Meus pedaços por Bastiat
Uno los dos
Isabel
Olhei mais uma vez para o relógio no painel do meu carro como se isso fizesse com que os minutos não passem. A única certeza de que ele me dá é a de que estou realmente atrasada.
Péssima ideia passar no Arte antes de ir para mais um dia de gravação. Não estar em alguma local no horário marcado me irrita profundamente. Tudo isso por quê? Porque um mês se passou do começo das gravações e descobri que quanto menos tempo passo na emissora, melhor para mim. Por isso chego no horário e saio assim que termina. Mas hoje eu exagerei e errei o cálculo.
No primeiro farol vermelho, respirei fundo e procurei manter um pouco da paciência que ainda me resta. Lembrei que a Nina me ensinou que o celular conecta automaticamente ao aplicativo de música quando ligo o rádio. Ficar nervosa não vai me fazer chegar no horário, mas ouvir música pode me fazer chegar com um humor melhor.
Dei play na primeira lista que apareceu na tela do aplicativo. Um som de guitarra e gritos da plateia fez-se ouvir. O farol abriu e voltei a dirigir com a voz de Alejandro Galante, vocalista da banda argentina Miranda!, ao fundo. ‘Uno los Dos' é o nome da canção. Recordo-me de que nunca gostei de ouvir essa música pois achava a letra melancólica. Canções de amores tristes pararam de fazer sentido depois que conheci Helena Carvalho.
"Déjalo así mi amor (Deixa assim, amor)
No quiero mas excusas por favor (Não quero mais desculpas, por favor)..."
- Dios... esta canción no... - reclamei.
"...Y es que tu (E é você)
No eras tu sin mi no (Não era você sem mim, não)
No eras nada (Você não era nada)
Ni yo (Nem eu)
Existía sin tu compañía (Existia sem sua companhia)"
Corazón (Coração)
Dame algo de razón (Dei-me alguma razão)
Hemos perdido personalidad (Perdemos nossa personalidade)
En esta relación (Nessa relação)"
Bem, agora eu posso falar que a letra faz todo sentido. Parece até um diálogo com as minhas mais profundas dores.
Não pude deixar de comparar em como eu e Helena parecíamos uma pessoa só para quem nos via. Parece até essencial para a convivência, combinávamos em nossos gostos e nossas rotinas, e quando não combinávamos, confesso que cedia às suas vontades, mas hoje percebo que nos perdemos como indivíduos. Acomodei-me tanto que não me dei conta de que dentro de casa a pessoa pode ser uma, mas longe outra.
A voz chorosa do cantor fez uma lágrima rolar pelo meu rosto ao cantar o refrão:
"...Esta noche te lloraré tanto (Esta noite chorarei tanto)
Que te irás de mí (Que você vai me deixar)
Limpiaré con lágrimas la sangre (Limparei com lágrimas de sangue)
Que ha corrido aquí (Que correu aqui)
El cd que habíamos compilado (O CD que havíamos compilado)
Para hacer el amor (Para fazer amor)
Ayer fue mi disco favorito (Ontem foi o meu disco favorito)
Y hoy es lo mas triste que oí (E hoje é o mais triste que ouvi)"
Ir para o Atuando, embora no começo não me agradasse, e ver a Helena, era o que me motivava, além de ser um dos momentos favoritos do dia. Hoje é o mais triste.
A letra veio em minha cabeça de maneira automática e cantei:
- Hoy por primera vez
Yo te confesaré
Que me cuesta dejarnos
Y que no sé
En cuanto tiempo me acostumbraré
(Hoje pela primeira vez
Vou te confessar
Que me custa deixar-te
E eu não sei
Quanto tempo vou demorar para me acostumar)
Usei a letra para confessar o que exatamente tem acontecido comigo nos últimos dias. É difícil se dar conta de que todo o meu esforço no último ano pode ter sido em vão. Eu definitivamente não a esqueci, apenas me acostumei com a distância misturada com mágoa.
De uma coisa eu não posso me queixar: não é tão triste vê-la quase todos os dias como imaginei. Não queria, mas algo dentro de mim pede por isso. O meu coração pede essas migalhas que a minha razão anda permitindo dar.
"Nunca fui (Nunca fui)
Dependiente de mí (Dependente de mim)
Más bien lo fui de tí (Porém, eu era de você)..."
Enxuguei as lágrimas que começavam a cair com mais volume. Tenho andado muito chorona. Não aquele de soluçar, nem me entrego aos prantos de desespero, mas fico triste por saber que a Helena ocupou grande parte de mim e hoje tudo mudou. Fui jogada ao fundo do poço aos poucos pela pessoa que mais amei na vida.
- Yo te juro que no (Eu te juro que não)
No te guardo rencor (Não guardo rancor)
Sólo quiero volver (Só quero voltar)
A ser ese chico que te presenté (A ser esse garoto que te apresentei)
(Eu te juro que não
Não guardo rancor
Só quero voltar
A ser o garoto que te apresentei)
Cantei em sussurro essa parte. Tenho me feito perguntas como: eu ainda mantenho alguma essência daquela Isabel antes da Helena? Cedi demais mesmo me ferindo? Moldei-me para caber em algo que nunca pensei em me encaixar? Deixei que a vaidade me tomasse? Quem sou hoje? Um retalho de tudo o que não queria viver nos últimos anos? Ou sou justamente o reflexo disso?
Talvez eu realmente tenha sido a errada da história.
"Lo mas triste que oí (O que triste que ouvi)
Fue tu adiós al partir (Foi seu adeus ao partir)
Y con esta canción (E com essa música)
Me desprendo de tí (Me desprendo de ti)"
Para a minha sorte, o farol vermelho me permitiu desligar o rádio do carro antes de começar uma outra canção. Tenho que aprender a achar uma lista que só toque músicas alegres.
Ainda com as últimas palavras da música na cabeça, desejei que como em um passe de mágica eu me desprendesse da Helena também. Simples, rápido e indolor.
Parecia tão fácil há um pouco mais de um mês.
Desde o primeiro contato, no corredor que dá acesso aos camarins, senti o baque, o ar pesado que carregamos mesmo sem procurar por isso. Nós duas não sabíamos como agir, então fingimos que não houve troca de olhares e seguimos caminhos opostos.
Na gravação, de primeira nada saiu com naturalidade. A primeira vez em que ela se juntou a nós no palco, para fazer perguntas sobre a prova, a apresentadora ficou ao lado do Eduardo. Miriam, nossa diretora, a corrigiu imediatamente e, como de costume, pediu para que ela ficar ao meu lado. Não pude deixar de notar o seu incômodo. 10 horas de gravação e poucas palavras trocadas.
Fiquei sabendo que no mesmo dia a paulistana teve uma reunião com a Miriam e os produtores. Não tenho certeza se o assunto foi sobre a sua postura séria demais, mas no segundo dia ela voltou a ser sorridente.
Diferente da minha ex, procurei desde o início a minha naturalidade corriqueira do programa. Eu já entrava em um personagem com os participantes, nunca consegui ser cem por cento a minha pessoa. Exceto com ela próxima de mim, ali surgia a magia que encantavam os telespectadores, um casal em perfeita sintonia. Mais mentiras.
" - Sua cara me diz que não gostou - disse olhando nos meus olhos.
Não existiam câmeras, participantes, nossos amigos jurados, produtores, maquiadores. Eu e Helena entramos em nossa bolha. Foi um jeito que ela encontrou para me fazer ficar à vontade em um ambiente que não fez parte da minha vida até quatro meses atrás.
- Não... não é eso - tentei dizer.
- Não minta, Isa. Enquanto Gilberto falava o texto, sua cara não estava das melhores.
Abri um sorriso de quem tinha sido pega.
- É que mesmo para um texto tão intenso, ele exagerou. As personas costumam achar que para fazer drama é preciso caras e bocas, lágrimas e a voz embargar. Uma pausa com um olhar seria o suficiente.
Helena abriu um sorriso como quem concorda comigo. Não sei exatamente quanto tempo ficamos nos admirando, mas lembro-me como ela passou confiança para que eu usasse mais da minha opinião e esquecesse onde estou.
- Você concorda, Eduardo?
Quebramos o nosso contato para dar sequência a gravação.
- Sim. Para mim a Isabel resumiu o que foi essa cena exagerada - o jurado opinou..."
Quanto mais a audiência crescia e nossos nomes estavam pelas redes sociais, mais os patrocinadores exigiam de nossa imagem. Um erro, concluí.
No segundo e nas demais gravações, em frente às câmeras, eu e a baixinha conseguimos agir como boas profissionais que somos. Sem termos a antiga intimidade de toques e brincadeiras, conseguimos ao menos conversar durante a prova. As nossas costumeiras trocas de olhares para indicar a ela o que eu achei sobre uma atuação aconteceram pouquíssimas vezes. Ouvi que as pessoas sentem falta disso, não me importei. Todo mundo sabe do nosso término e que estou aqui somente para cumprir o contrato.
Nos bastidores, posso contar nos dedos de uma mão quantas vezes nos falamos. Das raras vezes, sempre com a presença de Eduardo e Maurício. Sem combinar, fizemos quase um código: onde eu estou, Helena não está. Onde Helena está, eu evito.
A única coisa que tem funcionado é a divisão das semanas com a Giovanna. Minha filha voltou a sorrir como antes e a sua tranquilidade com a nova situação me mostrou o quanto errei. A atriz até contratou a Nina para auxiliá-la com a Gi.
Tudo que refleti fez o tempo passar e logo entrei na portaria da emissora cumprimentando o porteiro. Outra mudança aconteceu no primeiro dia de volta ao trabalho, Helena não estacionou o seu automóvel na vaga de sempre. Pensei que tinha sido coincidência, mas nos outros dias foram a mesma coisa. Definitivamente, eu não sou a única a evitar os nossos encontros fora do estúdio.
Saí do meu carro e apertei o alarme para travá-lo.
- Bom dia, Isabel.
Não precisava nem olhar, o sotaque português já entregava de quem veio a saudação.
- Bom dia, Philipa. Tudo bem? - Sorri ao notar que ela fazia o mesmo.
- Tudo bem e você?
- Estoy bién - respondi. - Você não deveria estar se preparando para encarar o palco?
- A produção não te mandaste uma mensagem para que a gravação fosse adiada em uma hora e meia? Estou dentro do horário, não? Serás pegadinha?
Olhei para o meu celular e havia inúmeras mensagens no grupo com os produtores. Fiz uma busca rápida e a portuguesa está correta.
Então eu não estou atrasada? Ainda bem!
- Eu não li essa mensagem, Philipa. Você está certa, houve o adiamento.
Senti-me aliviada e a candidata continuou me olhando. Eu fiquei sem graça por notar seu olhar diferente. Não que eu tenha reparado apenas hoje, mas fora da gravação foi a primeira vez.
- Bem, yo tengo que ir, ainda preciso me maquiar, ver o look do dia e ficar apresentável para vocês - sorri por simpatia.
- Bobagem, Isabel. Eres linda de qualquer jeito. Não acho necessário que passes em lugar nenhum, pode ir direto para o estúdio.
O sol bateu em seu rosto, deixando-a ainda mais bonita. Os olhos verdes brilhantes percorreram o meu corpo. Eu engoli seco.
- Vamos - disse quando consegui reagir. - Temos tempo, mas se ficarmos de papo vamos nos atrasar - disse sem graça.
Caminhei lado a lado com a competidora pelo estacionamento e iniciamos uma conversa sobre a minha companhia de teatro.
Philipa desde a seleção se mostrou uma forte candidata. Seu desempenho até agora é excelente. Nascida na capital portuguesa, o pouco que sei sobre sua história de vida é que veio para o Brasil após terminar os seus estudos e aqui firmou-se. Bem parecida com a minha própria história.
Olhei de canto, é impossível não notar sua beleza, todos comentam pelos bastidores sobre a portuguesa de cabelos ruivos e sardas.
É claro que seus olhares para cima de mim não passam despercebidos. Maurício vive comentando que ela é mais uma pessoa que passa pelo Atuando e tem uma queda por mim.
Na primeira temporada, me incomodei quando soube que alguns tinham crush em mim. Demorei a entender que não era necessariamente um desejo de envolvimento. Depois comecei a achar graça e levar na brincadeira. Helena ficava louca de ciúmes, mas acabava tudo bem quando a gente conversava e se acertava.
Agora não existe mais Helena. Porém, isso não quer dizer que eu me envolveria com alguma participante. Primeiro que não seria profissional da minha parte, segundo que eu não estava a fim de me relacionar com ninguém.
Quando chegamos na entrada principal, dei de cara com a apresentadora que fazia uma dança engraçada com um dos homens que comandam as câmeras. Helena Carvalho e seu bom humor de sempre. Sorri involuntariamente pela cena.
- ... então nos vemos na prova, Isabel.
Notei que a garota se despedia de mim, enquanto a paulistana virada na nossa direção e nos olhava com seriedade.
- Boa sorte, Philipa. Atue bem - disse com gentileza.
A portuguesa sorriu e entrou na emissora após acenar com a mão para a Helena e o cameraman. Vi que a outra mãe da minha filha não acenou de volta e deu as costas para mim. Ela foi a próxima a entrar e eu fiquei sem entender. Nos outros dias, pelo menos um balançar de cabeça eu ganhei.
Fui direto para o meu camarim. Como eu não estava atrasada, comi uma fruta enquanto esperava a maquiadora.
Olhei para o pequeno mural que pendurei uma foto linda da minha filha. Antes Helena enchia o retângulo com nossas fotos, agora só tem a Gi como tentativa de senti-la mais perto de mim enquanto trabalho.
- Isabel, fico feliz que tenha chegado cedo, assim não fica aquela correria.
A maquiadora chegou e começou o seu trabalho, mal sabe ela que não sabia da mudança de horário. A correria que ela fala é pelo meu mais novo hábito de chegar em cima da hora. Logo veio a figurinista mostrar as roupas que eu usarei hoje.
Deixei que as meninas fizessem o trabalho com calma apenas para passar a uma hora e meia que cheguei mais cedo pela falta de atenção nas mensagens. Conversa vai, conversa vem, eu estou pronta e aprovo o resultado pelo espelho.
- Obrigada, meninas.
Recebi um aceno de ambas e mais uma vez fiquei sozinha. Sempre sozinha.
Peguei o celular e consegui adiantar a resposta para alguns e-mails profissionais, recusar alguns convites, declinar revistas pedindo entrevistas, responder aos fãs. Fiz tudo o que precisava até baterem na minha porta para avisar que a gravação está para começar.
Juntei-me aos outros jurados no estúdio que imita um pequeno teatro e cumprimentei cada um com abraços. Helena chegou logo em seguida sorrindo, posicionou-se em seu lugar e acenou com a cabeça para mim. Seu gesto soou como um acordo para esquecer o episódio da entrada e darmos o nosso melhor para o programa.
Os últimos acertos foram dados pela diretora e os participantes entraram já vestidos para a gravação. Olhei para cada um até ouvir a voz aveludada da apresentadora para apresentação de hoje:
- No episódio de hoje teremos a encenação de uma das obras mais famosas de Nelson Rodrigues, "Vestido de Noiva". Apresentada pela primeira vez em 1943 e com algumas adaptações no roteiro, o desafio de nossos atores será dar vida à duas personagens, Alaíde e Madame Clessi. Alaíde, uma moça pronta para o casamento. Madame Clessi, uma cafetina assassinada pelo namorado. Embarque com a gente nessa peça dividida em três atos: alucinação, realidade e memória. Já adianto que não será nada fácil trazer os complexos psicológicos que exigirá. Quem se sairá melhor? Quem será eliminado no final? Fique com a gente que espetáculo já vai começar.
É admirável como Helena se comunica bem. Difícil não a olhar até a última palavra do roteiro sair da sua boca.
Acompanhei com atenção cada um dos participantes. Fiquei feliz ao perceber que os sete primeiros que passaram deram tons diferentes às personagens. Detesto quando ficam com medo e não se entregam.
Me remexi na cadeira quando foi a vez da Philipa. Eu e os meninos já concordamos que ela é uma das melhores, sempre eleva o nível da competição quando é o seu momento.
Nas primeiras frases ditas, já entendi o tom que ela daria a sua versão. Cada minuto estava sendo muito bem aproveitado, o que é importante no programa. Cada participante tem exatos 30 minutos para a sua apresentação, exceto quando fazem em grupo. Logo, errar em algum momento desses minutos ou não se entregar da mesma forma, é um caminho sem volta para a eliminação. Já vi gente boa, mas que não absorvia a pressão.
- Puta que pariu! - Disse baixo e fechando os olhos.
Um participante derrubou o tripé de um refletor, o que fez um barulho estrondoso.
Quando tive coragem de olhar o estrago, vi a portuguesa paralisada. Restou um silêncio absoluto no estúdio.
- Philipa - chamei a sua atenção sem som. - Não para. Vamos!
Prontamente a ruiva continuou de onde parou como se não tivesse sido interrompida. Parece até com mais vontade de se provar.
Acabei sorrindo pela sua força de vontade. É bom ter candidatos fortes e que se virem.
Ao fim de sua atuação, vi um sorriso brotar em seu rosto ao olhar o colega que derrubou o tripé. Competitiva.
É bom ver pessoas correndo atrás dos seus sonhos e fazer parte disso. De todos os males que o programa trouxe, não passa perto da gratidão que tenho ao ver tantos talentos e cada vez mais abrir portas para eles.
Com a apresentação da portuguesa, chegamos a metades dos participantes. Sinal de que é hora de avaliar os que já atuaram e falar algo sobre eles. É a hora que a Helena vem para perto de nós e faz as suas perguntas.
Agimos no automático, ela me conhece o suficiente para saber de quem eu gostei. Perguntas feitas, o momento de dar a nossa opinião para os atores chegou e ela voltou ao seu posto de apresentadora.
- Muito bem, chegamos ao fim das apresentações . Parabéns a todos, foi incrível, eu estou toda arrepiada...
A apresentadora anunciou que nós jurados íamos nos reunir para escolher os melhores do dia e eliminar um. Como sempre, minha opinião já está formada. Com algumas discussões, fizemos as escolhas.
Um bom, um ruim. Outro bom e outro não tão bom. Chegou a minha vez de chamar uma que foi bem.
- Philipa, um passo para frente, por favor.
A portuguesa olhou para nós três um tanto receosa. O acidente havia a abalado.
- Que foi? Está insegura? Nunca te vi tan nervosa - questionei olhando para ela.
- Não é nada, Isabel. Talvez a tensão do momento - tentou sorrir.
- Hum... entendo. Você não precisa se preocupar. Aliás, pelo sorriso que eu te vi dar ao final da apresentação, sabe que foi bién. Na minha opinião, por enquanto, você foi a que melhor deu vida à duas personagens tan distintas. Meus parabéns.
- Obrigada, Isabel. Já disse e repito: tu és a minha maior inspiração e se vou bem é porque tenho em quem me espelhar - passou confiança e jogou um charme.
Olhei para baixo contendo o sorriso. Quando ergui a cabeça, sabia que era hora de provocar a competição entre os participantes.
- Um refletor caiu, sí?! O que se passou pela sua cabeça na hora?
- Confesso que naquele preciso momento eu fiquei sem reação. Não sabia se continuava, se voltaríamos a gravar do começo. A dúvida me paralisou.
- Só a dúvida? - Indaguei.
- Sim, somente. Eu queria muito continuar, tanto que quando me disseste para continuar, logo me concentrei de novo. Acho que seria prejudicada se começasse de novo.
- Uma bela atriz de teatro - sorri para ela. - Dá para ver nitidamente que o palco corre pelas suas veias - repeti a frase que já disse em outros temporadas.
- Ai que alívio - a portuguesa respirou fundo e seus olhos brilharam. - Obrigada. Muito obrigada. Não sabes como um elogio desses me faz feliz.
Achei graça do seu jeito de falar.
- Você acha que o seu colega fez isso de propósito? - Provoquei.
Esperei que Philipa respondesse, mas quem o fez foi a Helena do seu pequeno palco:
- Claro que não, Isabel. Acidentes acontecem.
Olhei para a minha ex que estava com um rosto sério e de braços cruzados.
- Sim, pode ser. Mas estamos em uma competição aqui, Helena.
- Eu sei. Mas a competidora se saiu bem. Parece até que você está querendo jogar a culpa em alguém para enaltecer ainda mais outra pessoa.
Nossos olhos brigaram em silêncio. O clima pesou. Para descontrair o clima, Eduardo brincou:
- Qual foi, Isabel? Nos dê a chance de falar também.
Ignorei a apresentadora e voltei a minha atenção para a participante.
- Obrigada, Philipa. Meus parabéns.
Senti a apresentadora me fuzilar com os olhos. Desta vez, eu a encarei de volta. Pela primeira vez, trocamos olhares significativos. Seus olhos pararam de me julgar e passaram para tristes.
Não entendi a sua atitude e muito menos o que está acontecendo. Acabei preferindo quebrar o nosso contato visual e prestei atenção no que os meus colegas falavam.
Ao final, a voz da diretora comunicou:
- Pronto, pessoal. Após o intervalo de uma hora, retornamos para continuar. A outra metade promete.
Como de costume no último mês, me refugiei na sala do café para almoçar o que trouxe de casa. Uma vez o Maurício resolveu almoçar comigo, outro dia foi o Eduardo. Mas no geral fico sempre sozinha.
Diferente de outras vezes que acabei de almoçar e ia para o camarim ou tomar um ar pelo jardim da emissora, resolvi beber um chá e ficar por ali com meus pensamentos. O clima pesado mexeu muito comigo. Ainda sinto o olhar da Helena me fuzilando. Achei que estávamos indo tão bem no estúdio.
Ouvi a porta abrir de maneira abrupta e me virei com rapidez pois pelo perfume eu sabia quem entrou ali.
- Opa, desculpa... eu... eu não sabia que você estava aqui. Com licen...
- Você não precisa sair só porque eu estou aqui, Helena - disse analisando-a. - Você veio beber um café, não foi? Beba. Eu vou até o refeitório terminar o chá.
Assustada, a atriz ficou parada no mesmo lugar.
Desde que a vi após se arrumar para a gravação, admirei a sua beleza. O vestido azul marinho aberto nas costas, o salto preto e os cabelos presos fizeram uma combinação perfeita.
- Não é justo te tirar daqui e também não é justo que eu não possa beber o meu café. Eu tenho certeza de que podemos compartilhar o mesmo ambiente. Fica, por favor.
Peguei uma cápsula de café e o ergui para ela. Espresso Barista sempre foi o seu favorito. Após observar a sua cara de surpresa, o deixei sobre a mesa.
Com passos vacilantes, Helena aproximou-se de mim e colocou a cápsula na máquina.
Eu continuei em pé, encostada na mesa, bebendo o meu chá. Sei que com a minha atitude, eu abri espaço para a Helena estar no mesmo lugar que eu. Senti medo de sua proximidade, mas me mantive firme na decisão de criar um ambiente mais harmônico.
- Isabel - sua voz soou baixa, receosa.
- ¿Sí? - incentivei a sua conversa.
- Quero te agradecer por deixar a Gi ir comigo à praia no final de semana, mesmo sendo os seus dias com ela - sorriu apenas com os lábios. - Eu não deveria ter comentado com ela que iria.
- No se preocupe e também no precisa agradecer. Giovanna ama praia e me pediu fazendo biquinho, difícil negar.
A paulistana terminou de fazer o café e se aproximou ainda mais, ficando também em pé.
- Quase impossível e me lembra você - deu risada.
Sem saber o que dizer ou como agir, virei-me para a mesa e peguei um petisco que estava em uma bandeja.
Coloquei metade na boca e apreciei o sabor. Definitivamente, quem fez essa barquinha recheada com palmito cremoso merece um aumento de salário.
Sem consegui me conter, gemi de satisfação e agi por impulso:
- Nossa senhora, eso está maravilloso. Prova.
Como fiz incontáveis vezes nos anos passados, levei a outra metade que sobrou na minha mão até a boca da Helena.
Por instinto, a vi aceitar o petisco oferecido. Seus lábios passaram pelos meus dedos polegar e indicador. Eu os levei até a minha boca e isso fez com que eu caísse em mim.
O que eu estou fazendo?
Os olhos da menor reviraram por puro prazer pela comida e eu achei a imagem mais bonita do mundo. Mais uma vez me vi encantada pelos seus gestos.
Quando engoliu a comida, ela me olhou de forma carinhosa para mim e achou graça de algo.
- Você está com um negócio... - sussurrou.
Sua mão direita foi para no meu rosto. Mais especificamente no canto da minha boca. Senti o seu toque macio e fechei os olhos. Os seus outros dedos passaram pelos meus lábios. Carinho.
Delicadamente, sua mão escorregou pelo meu queixo, passou pelo meu pescoço e parou na minha nuca exposta pelo coque desajeitado. A minha pele arrepiou-se.
Helena tirou o espaço que nos separava, eu já podia sentir o calor do seu corpo. Quando as minhas pálpebras se separaram, olhei diretamente em seus olhos que estavam ainda mais negros. Me encontrei em seu desejo.
Ela chegou mais perto e eu não recuei.
Meus olhos desceram na direção da sua boca entre aberta. Com a proximidade cada vez maior, passei a língua entre meus lábios. Puro desejo aguardando para ser saciado.
Fiz o caminho entre seus olhos e lábios mais duas vezes. Por último, foi Helena quem fixou o olhar nos meus lábios. Senti um aperto na minha nuca. Seus olhos me encararam e pediu permissão. Inclinei a minha cabeça para frente e ela terminou com o espaço que ainda restava. Senti os seus lábios contra os meus.
Coloquei minhas duas mãos em sua cintura e apertei a puxando para que nossos corpos se tocassem. Helena mantinha uma de suas mãos em minha nuca, fazendo carinho com a ponta dos dedos, enquanto a outra apertava a minha cintura.
Seus lábios tão conhecidos ainda se encaixam com perfeição na minha boca. Pedi passagem para me aprofundar com a língua. Saudade, magnetismo, impulso. Eu já não usava mais a razão, somente o coração.
Fim do capítulo
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