Capitulo 10
A Última Rosa -- Capítulo 10
Valquíria deixou-se cair na confortável poltrona do escritório.
-- Vê se trata a dona Marcela com mais jeitinho. Não quero que ela tenha motivos para não contratá-la. Não me vejo trabalhando aqui sem você.
-- Cagona! Não tenho filha dessa idade -- o tom dela era de divertimento -- Você vai ficar e alimentar muito bem a dona Marcela e a garota dela.
-- Nós duas vamos ficar -- disse Valquiria, dando um tapinha na perna dela -- Para isso, peço que seja bem boazinha com a esposa dela também.
Michelle recostou-se no sofá e a fitou.
-- Já discutimos esse assunto, Valquíria! Não me encha mais o saco.
-- Francamente, Michelle. Você é muito chata. Só estou brincando.
Michelle inclinou de leve a cabeça.
-- Porque fica batendo o tempo todo na mesma tecla? -- ela se levantou e ficou ao lado da janela.
-- Posso fazer uma pergunta? -- Valquíria inclinou-se para a frente, cheia de receios.
-- Pode perguntar. Perguntar não ofende.
-- Você é lésbica?
-- Sou bissexual -- Michelle afastou-se da janela e começou a caminhar pela sala com passos lentos, observando a mobília.
-- Mas, como você faz essa escolha, Michelle?
-- Ah, eu caminho pela rua recolhendo pessoas interessantes. Coloco os homens em uma bolsa e as mulheres em outra. No final do dia eu escolho qual das bolsas eu levo para casa.
-- Idiota! -- xingou Valquíria.
-- Sem noção! -- replicou Michelle -- Depende do que eu encontrar em cada pessoa. Já conheci mulheres incríveis e homens maravilhosos! Para mim pouco importa se são homens, mulheres. Importa se é ou não uma pessoa interessante, se me provoca curiosidade, se me diverte, se o cheiro é bom, se o beijo é gostoso.
-- E a dona Marcela, o que você acha dela?
Parecia estranho, mas a pergunta não a irritou.
-- Ela é uma linda mulher. Para mim, apenas isso, com certeza ela não faz o meu tipo -- disse, querendo mudar de assunto, mas a amiga insistiu.
-- Você já ficou com muitas mulheres?
Michelle respirou fundo e respondeu com calma:
-- Ficar, ficar, fiquei com várias. Sério mesmo, apenas duas. A primeira não cuidei como deveria ter cuidado por isso a perdi. A segunda namorei tentando esquecer a primeira, mas foi pura ilusão.
-- Então, foi amor!
Ela apenas assentiu, sem encará-la.
-- Ela era tão linda, mas era muito mais do que isso -- ela finalmente olhou para Valquíria -- Ela era meiga, sincera, carinhosa e, inteligente -- Michelle deitou a cabeça sobre o ombro da amiga, para que ela afagasse seus cabelos com ternura e compreensão -- Sim, eu a amei -- confessou, por fim -- Oh, Deus, eu a amei tanto! -- ela acrescentou, quase sem voz, com a sinceridade brusca de uma amiga íntima.
Michelle se recompôs tomando consciência de que estava sendo importuna.
-- Desculpa! Estou te enchendo com esse papo de Maria do bairro.
Valquíria passou os braços pelos ombros de Michelle e acalentou-a.
-- De modo algum! Eu gostei!
-- Gostou? Não... você tolerou o meu comportamento, apenas isso?
-- Não -- a cozinheira sorriu -- Eu gostei de verdade. Me senti como uma velha amiga.
Michelle surpreendeu-se com o olhar de gratidão que Valquíria lhe dirigiu.
-- Sua bobinha -- murmurou Michelle, sorrindo.
Curiosa, Valquíria decidiu esclarecer uma de suas grandes inquietações.
-- Como ela era? Digo, fisicamente.
-- Ela parecia um anjo, de cabelos prateados e olhos verdes. Era frágil, delicada, impossível não se apaixonar por ela.
-- É, talvez por isso você não tenha encontrado uma outra garota. Não é fácil substituir um anjo.
Ansiosa por mudar de assunto, Michelle se desvencilhou de Valquíria e dirigiu-se a outra parte do escritório onde havia uma seleção de fotos de família.
-- Estranho que não tenha nenhuma foto da Marcela e da sua esposa -- ela pegou um dos porta-retratos e olhou vagarosamente a foto de pessoas que pareciam os pais de Marcela.
Valquíria a fitou com ar pensativo por alguns instantes.
-- Deve ser por que ela não aceita a sua atual situação.
-- Será que alguém aceita? Eu dificilmente aceitaria -- Michelle devolveu o porta-retratos ao seu lugar -- Mas, a vida segue. Tem que seguir -- baixando a voz, continuou: -- Confesso que estou muito curiosa para saber o que aconteceu. Como foi o acidente.
Valquíria franziu a testa.
-- Mais cedo ou mais tarde vamos descobrir. Ela é muito conhecida, todos na cidade sabem do acidente e deve ter língua coçando para contar.
Em seguida, o barulho da porta se abrindo as fez se virarem.
Por alguns segundos, foram tomadas por uma sensação estranha, até que Marcela se pronunciou.
-- Bom dia! Sinto muito pelo atraso -- desculpou-se quando se aproximou delas.
-- Tudo bem -- elas responderam em coro.
-- Sentem-se, por favor -- disse apontando para o sofá. Ela esperou as duas se acomodarem para enfim, voltar a falar -- Não tenho muita coisa a dizer a você Valquíria. A culinária nunca foi o meu forte. Mas, vi em seu currículo que trabalhou no Grande Hotel Berson.
-- Sim, trabalhei -- ela confirmou com entusiasmo -- Foi uma experiência maravilhosa.
-- Fazem dois anos que me hospedei no Grande Hotel Berson. O lugar é realmente incrível e os pratos deliciosos.
-- O cheff Valadares, um mestre. Ninguém prepara um Contecchino Italiano tão bem como ele.
-- Acredito que não provei um prato mais saboroso em minha vida -- Marcela parecia com vontade de conversar -- E você aprendeu a prepará-lo à sua maneira?
-- Aprendi e, modéstia a parte, é de comer rezando.
-- Ótimo -- ela disse, olhando-a satisfeita -- Minha esposa tem algumas restrições alimentares e eu uma dieta especial, mas nada exagerado. Orientei Vitória a dar todo o suporte que precisar.
Valquíria acenou com a cabeça.
-- Hoje mesmo assumo o meu posto.
-- Ótimo -- Marcela voltou sua atenção para a secretária. Olhos escuros encontraram os castanhos de Michelle. Os cabelos negros estavam presos, o rosto aristocrático e a boca larga e arrogante formava uma linha dura -- Veio de tão longe para trabalhar nesse fim do mundo. Está fugindo de algo? Ou alguém?
Michelle gelou dos pés à cabeça. Marcela era uma bruxa assustadora, mas parecia não ter a habilidade de ler seus pensamentos, pois se tivesse, ela já teria sido expulsa daquela casa à ponta pés. Michelle engoliu em seco e abriu a boca para falar, mas não conseguiu emitir nenhuma palavra.
-- Então? -- insistiu Marcela, curiosa pela resposta da moça. Ela olhava Michelle dos pés à cabeça. As pernas longas da moça estavam cruzadas, com um dos pés balançando para cima e para baixo; as mãos sem aliança e de unhas longas esmaltadas estavam cruzadas no colo. Ela é muito bonita, pensou. Toda ela é muito bonita. Os cabelos avermelhados estavam puxados para trás, presos no alto da cabeça. Sua postura a fazia parecer uma dessas modelos de capa das melhores revistas. Sofisticada e frágil -- Hills é uma bela cidade, mas bem diferente do agito de uma metrópole.
Apesar do nervosismo que lhe causava o olhar atento da mulher sobre ela, Michelle fechou os olhos e respirou fundo antes de responder.
-- Vou ser sincera, não sai da minha cidade com a intenção de vir para Hills. Foi Valquiria quem me convenceu -- Michelle foi sincera quando acrescentou: -- E ao chegar à cidade concluí que fiz a escolha certa. Esse lugar é lindo, essa casa é um sonho e trabalhar aqui vai ser maravilhoso.
As feições de Marcela apresentavam-se indefinidas, no entanto Michelle sentiu que ela ficou mais receptiva. Os comentários elogiosos sobre a cidade e a casa despertaram o interesse dela.
-- Meu bisavô, Nicolau Parker, valeu-se de sua herança para construir essa magnífica casa no alto do morro, de onde se tem essa maravilhosa vista do Oceano. Ele era um homem muito sensível e de bom gosto. Criava seus próprios perfumes em uma saleta nos fundos da casa, tudo muito precário, mas com resultado surpreendente.
Ele mesmo plantava, colhia e fabricava. Um processo longo e complicado -- Marcela ajeitou-se melhor em sua cadeira de rodas e prosseguiu: -- Depois de sua morte, meu avô e meus tios, tinham assumido o peso da herança familiar com o firme propósito de profissionalizar a criação de perfumes e crescer o patrimônio que seu pai havia deixado. Minha família possui raízes profundas e uma larga tradição, que se tem mantido unida ao longo dos anos e durante gerações.
A empresa cresceu e com ela o pequeno vale. Hoje, a Parker mantém parcerias com comunidades de agricultores da região. Quando a matéria-prima chega à fábrica da empresa, ela é manipulada e cria-se o perfume.
Michelle se deteve e inclinou a cabeça, escutando com atenção. Marcela sentia um forte apego pela tradição familiar, e irradiava orgulho e respeito. Tratava-se realmente de uma família fascinante, com um passado glorioso e um futuro muito promissor.
Marcela suspirou abatida e continuou.
-- Eu comando a Parker agora. Meu pai morreu e meu irmão se casou e foi embora. A empresa passou a ser responsabilidade minha há algum tempo -- ela a encarou -- Mesmo depois do acidente eu continuo sendo a presidente da empresa. Porém, minha esposa me representa na maioria das vezes -- ela deu um meio sorriso -- Por isso, preciso de uma secretária, minha esposa é a perfumista chefe da empresa e não quer acumular funções. Ela ama criar perfumes e a presidência ocupa demais o seu tempo.
-- Entendo -- Michelle realmente entendia. Devia ser muito difícil para ela comandar uma empresa presa a uma cadeira de rodas.
Marcela girou a cadeira e foi para trás de sua mesa.
-- Hoje à tarde quero que façam um passeio pela região. É importante que conheçam o lugar aonde vão trabalhar.
Michelle e Valquíria concordaram, satisfeitas.
-- Espero muito trabalho dos meus empregados. Se vocês conseguirem fazer isso, nos daremos muito bem.
Jessica estava saindo do elevador quando ouviu a voz inconfundível da tia Inês chamando seu nome. Então, se virou sorrindo.
-- Ai, ai, ai, tia -- ela cruzou os braços -- Quando dona Inês me procura é para pedir alguma coisa.
A senhora sorriu.
-- Sobrinha desnaturada -- comentou, fingindo estar zangada -- Porém, você tem razão. Eu vim pedir um favor.
-- Eu sabia -- Jessica gargalhou, beijando o topo de sua cabeça -- Fala tia, sabe que não consigo negar nada para a senhora. Não é mesmo?
Tia Inês tocou-lhe o ombro.
-- Você sabe muito bem que tudo que peço não é para mim e sim para pessoas que realmente precisam de ajuda.
-- Eu sei tia -- concordou -- Vamos sair daqui -- Jessica pegou-a gentilmente pelo braço e conduziu-a para fora do prédio -- Quem está precisando de ajuda dessa vez?
-- Um rapaz me procurou. Ele precisa de emprego e um lugar para morar -- ao ver que Jessica levantou as sobrancelhas para ela, Ines disfarçou com um sorriso.
-- É mesmo? -- Jessica enfiou as mãos nos bolsos, olhando fixo para o rosto da tia -- A senhora já parou para pensar quantas pessoas não têm trabalho e um lugar para morar?
Inês respirou fundo antes de responder:
-- O pai o expulsou de casa.
-- E porque o pai o expulsou?
A expressão da senhora ficou triste.
-- Ele é gay e o pai o ameaçou de morte. Agora o pobre coitado não tem para onde ir. Pensei que você...
-- Que eu?
-- Pensei que talvez, você pudesse contratá-lo para trabalhar em sua casa. Pode ser como mordomo, motorista, jardineiro, sei lá, qualquer coisa.
Foi a vez de Jessica respirar fundo.
-- A Marcela vai me matar?
-- Mata nada! -- seus olhos brilharam com indisfarçável desdém -- É só você se impor pelo menos uma vez na vida.
-- As coisas não são tão fáceis assim tia -- Jessica coçou a cabeça como se estivesse a tentar calcular o que ia fazer -- Tudo bem -- disse, enfim -- Prometo que vou conversar com a Marcela e amanhã mesmo dou a resposta.
Já eram cinco da tarde, mas o sol ainda esquentava com força. Quando chegaram à cidade, o motorista as advertiu de que a região era muito quente, por isso, era bom que cobrissem a cabeça e se mantivessem o maior tempo possível sob a sombra. Michelle, de pele branca e delicada, tinha que proteger-se com muito mais rigor que a morena Valquíria.
A cidade de Hills é completamente diferente de sua barulhenta cidade natal. Hills brilha sob a radiante luz do sol, as flores possuem cores vivas, livre da poluição da grande metrópole. As ruas são impecavelmente bem cuidadas e as pessoas caminhando tranquilamente, sem pressa.
-- Meu Deus, esse calor é asfixiante -- reclamou Valquíria.
-- Está de assar -- comentou Michelle, se abanando com a mão -- Vitória disse que é comum, ao fim da tarde, cair uma chuvinha que refresca bastante.
-- Espero que sim.
Michelle sempre morou na cidade grande, mas a perspectiva de viver em harmonia com a natureza a deixava entusiasmada, inclusive tinha certeza de que se adaptaria muito facilmente a esse estilo de vida.
As amigas continuaram o tranquilo passeio pela cidade praiana. Michelle sentia-se livre pela primeira vez em muito tempo, longe da pressão do trabalho no banco, longe dos comentários maldosos dos colegas.
Sorriu contente, sentia-se como se estivesse começando uma nova vida embora tivesse que trabalhar para uma pessoa tão mau humorada.
Com este pensamento sólido em sua cabeça, Michelle caminhava lado a lado com Valquíria pelo centro comercial da cidade de Hills. A amiga parou diante de uma vitrine e apontou para uma peça em promoção.
-- Menina, olha só que biquíni maravilhoso!
Apertando os lábios, um contra o outro, Michelle balançou a cabeça, concordando.
-- É lindo, mas acho que não tenho coragem de usar algo tão pequeno -- Michelle inclinou a cabeça e os seus olhos dilataram-se ao ver dois policiais caminhando pela calçada com passos lentos e as mãos cruzadas atrás das costas.
Fim do capítulo
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HelOliveira
Em: 15/12/2020
Eita que Michelle vai ter aprender a controlar para ninguém perceber, se a Marcela desconfiar de algo ela tá ferrada..
Ainda continuo focada no encontro
Bjos
Resposta do autor:
Olá
Coitada, Michelle é muito certinha, honesta. Essa situação é desesperadora para ela.
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Marta Andrade dos Santos
Em: 15/12/2020
Corre Michelle kkkk
Resposta do autor:
Kkkk... verdade.
Beijos.
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