Meus pedaços por Bastiat
Ela não me viu chorar II
Isabel
Acordei em plena escuridão. Sinal de que ainda não amanheceu. Resmungo por isso e pelo o que a minha vida se tornou. Recordo-me vagamente de subir para o meu quarto de maneira deplorável, chorando, soluçando e um tanto alterada. Minha cabeça parece que vai explodir.
Alcancei o meu celular na mesa de cabeceira para saber a hora.
4:26.
- Mierda, não dormi quase nada.
Fechei os olhos na tentativa de o sono voltar e conseguir dormir mais meia hora.
Sem sucesso. Minha cabeça pede um remédio e quando acordo dificilmente volto a dormir.
Levantei-me da cama e caminhei pelo escuro. Acendi a luz apenas quando cheguei no meu banheiro. Péssima ideia, meus olhos reclamaram da forte claridade repentina.
Me movimentei depressa à procura do remédio e coloquei um na boca, o engoli sem água.
Respirei fundo, apoiei-me na pia, abri a torneira. Com as mãos passei água pelo meu rosto e levei até a minha nuca. Meus olhos se fixaram na minha própria imagem refletida no espelho.
- O que aconteceu com usted, Isabel? Tú no lloras há um ano. Desde aquele maldito dia, quando saiu daquela casa... prometiste que no lloraría más por ella.
Encarei bem minha íris e me deixei levar.
"'Não chora. Não chora. Não chora', era só o que minha mente me dizia.
Sentada em frente ao espelho do camarim, vaguei meus olhos pela minha maquiagem bem feita. Por fora a mulher da TV, por dentro a mulher do dia a dia. A mulher que às vezes é xingada, mas também é admirada profissionalmente X a mulher que ama uma outra mulher, tem uma filha, uma família linda. A mesma essência, mas insuficiente para a Helena.
Depois de assistir a cena da minha mulher sendo beijada por outro, eu só queria desabar em algum lugar sozinha. Mas eu ainda estou em uma externa, no meu local de trabalho e com colegas. A última coisa que eu quero é um escândalo.
O problema é que quanto mais eu seguro o choro, mais raiva sinto. Algo dentro de mim parece que vai explodir.
‘Quando será o momento?', me perguntei.
Não agora. Não já. Não sem antes dar a chance da sua confissão espontânea.
Ainda bem que a Giovanna vai comemorar o aniversário de uma amiga da escolinha e o melhor de tudo é que será a noite do pijama. Eu relutei para permitir, acho ela muito nova para dormir fora de casa. Porém, Helena acabou me convencendo pela independência da nossa pequena.
Hoje sei que foi melhor, não quero que a Gi presencie o que vai acontecer esta noite.
Ouvi a porta sendo aberta e fixei o meu olhar no meu próprio reflexo do espelho.
- Seja fuerte, Isabel - sussurrei.
Tropeçando ao entrar, vi o corpo pequeno da minha mulher passar pela porta e entrar de vez no mesmo ambiente que estou.
- Oi, amor - disse Helena sorrindo após se surpreender com a minha presença.
- Olá, cariño - sorri fraco.
Pelo espelho, vi a atriz e apresentadora começar a tirar seu vestido. Suspirei.
- Helena... donde estabas? - o nervosismo me fazia falar em espanhol.
‘Por favor, não minta para mim', meu coração apertava enquanto meu cérebro brigava para impor a razão.
- Conversando com o pessoal sobre a final.
Mentiu.
Ainda olhando-a através do espelho, a vi vestir uma calça jeans e uma camisa social azul.
- Você não ia para casa? - Ela perguntou.
- Sí... sim... só que eu lembrei que viemos juntas, fiquei preocupada em como você voltaria.
Helena andou até onde eu estou sentada, parou atrás de mim e respondeu:
- Ah, não se preocupe, ainda preciso passar... - me olhou pensativa e sua voz ficou trêmula - passar... passar na ‘Escola de Roteiristas' para assinar uns papeis que a Nat está me cobrando. - Nos encaramos pelo espelho.
- Certo - forcei um sorriso.
- Você vai direto para casa?
- Sim, estou muito cansada - Respondi e desviei o olhar. - Maurício te ofereceu uma carona, a Escola fica próxima do bairro que ele mora, não é?!
- Fica, fica sim... mas eu já combinei com um taxista e ele já está chegando, não precisa se preocupar.
- Claro - mordi o meu lábio inferior de nervoso e nos encaramos de novo.
- Ei, não faz essa cara. Aproveita para descansar, tomar um bom banho e me esperar cheirosinha.
Helena sorriu com malícia e suas mãos foram parar nos meus ombros deslizando para dentro da minha camisa em seguida. De leve, senti ser acarinhada por cima do sutiã.
- Parece que temos um plano perfeito: Giovanna se divertindo na festa do pijama e um momento só nosso.
Uma de suas mãos subiu pelo meu colo e colocou o meu cabelo de lado.
Permiti que ela prosseguisse, não quero que fique desconfiada. Quero ver até onde vai a sua cara de pau.
Com o meu pescoço livre, os lábios de Helena passaram a distribuir beijos quentes por ali.
Sua língua subiu por toda a extensão do meu pescoço só parando no lóbulo da minha orelha, deixando uma mordida de leve.
Me arrepiei inteira, não sou de ferro. Mas ao mesmo tempo senti raiva. A mesma boca que estava beijando outro, agora está em mim.
Com a voz rouca em meu ouvido, a mais velha disse:
- Eu sinto a sua falta, meu amor. Sinto falta do seu corpo e das suas mãos em mim. Sinto falta de nós.
- Helena...
Fiz um movimento na tentativa de me afastar, aquilo já era demais para mim. Quando pensei em jogar toda a merd* no ventilador, ela voltou a beijar o meu pescoço, dizendo:
- Não diga nada. Sei que também tenho a minha parcela de culpa pela correria.
Helena deu uma pequena mordida e apertou o meu seio esquerdo com a mão.
Satisfeita por sentir a minha pele quente com seus toques e percebendo um pequeno rubor na minha face, a pequena sorriu.
- Isso foi apenas um aperitivo para a nossa noite. Prepare-se para ser amada na cozinha, na sala e no quarto... Hoje a casa é só nossa, baby - disse com uma pequena comemoração."
Eu não consigo mais me ver pelo espelho, minha visão embaçou-se com as lágrimas seguras para não rolarem pelo meu rosto.
Despi-me completamente e abracei o meu corpo. Proteção.
Como aquela menina em Madrid que aprendera tomar banho sozinha muito cedo, adentrei o box e abri o chuveiro.
Somente agora permiti que minhas lágrimas caíssem. Pelo menos eu posso fingir que é água do banho.
"Ouvi o barulho de chave destrancando a porta de casa e me ajeitei melhor no sofá. O perfume da paulistana tomou conta do espaço assim que entrou.
Helena quando percebeu a minha presença ali, sorriu. Deixando sua bolsa em uma poltrona, dirigiu-se a mim:
- Oi, amor. Desculpe a demora, mas peguei aquele trânsito maravilhoso de sexta-feira com chuva.
Permaneci em silêncio enquanto ela curvou-se até mim para alcançar os meus lábios. Beijou-me, mas eu não correspondi. Eu duvido que ela esteve no seu trabalho assinando papelada. Duvido que ela tenha saído em um táxi.
Hoje caiu a última gota de confiança que ainda restava.
- Chegou agora? - Helena perguntou.
- No.
- O que você está fazendo aqui na sala? Você nem tirou a maquiagem ainda. Está tudo bem?
- Vai ficar.
- Isabel? O que é isso, amor? Está parecendo a Giovanna, respondendo tudo de forma enigmática - Tentou brincar. - Mais cedo o Edu chamou a gente para jantar em um restaurante e fiquei de dar uma resposta. Eu prefiro ficar em casa mesmo, fazemos um jantarzinho juntas como nos velhos tempos... pode ser sopa, o que você acha? - disse se levantando.
O cinismo de Helena foi ficando insustentável. Queria dar corda, ver até onde ela vai. Porém, resolvi parar de adiar o fim.
- O que você achou desta temporada?
Uma pergunta simples, mas cheia de significados para mim.
- A melhor de todas, acho que o Gustavo leva essa... - o seu sorriso foi morrendo ao notar o meu semblante. - Está tudo bem mesmo?
Levantei-me para encará-la melhor. Cruzei os meus braços, respirei fundo. Seu olhar confuso tentou me decifrar.
- ¿Hay algo que quieras decirme, Helena?
Fiz uma tentativa na esperança de ouvi-la confessar e um pedido de desculpa.
A passos lentos, ela aproximou-se de mim.
- Ok... vamos primeiro nos acalmar. Já entendi que tem algo de errado e vamos resolver da melhor forma: dialogando. Nervosa desse jeito...
- Dialogar? Quieres uno diálogo? Para quê? Vai usar a mesma língua que estava enfiada na boca do Gustavo para inventar uma desculpa?
Assustada com o que eu disse, vi Helena sem reação. Sua boca fazia um movimento de fala, mas não saía nada.
O meu peito dói. Dor na alma, dor física. Meu coração que costumava bater de felicidade pela mulher a minha frente, bate apertado, angustiado.
- Isa - sua voz saiu tremida.
Aguardei que ela continuasse. Sem me olhar, sussurrou:
- Quem te contou?
Diminuí o espaço entre nós. A tensão estava no seu corpo retraído e sua cabeça baixa.
Com a minha mão direita, levantei a sua cabeça segurando o seu queixo. Eu precisava dos seus olhos.
- Eu vi... eu vi. Vi con mis propios ojos. Vi cuando Gustavo te girou no ar, como eu mesma fiz tantas veces. Vi quando se beijaram.
Uma lágrima solitária rolou pelo seu rosto. Culpa.
Helena segurou a minha mão que estava erguendo sua cabeça.
- Nós não nos beijamos, ele que...
- EU VI, HELENA! EU VI!!! EU VI, CARAJO! EU VI.
Me alterei e tentei dar as costas para ela. Fui segura pelo braço.
- O que você viu, Isabel? Até quando você ficou lá naquela cozinha?
- Vi o suficiente para ter certeza do que eu já desconfiava. Eu só precisava de uma confirmação para não ter dúvida da vagabunda que eres.
- Desconfiava do quê? Isabel, meu amor...
- NÃO ME CHAME DE ‘MEU AMOR'. EU NÃO SOU MAIS O SEU AMOR.
Fiquei bem próxima de seu rosto para dizer:
- ACABOU, HELENA.
Assim como eu me alterei, a menor também o fez:
- NÃO! NÃO ACABOU!
- ACABOU SÍ!
- NÓS TEMOS 12 ANOS DE CASAMENTO, PORRA.
- QUE ESTE MATRIMONIO SE VAYA A LA MIERDA! YO NO SOY UNA TONTA, HELENA. DEMORÉ MUCHO TIEMPO PARA ACORDAR PARA LA BELA PUTA QUE ÉS, PERO MEJOR TARDE QUE NUNCA.
Seus grandes olhos sempre expressivos arregalaram-se com indignação.
- ESCUTA-SE, ISABEL. ESCUTA O QUE VOCÊ ESTÁ FALANDO PARA MIM! VOCÊ NÃO TEM DIREITO DE ME OFENDER DESSA MANEIRA - gritou na minha cara.
- Oh, perdóname - ironizei - PERDÓN POR REFERIR A VOCÊ DAQUILO QUE ERES: LA REINA DE LAS PUTAS.
Tentei sair de perto dela mais uma vez, mas sua mão no meu braço me puxou.
- Vamos nos acalmar, por favor - disse diminuindo o tom de voz. - Eu nem vou levar esses xingamentos em consideração porque sei que você está nervosa. Mas escuta, são 15 anos, Isa... - o choro atrapalhou a sua voz. - 15 anos que estamos juntas. 15 anos convivendo comigo. Não estamos no nosso melhor momento, eu sei. Mas você me conhece...
- Eu achei que te conhecia, Helena Carvalho. Mas descobri que no.
Um nó se formou em minha garganta. Eu queria tanto acreditar que o desespero dela seja pelo fim do casamento e não pela descoberta que fiz.
- Você não quer me ouvir, cacete! Esquece o que você viu. Eu sou a mesma Helena que contou os minutos para chegar em casa hoje e te amar.
Comecei a dar risada de toda situação.
- Você realmente planejava subir naquele quarto e me fazer sua depois de ter me traído? Definitivamente eu não te conheço - abafei a risada. - Agora me solta, eu tenho que ir.
- Ir? Ir para onde? Aqui é a nossa casa. Se você quiser, eu saio por alguns dias para você pensar. Não tome nenhuma atitude de cabeça quente. Por favor, não vá.
- Sua casa, Helena. Sua! Você a comprou sozinha.
- Não começa, Isa. Não estamos discutindo dinheiro aqui.
- Passar bién, Helena.
Me desvencilhei dela puxando o meu braço que não estava tão preso.
- Para onde você vai? - a ouvi perguntar e chegar perto de mim.
- Não te interessa! Acabou. Nós não temos que dar satisfações uma para a outra.
- Você vai passar aqui amanhã para pegar as suas coisas?
- Não pisarei mais nesta casa. Já peguei todas as minhas coisas y já estão no carro.
Dei mais alguns passos na direção da porta, mas a apresentadora tomou a minha frente.
- E a Gi? O que eu digo quando ela voltar para casa?
- Minha filha vai morar comigo, não se preocupe. Já peguei as coisas dela também.
- Sua filha? Sua filha uma ova. Nossa filha! Mesmo que você queira levar esse absurdo a frente, você não vai afastar a Giovanna de mim.
O desespero da Helena foi nítido.
- No, no voy, tranquilízate - disse alcançando a chave do meu carro. - Na justiça resolveremos tudo isso.
- Is...
- Basta, Helena. Adeus.
Quando alcancei a porta de casa, com o meu coração partido, ouvi sua voz e não girei a maçaneta.
- Eu não estou te reconhecendo, Isabel. A mulher com quem me casei não faria isso tudo sem antes me escutar. A mulher com quem eu troquei essas alianças em nossos dedos, e prometi amar pelo resto da minha vida, sabe que eu jamais a trairia.
Eu queria tanto acreditar.
Ainda de costas, sem olhá-la, retirei a minha aliança e deixei que caísse."
Deixar o símbolo do nosso amor se perder pelo chão foi o meu último ato naquela casa.
Meu choro cessou ao me recordar de toda maneira cínica que Helena me tratou aquele dia. Primeiro no camarim e depois em casa.
Sai do banho, me sequei e andei até o meu closet. Vesti minhas costumeiras vestes confortáveis, calça pantalona e camisa social, para um dia longo de trabalho.
Olhei o relógio e tive a certeza de que ainda é cedo para acordar a minha pequena. Resolvi então caprichar no café da manhã para ela.
Até o dia de ontem, eu tinha me colocado no automático. Era cuidar dos meus negócios e da Giovanna. Não me permiti refletir sobre o término do meu casamento. Apenas sei que acabou e que nada vai mudar isso.
Cheguei na minha cozinha e separei os ingredientes para fazer panquecas recheadas de chocolate.
Ouvir da minha filha que ela quer morar com a outra mãe me abriu feridas.
Se alguém me perguntasse qual é o maior medo, eu responderia: ser uma mãe ausente.
Desde que Giovanna nasceu, tento estar sempre ao seu lado. Entretanto, tudo parece conspirar contra isso. Primeiro, assim que eu comecei o tratamento, a minha companhia de teatro começou a desandar financeiramente. Depois veio a confirmação da gravidez que coincidiu com a minha briga com os sócios. Sem comunicar a Helena, pedi um empréstimo milionário para dar uma nova cara ao ‘Arte.' Para pagar as primeiras parcelas, trabalhei como uma louca durante a gravidez. É óbvio que tive que contar para a então minha mulher sobre a loucura que fiz e isso gerou várias brigas entre nós. Ou seja, eu na minha teimosia e Helena tentando que eu largasse tudo. Quando Gi nasceu, não me permiti curtir tanto os primeiros meses, o meu saldo no banco não permitia. Muito menos deixei que a paulistana me ajudasse financeiramente. Só consegui aproveitar um pouco mais depois de pagar o empréstimo, após ter aceitado ser jurada no reality show. Comecei a fazer tanto sucesso que o meu contrato aumentou e eu realizei o sonho de expandir a minha companhia. Há dois anos abri uma filial e isso também tomou um pouco do tempo livre que já não era grande coisa.
Depois da separação, nos primeiros meses eu ficava mais com Giovanna. Entretanto, o meu trabalho também passou a ser o meu refúgio para sair da tristeza. Foi quando decidi contratar uma babá para estar com ela quando eu não a levo comigo para o trabalho.
Talvez eu esteja me ausentando assim como a minha mãe fez. Estou deixando a tristeza me consumir. Hoje eu a perdoo e tento compreender, mas não imaginei que cometeria os mesmos erros.
É claro que ela prefere a outra mãe, no lugar dela eu também preferiria. A apresentadora não carrega os traumas de ter fracassado na relação.
Eu tenho falhado. Mas como eu conserto?
- Bom dia, mamá.
Olhei para o lado ainda mexendo a calda de chocolate que estou fazendo, vi a Gi vestida com um pijama de pequenas girafas, com os cabelos bagunçados e coçando os olhos com sua mão direita.
- Buenos días, mi amor - desliguei o fogo e fui em sua direção. - Ya despierta? Hay hormiga en tu cama?
Peguei-a no colo e a aconcheguei em meus braços.
- Fui no seu quarto e não te encontrei.
- Mamá se despertó con las gallinas hoy, mi amor - disse beijando sua bochecha e levando-a até o fogão. - Mira, hoy te preparé una sorpresa: panqueque con chocolate. Te gusta?
Giovanna abriu um sorriso largo e me apertou em um abraço.
- Sí, mamá.
Com minha filha já bem desperta e agitada em meus braços, fomos até a mesa e a ajeitei na cadeira.
Servi duas massas de panqueca em seu prato. Peguei a panela com o chocolate e coloquei uma generosa quantidade.
Talvez seja a culpa de não ser uma boa mãe que me fez mimá-la um pouco, não costumo ser exagerada com doces e brinquedos.
Me servi de café e passei a acompanhá-la no desjejum.
- Son buenos los panqueques, Gi?
- Sim, estão saborosas.
- En español, hija.
- Eu não quero falar em espanhol.
Fiz um considerável barulho quando minha caneca tocou a mesa. Isso chamou a atenção da pequena que arregalou os olhos.
- Por quê, Gi?
- Porque quando vivia eu, você e a mamãe, a gente praticava, mas a maioria das vezes a gente conversava em português. Agora é só espanhol. Não quero.
- Você não quer falar em espanhol sempre, é isso?
- É - respondeu de forma sucinta.
Enquanto Giovanna se lambuzava com o chocolate, resolvi fazer sua típica vitamina matinal.
- Quero ver a mamãe hoje, posso?
Liguei o liquidificador e não respondi. No fundo eu torcia para que ela tivesse esquecido o assunto de ir morar com a Helena.
Desliguei o aparelho e servi a bebida até metade do copo, entregando para a minha cópia em seguida.
Sentei-me de frente para ela e busquei a sua atenção.
- Quer mesmo morar com a sua mamãe?
- Sí... - respondeu com receio. - Eu queria as duas juntas, mas não vou ter. Entonces quiero quedarme un poco con mi mamãe también. Sinto falta dela.
Ver a minha filha nervosa apertou o meu coração.
- Mas você já fica com ela, mi amor. No próximo final de semana você vai vê-la como siempre - tentei argumentar.
- Não posso ver hoje? - Giovanna insistiu.
- Hoje tem escola, hija. Sua última semana lá - resolvi mudar de assunto. - Está ansiosa para ter novos amigos? Poderá dormir um poquito mais por ser perto.
- Mamá, decidi que não vou mudar de escola. Vou morar com a mamãe e ela vai me levar.
Eu nem precisava me perguntar de onde essa menina de apenas 5 anos de idade tirou tanta teimosia. Tanto eu como a Helena, sabemos que a nossa teimosia é tão elevada que beira o defeito.
- Então a senhorita quer morar com a Helena por que não quer mudar de escola? - Sorri.
- Também - Giovanna deu de ombros.
O desânimo me pegou novamente.
- Gi, se você não falar comigo, eu não vou conseguir te ajudar. Por que você resolveu que quer morar com a Helena?
A pequena olhou para toda cozinha, menos para mim. Por fim, resolveu sair da cadeira sem dizer uma palavra.
- Hija, sua vitamina. Você não terminou, mi amor.
- Já estou satisfeita, gracias mamá.
Mantive-me tranquila. Insistir em uma conversa com a Gi agora só vai me machucar ainda mais. Ela quer ir morar com a Helena, é um fato. Preciso aceitar que, se para ela é melhor viver com a outra mãe, está tudo bem.
Subi até o seu quarto e sem entrar no assunto, dei banho na minha pequena, a ajudei se vestir, coloquei a coisas dela em ordem na bolsa e descemos juntas para o carro.
Falamos sobre outros assuntos, consegui dois sorrisos ao contar alguma situação engraçada no meu trabalho ontem.
Deixei uma Giovanna mais calma na escola. Ganhei até um inesperado beijo na bochecha.
Cheguei no Arte depois do começo de manhã turbulento e me tranquei no escritório. Nem era dia de olhar a parte administrativa, mas eu preciso me isolar.
No começo da tarde, já estava lendo pela quarta vez o mesmo papel. Desconcentração total. Resolvi arejar a cabeça e fui acompanhar um dos ensaios da peça em cartaz.
Não consegui ficar quieta e subi no palco para tentar mudar algumas coisas, isso me deixa mais animada.
Concentrar-me nas atuações, colocar a mão na massa e receber os elogios através dos meus colegas era o que eu estava precisando e foi assim até o final da tarde.
- Isabel, o Eduardo Mazza está querendo falar com a senhora - um dos meus funcionários disse.
- Edu está aqui? - Fiquei surpresa e receosa. - Peça para ele entrar, por favor.
Não demorou muito para que ele surgisse na porta.
- Boa tarde, colegas - cumprimentou exalando seu charme e um sorriso no rosto.
Pedi licença aos atores e desci do palco correndo. Não sei o que me deu, mas ver o Eduardo me trouxe apreensão e ao mesmo tempo... alívio. Meus dias estão tão turbulentos e ele me procurar com um sorriso no rosto é surpreendente.
- Edu, que surpresa - disse apenas isso antes de abraçá-lo a fim de matar a saudade.
Há meses eu não vejo o Mazza. Perdemos completamente a intimidade de frequentar a casa um do outro depois da minha separação. As poucas vezes que nos encontramos, acabamos discutindo por causa de Helena. O ator virou o seu defensor número um. Foi com muita dor no coração que resolvi parar de responder as suas mensagens e me afastar.
- Isabel, que saudade - disse após nos separarmos.
- Eu também estou com saudade, Edu - me emocionei. - Então resolveu apreciar o teatro da sua velha amiga?
- É sempre bom respirar a arte - sorriu com gentileza.
Notei que no seu semblante tinha um fundo de preocupação. Estava sim feliz de me ver, mas senti que não era o único motivo.
- O que quieres? - Perguntei.
- Sempre direta, não? Quero falar sobre a Giovanna.
- Sobre a Giovanna? - Me surpreendi. - Vamos até mi escritório para conversarmos à vontade. También tienes un cafézito.
Sai na frente e ele me acompanhou. Durante o pequeno trajeto fiquei tentando imaginar o porquê de ele querer falar sobre a minha filha.
Assim que sentamos e nos ajeitamos melhor no sofá, o interroguei só com o olhar.
- Helena dormiu em casa esta noite e...
- Veio falar sobre a Helena ou sobre a Gi, Eduardo? - O interrompi.
- Espera, Isabel. Eu só quero falar que a Heleninha me contou sobre a conversa que tiveram ontem.
- Ella pediu para você vir?
- Não! Se Helena descobre que eu estou aqui, ela me mata.
Eduardo me pareceu sincero, procurei manter a calma.
- Ainda não entendi o que a Gi tem a ver com eso.
- Tudo, Isabel. É a sua pequena que está sofrendo. Você acha que está atingindo a Helena, mas não é assim.
Atingir, Helena... é isso que todo mundo pensa.
- Veio me pedir para que eu entregue a Giovanna para a sua amiga por que eu sou uma péssima mãe? - Sorri com deboche.
- Não, Isabel. Eu estou aqui como seu amigo. Você não é uma péssima mãe. Pelo contrário, é uma das mães que mais admiro por se desdobrar tanto entre o trabalho e a criação da pequena. Mas ela também tem outra mãe que deseja ficar mais com a menina. Essa divisão não está justa.
- Yo sé - não consegui segurar as minhas lágrimas.
- Eu não te reconheço mais, Isa. Ninguém reconhece. Você deixou que o ódio te cegasse.
- E se você fosse traído pelo Rodrigo, Edu? Sairia pulando de felicidad? - Ironizei.
- No começo eu entendi a sua raiva. Depois eu achei que tudo ia se acalmar. Faz 1 ano, Isa, e até hoje as duas não se sentaram uma vez sequer para conversar sobre a filha de vocês. Heleninha não perdeu o seu direito porque você acha que ela te traiu.
- Eu não acho, Eduardo. Eu tenho cer-te-za - enfatizei. - Agora, sobre ter direito ou não, Helena que no quis correr atrás. Eu falei para resolvermos na justiça, existem leis para isso nesse país.
- Eu posso te garantir: a última coisa que a Helena quer é te provocar. Ela tem medo de que as coisas piorem e pensa muito na Gi também.
- Santa Helena Carvalho - rolei os olhos em desaprovação. - E eu não penso na Gi? Se estou protegendo-a é porque a amo.
Eduardo se postou mais perto de mim e pegou na minha mão de maneira amigável.
- Isa, você sabe o quanto te admiro e o quanto é ruim estar tendo essa conversa. Amargura não combina com você. Por mais que você queira esconder, sei que tudo isso te machuca também. Essa sua postura não está te fazendo bem. Eu só estou te pedindo para pensar no que é melhor para a Gi.
Sorri de lado, sem graça. Com o ator usando a palavra amarga para me definir, passei a notar o quanto isso está refletindo na minha vida. Eu não quero isso para mim, muito menos para a Gi.
- No se preocupe, mi amigo. Desde esta mañana tenho acordado para mis atitudes. Eu achei que estava tudo bem com mi hija, mas não está.
- Isso quer dizer que você vai conversar com a Helena? - Perguntou feliz.
- Será inevitável já que quinta-feira tem reunião para o Atuando.
Mazza se surpreendeu tanto que fez até uma careta confusa.
- Está querendo dizer que você vai gravar o Atuando? Eu achei que depois de tudo...
- Eu tenho que voltar - o interrompi para esclarecer de vez - o meu último contrato foi para mais duas temporadas, a passada e para esta de agora. Eu precisava de dinheiro para começar a filial do Arte e acabei pegando um adiantamento. No tengo mucha escolha.
- Entendi. Havia uma especulação entre nós se você faria ou não. Eu estou contente por ter o meu quarteto intacto. Não seria a mesma coisa sem as suas ironias.
- Fico feliz por conseguir conversar com você antes da reunião e saber que ainda gosta de mim.
- Eu nunca deixei de ser seu amigo, Isa. Nunca. Eu só não concordo com suas últimas atitudes e isso gerava discussões bobas nos nossos encontros por acaso. Não te procurei também pois não quis invadir o seu espaço, mas eu nunca te julguei mal.
Fui acolhida por Eduardo em seus braços. É bom saber que não perdi o meu amigo que sempre me fez rir com suas piadas.
- Como você está, Isabel? Como anda a vida?
Ainda presa em seu abraço, respondi:
- Eu estou bem, Eduardo. Arte ainda é um sucesso e não para de crescer. Fico me dividindo entre aqui e a filial. Tenho levado a vida da minha forma tranquila de ser - concluí me separando dele. - E você, como vai? Morro de saudade do Rô.
- Eu estou bem e o Rô também. Nós dois sentimos muito a sua falta em nossas reuniões. Vamos marcar um dia lá em casa?
- Claro! Eu vou adorar. É só me dizer o dia que eu encaixo na minha agenda.
Recebi um sorriso singelo do meu amigo.
- E seu coração, Isabel? Como será a sua reação quando ver a Heleninha?
Encarei seus olhos verdes curiosos e forcei um sorriso.
- Eu sou profissional. Se você está perguntando se eu ainda gosto da Helena, eu posso afirmar que não. Não a amo mais como já amei um dia. Acho que a minha reação vai se resumir para ver uma pessoa com a qual eu trabalharei e sei que é a outra mãe da minha filha. Apenas isso.
Eduardo não disse nada. Eu senti que ele não acreditou nem um pouco nas minhas palavras, mas preferiu não insistir.
O meu coração tem uma ferida cicatrizada pelo tempo que passou, mas que não está curada por dentro.
Sim, eu menti.
Fim do capítulo
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