava doente. Uma doença que remédio nenhum curaria. Minha cabeça estava enferma. Meus pensamentos eram meus maiores inimigos e eles tentavam me matar todo instante. Passei a ter vislumbres de Isabel, de pensar ter ouvido sua voz e o choro de Rafael. Eu estava ficando louca e sabia disso.
Quinze dias depois da morte de Margot eu ainda chorava sua perda todas as noites antes de descer ao salão, outra coisa que se tornou torturante. Eu tinha a impressão de ver Isabel entrar por aquela porta toda a hora e isso era doentio.
Levantei perto das oito da manhã. Me arrumei e desci ao escritório. Não demorou para que o responsável pelo testamento chegasse, sabia que viria hoje, recebi um recado ontem à tarde.
– Madame Carmen! - Cumprimentou beijando minha mão. - Primeiramente, meus sentimentos pela perda de sua mãe.
Doutor Humberto Almeida, o advogado de Margot, era um dos únicos que sabiam sobre a minha adoção.
– Gracias, Doutor Almeida. Venha, sente-se. - Convidei e pedi a uma empregada para nos preparar um café.
– Peço, de antemão, perdão pela demora, este testamento deveria ter sido lido ainda na semana passada.
– Não há problema, Doutor, exceto pelas roupas dela que tomei a liberdade de doar.
– Madame, tudo que Margot tinha é teu. Lerei o testamento porque a lei assim ordena.
Concordei com a cabeça e acendi um cigarro.
– Então, vamos lá:
"Eu, Margot Amélia Montenegro de Lucca, deixo todos os meus bens, minhas propriedades, os títulos no banco e minha parte na Pensão de Luxo (cinquenta e cinco por cento do negócio) para a minha única filha, Carmen Montenegro, Incluindo todos os pertences dentro das propriedades e minha fortuna no Banco do Brasil.
"Que a sua vida seja doce e regada de amor. Onde estiver, continuarei cuidando de ti e, agora, de meu neto Rafael e exijo que Isabel faça o mesmo. Amo-te com todo meu coração, minha amada filha."
– Margot até depois de sua partida tem o dom de me fazer chorar, me perdoe, Doutor Almeida. - Enxuguei as lágrimas com o lenço e ele sorriu gentil.
– Eu sei como dói perder alguém que amamos, Madame. - Agradeci com o olhar. - Tem mais uma coisa, na última vez que estive aqui, ela me pediu para lhe entregar isso depois de sua partida. - Me entregou uma carta e um embrulho pequeno. - Margot me disse que esse era especial.
– Gracias. - Guardei na gaveta e continuei prestando a atenção no homem, mas estava curiosa.
– Aqui estão os documentos para passar tudo para o teu nome, já estão prontos, basta assinar. - Fiz o que ele pediu depois de ler cada frase daqueles imensos documentos, Margot me ensinou que não se assinava nada sem ler cada minuciosa letra. - Bom, no que mais lhe posso ser útil?
Há dias tenho pensado sobre o que fazer com o bordel, não era mais meu lugar e estava decidida, iria embora assim que Leopold voltasse ao Brasil.
– Eu quero vender a minha parte da casa. - Disse firme.
– Mas... Carmen, o bordel é o negócio mais lucrativo do Império.
– Eu sei, Doutor Almeida, mas minhas economias e a fortuna que minha mãe me deixou são dinheiro suficiente para eu viver minha vida bem e longe daqui. - Suspirei pensativa.
– Já tens ideia de para quem vender? Podemos anunciar, conheço alguns investidores franceses.
– Já, já tenho uma ideia, sim. Só peço que ajuste a documentação. Tentarei vender à Leopold, o inglês que Margot vendeu os quarenta e cinco por cento, se ele não aceitar, escrevo para o senhor e entramos em contato com os franceses. Quero agir rápido.
– Certo, Madame. - O levei até a porta e ele se despediu deixando um beijo em minha mão.
Estava feito. Eu iria embora. Não aguentaria ficar aqui e viver a mesma vida que Margot viveu. Cedendo aos caprichos do meu grande amor. Pensar nela estava me matando dia a dia e eu não aguentava mais viver assim. Precisava ir para longe e faria isso assim que Leopold botasse os pés neste Império.
***
Fui até o cemitério na manhã seguinte. E quando voltei, subi ao quarto e finalmente li o que ela havia escrito para mim.
"Carmen...
Serei breve, minhas mãos já não são firmes como foram um dia. Decidi escrever isso no dia em que percebi que sua teimosia te faria voltar à casa. E estava certa sobre ti, como sempre estive. Talvez eu já te conhecesse mesmo antes de te encontrar.
Tu és minha filha, Carmen e nunca quis que esse fosse o seu ofício, mas era teimosa demais, não pude te impedir quando decidiu isso, mesmo assim, nunca senti que deveria gastar o dinheiro que lucrou. No cofre do escritório há uma pequena parcela, o resto, está no banco. Somente esse dinheiro já seria o suficiente para viver sem que precise se preocupar. E isso é e sempre foi teu.
Além disso, há algo que gostaria de te dar, algo que vai além de tudo que construí pensando em teu futuro. Esse presente que te deixo vale muito mais do que toda a fortuna que essa casa me deu um dia e que agora é tua. Foi de minha mãe, ela me deu e estou dando a ti.
Eu sempre te darei colo quando chorar, basta pensar em mim e estarei, novamente, lhe fazendo um cafuné nestes longos e lindos cabelos castanhos, como na sua infância.
Amo-te para sempre."
Sorri e pensei nela, quase senti seu cheiro e me senti acolhida. Abri o embrulho e o presente era um lindo e antigo camafeu, lembrei que ela o usava sempre e imediatamente coloquei em meu pescoço, sei que ela estaria comigo. Mesmo assim, me sentia só e triste.
Graças aos céus Leopold voltou ao Brasil. Demorou exatamente um mês para isso e eu estava caindo em um abismo. Sentia que estava quase no fundo. Eu só queria fugir dali. Meu maior medo era ler os jornais em uma manhã qualquer e a notícia de que ela estava casada, eu sentia que não aguentaria isso.
– Madame Carmen... - O senhor adentrou o escritório com o olhar cabisbaixo, havia voltado a poucos instantes do cemitério.
– Seu Leopold. - Sorri triste para ele. - Que bom que veio, preciso muito conversar com o senhor.
– Claro... - Sentou-se na cadeira e prestou a atenção em mim.
– Eu... preciso de um grande favor. - Ele me encorajou a continuar. - Eu quero vender a minha parte da casa.
Leopold se ajeitou na cadeira e me olhou mais atento, claro que sim, ele bem sabia o quanto ganharia com isso.
– Madame Carmen, essa casa é um negócio lucrativo, para mim será incrível, mas tu perderás muito.
– Não mais do que já perdi... - Suspirei cansada. - Esse não é mais o meu lugar.
– Fique longe, eu cuido das coisas e tu aparece vez ou outra para dar uma olhada, não precisa me vender, Margot levou uma vida para construir esse lugar.
– Eu sei, mesmo assim, sinto que ela me perdoará. Não posso continuar. Preciso ir embora daqui, não dessa casa, mas desse Império.
– Para onde irá? - Perguntou preocupado.
– No sé... - Respondi sinceramente. - Comprarei uma casa na Espanha, talvez nos Estados Unidos.
– França?
– Não! - Quase gritei e logo me arrependi pela grosseria.
– Eu tenho uma casa na Inglaterra, menina. Não tenho dinheiro suficiente para comprar todo o bordel. Não em mãos, mas podemos fazer uma troca.
– Como assim? - Perguntei interessada.
– É uma casa linda e elegante, mas não muito grande. Fica no centro de Londres, está conservada, pago uma empregada que cuida dela duas vezes na semana. Fique com ela, lhe pago o resto em dinheiro.
– Quando posso ir? - Perguntei, precisava ir logo. Hoje, se possível.
– Quando quiser. Sei que essa casa vale muito mais do que isso e lhe mando as parcelas uma vez ao mês, o que me diz?
– Estamos certos então, Seu Leopold. A casa é sua. Amanhã mesmo mando o advogado vir até aqui e assinamos a papelada.
– Carmen, a senhorita está bem? - Perguntou me analisando de cima a baixo. Talvez porque aceitei a venda imediatamente. Eu entendia de negócios, podia jogar com ele, mas eu só queria ir embora dali e essa era a oportunidade perfeita.
– Sim... - Respondi em um suspiro triste e meu coração doeu.
– Essa casa sempre será tua, menina. Prometi a Margot que cuidaria de ti e cuidarei. - Sorri e ele segurou minha mão gentilmente, me peguei pensando se Jorge era assim também, nunca conversei com ele de fato, só o via de longe. - Te escreverei sempre, me escreva também, vejo em teus olhos a mesma tristeza que via nos olhos da minha amiga e assim como cuidei dela no tempo que ficaram na Inglaterra, cuidarei de ti, mesmo de longe.
– Gracias... - Senti que ia chorar e ele me abraçou, assim que se afastou acariciou meu rosto.
– Tu se parece muito com ela. - Sorri e agradeci mais uma vez.
Estava feito. E eu senti um alívio imenso.
Na tarde seguinte, nos encontramos na Cavé e assinamos os papéis do negócio. O bordel não era mais minha responsabilidade, mas todas as coisas nos cofres ainda eram. Enfiei os pertences de valor sentimental em algumas malas, embrulhei seu quadro com cuidado e mandei que levassem a casa em São Cristóvão. As joias e o dinheiro eu deixei no cofre do quarto até que comprasse a passagem para a Inglaterra, precisava fazer algumas coisas antes de ir.
Levantei de manhã naquele sábado. Juntei todas as orquídeas e, com Sofia, fui ao cemitério.
– Ela amava essas flores. - A menina sussurrou secando uma lágrima.
– Me voy del Imperio, Sofia. - Falei de uma vez só e ela me olhou assustada.
– Como? Vai para onde? - Perguntou triste.
– Londres, mas peço que não diga a ninguém... - Pedi com o olhar distante e ela imediatamente entendeu.
Sofia suspirou triste e um soluço baixinho escapou dela, abracei a menina forte e uma ideia se passou pela minha cabeça, poderia me arrepender, mas, desconfio que não.
– ¿Quieres irte de aquí? - Perguntei e ela sorriu largo.
– Como assim?
– ¿Quieres ir a Londres conmigo? - Seus olhos verdes brilharam e ela me abraçou forte.
– Ah, Carmen... Eu... Eu nem sei como te agradecer!
– Não me agradeça, só me diga se vem comigo ou não, preciso comprar as passagens hoje. - Sei que meu olhar ficou vazio e triste e ela deixou um beijo carinhoso em minha mão.
– Eu... Obrigada, Carmen... Mas não posso aceitar isso. Essa é a minha vida. - Sorri com sua maturidade. - Não posso ir embora daqui, fora que eu não te aturaria por muito tempo.
Ri alto e a abracei.
– Gracias por negarse, así no tengo que vivir contigo todos los días.
Ela me abraçou mais forte.
– Sentirei saudades. - Sussurrou, nem sei se ela queria que eu ouvisse o que disse.
– Yo también, niña.
Acariciei seu rosto e enxuguei uma lágrima que escorria em sua bochecha rosada. Não demorou para voltarmos ao bordel. Deixei ela na porta e fui até o porto, não era nem meio dia ainda. Fechei os olhos e desejei com força que houvesse uma passagem para ainda essa semana e, pela segunda vez em trinta e seis anos, Deus ouviu minhas preces.
Partiria na segunda-feira, às 5 da manhã. Ou seja, depois de amanhã.
Não desci naquela noite e, junto com duas empregadas eu arrumei todas as minhas malas. Já passava das três da manhã quando fui ao meu antigo quarto. O anel que ganhei da Baronesa voltou ao meu dedo no fim das contas e a manta de Rafael não foi para as malas, ficou comigo e chorei agarrada a ela. Eu nunca mais veria meu filho, nem de longe, como na última vez que esteve na capital e pensando nisso, eu tive vontade de desistir, mas não o fiz. Sonhei com ele nos pequenos minutos que fechei os olhos, acordei chorando, o sol já estava alto e, contrariando meus pensamentos, eu entrei na carruagem e corri para a fazenda.
Passei o caminho inteiro pensando no que diria para ela e me dei conta de que não fazia ideia assim que paramos em frente a casa grande. Não fui a Águas Claras, pedi que o cocheiro me levasse à fazenda de Vassouras, não aguentaria ver Héloïse ali.
Assim que desci, meus olhos encontraram Lucília. Engoli seco, ela também era um dos motivos de eu não querer ir até a outra fazenda.
– O que quer aqui? - Gritou se aproximando e apontando um dedo ameaçadoramente para mim.
– Lucília, yo...
– Eu não quero ouvir, Carmen! Entre nessa carruagem e suma daqui. Já causou desgraça suficiente para essa família.
– Lucília... - Quis explicar, mesmo que ela me irritasse, mas a mulher não permitiu.
– O que quer? Isabel está bem e apaixonada por Héloïse, uma moça de família e uma boa mãe para Rafael. Suma dessa fazenda e nunca mais apareça aqui. - Se Margot sabia o que dizer para me fazer sentir melhor, Lucília sabia como acabar comigo.
– Lucília...
– FORA DAQ...
– ¡VINE A DECIR ADIÓS! - Gritei e ela arregalou os olhos. - Eu só vim me despedir... vou embora amanhã por la mañana.
– O que quer? - Perguntou mais calma dessa vez.
– Quero me despedir do amor da minha vida, Lucília. - Pedi chorando. - Si usted... Si alguna vez amaste en tu vida... Déjame hacer esto.
Ela me examinou por alguns instantes e concordou em silêncio.
– Espere aqui.
– ¡No! - Respondi rápido e ela me olhou curiosa. - Diga que me encontre. Se não souber onde ir, saberei que vir até aqui foi um grande erro.
Lucília concordou e saiu em seguida. Sabia que demoraria longos minutos para ela chegar até a outra fazenda e mais um tempo para a Baronesa chegar aqui novamente.
Suspirei contendo choro e caminhei em direção a figueira, era longe da casa mas eu levaria quase o mesmo tempo que ela para chegar.
Meus pés estavam doloridos e inchados quando finalmente alcancei a grande árvore. Não me importei com a dor, o frio que sentia em meu estômago era maior que qualquer coisa. Ponderei se deveria ou não procurar pelas nossas inicias, quis não fazer aquilo, mas meu coração se aliviou quando meus olhos encontraram o tronco ainda marcado. Acariciei as letras e sorri triste.
"Ah, eu vivi uma vida pequena, mas tão linda junto deles."
– O que está fazendo aqui? - Acho que ela tentou parecer firme, mas sua voz saiu fraca.
Me virei e sorri triste para ela, eu não tinha mais lembranças ruins e nem queria ter. Eu iria embora com a lembrança de seus lindos olhos viva em minha mente.
– Usted está diferente... - Examinei-a mais. Talvez fosse a expressão de surpresa ao me ver ou... a paixão pela francesa lhe caía bem.
– O que quer?
– Quero saber se ainda me ama. - Fui direta e séria. Meus olhos se encheram de lágrimas.
– Para que quer saber? Para virar as costas e voltar ao bordel? Por favor, Carmen, eu não sou a mesma menina que disse não em Petrópolis, eu sou uma mulher. Tu fizeste isso comigo, lembra? E depois foi embora, sem sequer se despedir.
Seus olhos estavam tristes e bravos, sua voz embargou e eu percebi o quanto ela estava machucada também.
– Isabel, eu não quis ir embora... - Tentei explicar. - Eu precisava...
– O quê? Deixar o teu filho e a mulher que te amava?
– Amava? - Procurei seus olhos, mas ela não me encarou.
– Amava, Carmen! Eu vou me casar com Héloïse, caso tu não saibas... - Respondeu de cabeça baixa.
– Está feliz? – Perguntei e ela suspirou. - ¡DIME!
– Por que quer saber?
– ¡PORQUE PUEDO HACERTE FELIZ, ISABEL! - Gritei. - Eu posso cuidar de usted e de nuestro niño, eu posso... enfrentar o mundo inteiro só para ser feliz com vocês de novo.
Tentei me aproximar, mas Isabel riu e balançou a cabeça negativamente. Virou as costas e deu a volta no tronco da árvore, em direção ao cavalo.
– ¡Escúchame! - A segui.
– NÃO QUERO OUVIR AS TUAS MENTIRAS! - Ela socou o tronco da árvore com força.
– Usted a ama? - Perguntei e ela se calou. - ME RESPONDA!
– Não é do teu interesse.
– Não tem coragem de me dizer a verdade? - Desafiei e me aproximei dela. - ME DIZ A VERDADE, ISABEL!
– ME DIGA TU, POR QUÊ FOI EMBORA?
– Porque yo precisava!
– Por que razão? Estava passando fome? Voltou a se vender por necessidade?
– ¡NO REGRESÉ A SER UNA PUTA, ISABEL!
– Magina... - Desdenhou.
– Não! Só no dia em que usted voltou àquela casa e me tratou como uma. - Falei magoada.
– Carmen, eu perdi a cabeça... - Tentou se desculpar, mas eu a parei.
– Eu voltei à casa porque Margot estava morrendo. E porque eu não podia deixá-la morrer sozinha, Isabel. Ela me salvou, do frio, das ruas, dos abusos...
– Como assim? - Perguntou.
– Eu nunca te contei minha história.
– Pois conte. – Pediu. Sentei em uma raiz da árvore e respirei fundo.
– Eu nasci em uma vila pobre próxima a Madrid. Mi padre era un hombre... Ele me machucava, sempre me machucou, a mim e a mi mamá. Ela ficou embarazada, mas morreu quando Santiago, mi hermano, nasceu. A última coisa que minha mãe pediu, foi para que cuidasse dele e eu o fiz, mas, después qué mamá morreu, meu pai... ele só tinha a mim para abusar e descontar suas raivas. Eu não aguentei e quando Santiago completou sete años eu fugi dali.
Isabel não sentou ao meu lado, nem me deu sua mão quando senti os fantasmas do meu passado me assombrarem, ela continuou imóvel, ouvindo tudo em silêncio, era fria e quase não a reconheci, mas continuei.
– Eu cheguei até Madrid e vivi lá por dois anos. Nas ruas. Eu não tinha o que comer ou beber, os invernos eram frios e dolorosos e os abusos continuaram. Outros homens me machucavam, outros com o mesmo olhar cruel, até que Margot me encontrou. Ela me salvou de um deles. Me deu casa, comida, uma cama quente e amor. Ela nunca me deixou sozinha e sempre me deu colo nas noites difíceis. Ela era uma mãe incrível e que pena eu perceber isso tarde demais. - Chorei e sorri triste. - Essa é a minha história, Baronesa. - Encolhi os ombros e enxuguei as lágrimas. - Talvez não faça diferença para ti saber disso, mas Margot precisava de mim e eu simplesmente não podia dizer que não.
– Eu sinto muito. – Se limitou a dizer. – Por tudo, principalmente por Margot.
Sorri triste, enxuguei as lágrimas e caminhei até ela.
– Me deixa te fazer feliz? – Pedi – Me dá uma chance para eu provar o quanto te quiero, Isabel...
– Carmen...
– Casa conmigo? – Perguntei. – Se quiser, me ajoelho em frente ao Paço Imperial e grito para a capital inteira ouvir o quanto yo te amo. Yo só... Eu só quiero passar toda mi vida contigo y Rafael.
Vi um sorriso de canto de boca surgir em seus lábios, mas logo ela suspirou, fechou os olhos com força e quando os abriu novamente só havia raiva e mágoa.
– Não! – Respondeu seca. - Se veio aqui para isso, já tem a tua resposta. – Foi fria. – Não tem mais espaço para ti na minha vida e muito menos na vida do MEU filho.
Se ela tivesse me apunhalado, não teria doído tanto. Chorei sem disfarçar, mesmo se quisesse não conseguiria. E diferente de mim, Isabel se manteve na mesma postura séria.
– Pode ir embora, Carmen. Não tenho mais tempo para perder contigo. – Desde que cheguei aqui ela não encarou meus olhos. – Meu filho e minha noiva estão a minha espera.
Ela queria me machucar e conseguiu. Entendi que Isabel sempre faria comigo o que ela quisesse. Respirei fundo e enxuguei as lágrimas que caíam. Ela virou as costas para sair, mas eu não deixei.
– Na verdade, eu não vim aqui para isso, pero yo tenía que tentar una última vez.
– Veio para que então? – Foi ríspida.
– Para me despedir, Isabel. – Me olhou surpresa. Foi a primeira vez que nossos olhares se cruzaram. – Queria ver usted una última vez.
Sorri triste em meio às lágrimas e vi seus olhos se encherem de lágrimas também.
– Vai fugir de novo? – Perguntou.
– Vou... – Tentei enxugar as lágrimas. – Dessa vez, para o mais longe possível daqui.
Riu desacreditada e virou as costas para mim.
– Eu queria ver Rafael uma última vez também. Pegá-lo em meus braços. Mas sei que não permitirá isso...
– Não, não permitirei mesmo! – Sua voz saiu embargada.
– Isabel... – Caminhei até ela e segurei sua mão, ela estava de costas, mas não recuou ao meu toque. – Quiero que sepas, antes de irme, que... no habrá un solo día en el que no piense en ti y en nuestro hijo.
– É tarde demais. – Sussurrou.
– Yo sé. – Deixei um carinho em sua mão. – Eu te amo, Baronesa! Te amei no dia em que te conheci e amarei por toda a eternidade y más alla de la eternidad. – Sorri triste lembrando do nosso casamento secreto.
– Cala a boca! – Sussurrou e apertou minha mão delicadamente. Ela estava chorando.
Soltei sua mão e tirei o anel que ela me deu.
– Isso deveria pertencer à mulher que ama, pero usted me deu um dia e não devolverei porque ele faz parte da nossa história. – Coloquei o anel em sua mão e ela entrelaçou nossos dedos. – Por este motivo eu quero dê isso ao nuestro hijo. Eu não sei se algum dia contará à ele da minha existência, mas... Mas enquanto ele usar isso, mesmo sem saber, terá um pedaço de mim. Um símbolo de todo o meu amor por ele... e por ti.
– Eu te odeio, Carmen! – Virou e me olhou triste. Chorava muito. Sorri triste para ela. – Para onde irá?
– Isso não importa.
– ME DIGA! – Gritou.
– Fará diferença? – Me aproximei dela.
– Carmen... – Ela não tinha a resposta para me dar.
– Me prometa uma coisa? – Toquei seu rosto e ela fechou os olhos com o toque. – Prometa?
Concordou com a cabeça ainda de olhos fechados.
– Que cuidará e amará Rafael. Que o ensinará a ser gentil como tu. Que o criará com amor como teu pai fez? – Ela novamente concordou em silêncio.
Me aproximei mais dela ficando a centímetros de seu corpo.
– Seja feliz, Mi Cariño. – Encostei minha testa em seu queixo e chorei. Olhei uma última vez em seus olhos. – Seja feliz por nós duas.
Porque eu tinha certeza absoluta de que nunca mais seria.
Fiquei na ponta dos pés e deixei um beijo no canto da boca de Isabel. Era para sempre. Sabia que seria a última vez. Ela não se moveu, não me abraçou, não retribuiu, não suspirou. Ficou imóvel. Me afastei devagar e sorri para ela. Segurei sua mão.
– Eu já lhe disse isso uma vez, mas direi de novo. Mesmo que eu viva para toda a eternidade, jamais esquecerei de cada segundo que passei contigo. Adiós, meu amor.
Soltei sua mão devagar e corri dali o mais rápido que pude. Ela não veio atrás de mim e eu não voltei. Não adiantaria mais. Isabel deixou de me amar, era nítido. Lucília tinha razão outra vez, ela estava apaixonada pela noiva. E eu? Eu senti que estava prestes a morrer.
Quando cheguei ao bordel já era noite. O navio partiria pela manhã, junto ao sol.
Sofia veio ao meu quarto e mais uma vez se despediu de mim, prometi que escreveria assim que chegasse e pedi que ela sempre me dissesse como estavam as coisas aqui. Deixei claro que ela poderia ir à Londres quando quisesse e ela chorou abraçada em mim. Eu também sentiria saudades dela.
Deixei um bilhete para Leopold com ela, pedi que entregasse, não gostava de despedidas, então, ela era a única que sabia da minha partida pela manhã.
Entrei no meu antigo quarto, outra vez, agarrei a manta de Rafael, apertei contra meu peito e chorei a noite inteira agarrada nela. Como eu sentia falta do meu filho. Seu cheirinho já não estava mais no tecido e percebi que jamais sentiria. Nunca mais ouviria seu chorinho manhoso. Não veria seus primeiros passos, nem suas traquinagens de menino.
Ele era só um bebê quando fui embora. Mas eu não tinha escolha. Margot precisava de mim e eu não podia negar isso a ela. Fazia cinco meses que eu não o via. Devia estar um menino lindo e enorme. Nem me reconheceria, Héloïse era sua mãe junto à Isabel agora e pensar nisso só me fez chorar mais.
Ainda estava escuro quando pedi às empregadas para levarem as malas à carruagem. Dei mais uma boa e última olhada para o quarto. Me lembrei de Isabel e todos os momentos que passamos aqui. Suspirei com pesar. Fechei a porta e fui embora. Não precisei me despedir do quarto de Margot, ela estava comigo e sempre que precisava dela, tocava o camafeu em meu peito. Pensei que pediria à Leopold para levar o quadro dela para minha nova casa assim que ele voltasse a Inglaterra, escreveria isso assim que chegasse lá. Deixei uma chave de cada casa para ele, precisava que continuasse com a manutenção e ele se propôs a fazer de bom grado. Era um homem bom.
Cheguei no Porto ainda era noite. O navio já estava atracado e logo todas as minhas malas estavam nele. Perto da entrada havia um banco que ficava de frente para a estrada principal. Sentei ali e esperei às horas passarem.
O sol nasceu lindo no horizonte, um dia azul. As pessoas sorriam à minha volta. Eu admirava a estrada ansiosa. Ainda estava assim quando o marinheiro gritou para que embarcássemos. Pessoas de todas as idades entraram sorridentes no grande navio que partiria para a Europa. Eu fui a última. Antes de entrar dei uma olhada atenta a todas as carruagens que passavam. Procurei a dela mais uma última vez na esperança de que ela viesse me impedir, mas não veio.
Antes de embarcar respirei fundo. Queria gravar o cheiro, a vista, tudo.
– Vamos, Madame? – O marinheiro perguntou gentilmente e me deu a mão para subir no navio.
Concordei com a cabeça e um sorriso amarelo. Olhei mais uma vez para ter a certeza de que estava sozinha e senti meu coração parar antes de entrar no navio. Era o fim. O fim da cortesã. O fim da mulher apaixonada. O fim da mãe. O fim do amor. O meu fim.
Subi no navio aceitando a gentileza do rapaz e ele partiu assim que meus pés pisaram no convés. Enquanto se afastava, eu me mantinha na borda da embarcação. Não vi sua carruagem correndo para mim como nos livros de romance. Ela não veio. Quis morrer, mas me dei conta de que já estava morta. Morri assim que meus pés alcançaram as escadas do navio.
Senti que se algum dia, por acaso, Isabel quisesse me procurar, era ali que ela me encontraria. Ainda sentada no banco do porto esperando que viesse me impedir. Chorei com o pensamento, com a saudade, com a culpa e com a certeza de que não existiria alegria sem ela e, principalmente, sem o meu filho.
Sequei as lágrimas que insistiam em cair pela minha vida que acabou antes mesmo de meu coração parar de bater.
Quando saí da borda do navio já não se enxergava o porto do Rio de Janeiro. Desci até o meu quarto e quando sentei na cama que seria minha por, pelo menos, um mês, não sentia mais nada. Não tinha mais lágrimas para chorar, nem alegria para sorrir. Não existiam motivos para reclamar ou elogiar. Não tinha nada. Nada. Eu não era mais nada.
Era o fim.
"Mas se eu tivesse ficado, teria sido diferente? Melhor interromper o processo em meio: quando se conhece o fim, quando se sabe que doerá muito mais — por que ir em frente? Não há sentido: melhor escapar deixando uma lembrança qualquer, lenço esquecido numa gaveta, camisa jogada na cadeira, uma fotografia — qualquer coisa que depois de muito tempo a gente possa olhar e sorrir, mesmo sem saber por quê. Melhor do que não sobrar nada, e que esse nada seja áspero como um tempo perdido."
– Caio Fernando Abreu.
Fim do capítulo
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