Meus pedaços por Bastiat
Ela não me viu chorar
Isabel
Com o olhar fixado na grande porta de madeira, vi a mulher que sempre fez o meu coração disparar sair com a nossa filha do lugar que eu costumava chamar de lar.
Como sempre, ela foi pontual e olhou na direção do carro. Quando eu consigo, faço questão de chegar alguns minutos antes das 20:00 só para observá-la por alguns instantes dentro do carro.
Já tinha imaginado que pelo calor que faz, e por ser domingo, ela estaria com um shortinho combinando com alguma camiseta de alcinha de cor clara. 15 anos convivendo com uma pessoa que pouco muda os seus hábitos já dá uma certeza de seus gostos. Como ela é absurdamente linda.
Cariño, é a palavra que ressoa na minha cabeça, é como eu costumava me referir a ela. Helena é aquele tipo de mulher que pode aparentar uma certa fragilidade pelo seu tamanho, mas é forte. Muito forte. Talvez seja por isso que me senti intimidada quando a vi pela primeira vez. Mas, essa impressão foi passando pela forma extremamente carinhosa de me olhar.
Quando vi a Giovanna ser colocada no chão, sabia que era a hora de abrir a porta do carro.
Assim que saí, mesmo sem olhar na direção delas, senti que Helena me observa. Segurei-me para não cair na tentação de procurar os seus grandes olhos cor castanho escuros. Sempre adorei me deixar levar por eles, poderia passar horas me perdendo em seus encantos. Talvez esse tenha sido o meu erro.
Senti o cheiro de bebê característico da minha filha. Beijei a sua testa de maneira carinhosa, a abracei cheia de saudade e quando nos separamos os seus olhos me encararam de maneira enigmática. Estranhei, mas a conduzi para dentro e a prendi na cadeirinha.
Fiz tudo o mais rápido possível pois ainda posso sentir que estou sendo observada. Juro que consigo ouvir a respiração pesada de Helena. Aposto que as ventanas de seu pequeno nariz estão elevadas.
Em passos apressados, entrei no carro e já o liguei para dar a partida. Em menos de 1 minuto eu já estava na porta do condomínio dando o sinal para o porteiro liberar a minha saída.
No primeiro farol fechado, olhei a minha filha pelo retrovisor. Seu olhar distante quer me dizer alguma coisa. Cantarolei uma música infantil em espanhol enquanto recomeçava a guiar o carro, porém não escutei sua voz me acompanhar.
Quando tive que parar mais uma vez, reparei que ela estava na mesma posição.
- Gi! - Chamei a sua atenção e percebi que ganhei quando ela se mexeu na cadeirinha. - ¿Estás bien?
- Sí.
Um simples ‘sí', mas cheio de significados.
- ¿Está segura? Estás muy callada, hija.
Insisti enquanto entrava por uma avenida movimentada.
- Estoy bien, mamá.
Não conhecer a Giovanna é como se não me auto conhecesse. Minha filha tem muito da minha personalidade. Eu sei que ela está pensando em como pedir ou falar algo, mas não se sente segura.
Resolvi tentar distrai-la para depois voltar ao assunto.
- ¿Qué hiciste este fin de semana?
De maneira rápida, minha filha tentou resumir sem a mesma empolgação de outros finais de semana:
- Mamãe me llevó a un lugar casi como un parque de diversiones, hice dos amigos... Fuimos al cine también. Hoy fue el día de la pereza (preguiça) en la piscina.
- Se ve bien ¿Qué película viste?
- No recuerdo el nombre... - respondeu tediosa.
- ¿Pero de qué se trataba? - insisti.
- Un perro cuya misión era salvar la ciudad.
- Interesante.
Bati os meus dedos no volante, ansiedade. O silêncio mais uma vez imperou no carro.
Pacientemente, esperei um farol que demora para abrir. Quando finalmente chegou, virei o meu corpo para o banco de trás sorrindo.
- Mi amor, mira a tu mamá. ¿Estás segura de que todo estás bien?
- Sí. Ya dije que sí.
Com a resposta categórica, entendi que a minha insistência não levaria a nada. Voltei a minha atenção para frente. Em poucos minutos estarei em casa e poderei me dedicar totalmente a ela.
- Mamá, eu quero voltar a morar com a mamãe.
Eu segurei o volante com toda a força que eu tinha como se esse gesto tivesse o poder de me manter firme. Se eu estivesse em pé, desmaiaria. Percebi que meus dedos ficaram brancos e começaram a doer. Lembrei de respirar quando soltei a mão direita do volante.
Choque.
Ao fundo eu ouvi o barulho incessante de buzinas. Sim, no plural. Conforme a minha consciência foi retomando, eu me vi parada no meio da avenida com uma fila enorme de carro atrás de mim.
Não sei como consegui agir para fazer o carro andar, mas tive que fazer isso o mais rápido que consegui. Sem querer, passei o farol vermelho.
Para a minha sorte, entrei em uma rua calma que dá acesso à minha casa. Ali pude dirigir em velocidade reduzida e controlar a minha respiração.
Não tive coragem de olhar a minha filha pelo retrovisor. Segui o caminho até estacionar o carro na minha vaga da garagem.
Só quando abri a porta do passageiro para ajudá-la a sair da cadeirinha, a vi tentando tirar os cintos. Com pouco esforço, a tirei de lá e esperei que descesse sozinha.
Peguei na sua mão que não segurava o ursinho e quando pensei em caminhar, vi que ela me olhava esticando seus braços na minha direção. A acolhi de maneira carinhosa e senti um certo alívio. Mas minha cabeça ficou ainda mais confusa. Aparentemente, Giovanna não está com raiva de mim, mas ao mesmo tempo não quer morar comigo. ¿Qué passa, entonces?
Dentro do elevador, Gi deitou-se no meu ombro e eu a abracei com força.
Com um pouco de dificuldade, peguei a chave na minha bolsa e assim que as portas se abriram, em poucos passo, eu já cheguei na minha porta para abri-la.
Ainda com a minha filha nos braços, entrei dentro do apartamento, tranquei a porta e andei até o sofá. Coloquei a minha pequena sentada e ajeitei a sua franja.
- ¿Tienes hambre?
- Eu já jantei - me respondeu.
- ¿No quieres practicar español con tu mamá, Gi?
Com sua careta típica, ouvi um ‘não' arrastado em negação.
- Nãããã... acho que tem uma brasileirinha manhosa que está precisando dar umas boas risadas.
Sentei-me no sofá com ela e passei a fazer cócegas com seu pequeno corpo.
- Não... para, Mamá. Por favor...
Sua risada foi como uma energia que eu estava precisando. Passei o final de semana inteiro trabalhando, cheguei a dormir no escritório da Companhia de Teatro ‘Arte'. Minha coluna está reclamando até agora.
Quando sua risada cessou, olhei em seus olhos e busquei alguma resposta que somente as suas palavras me dará.
- Por que você quer morar com a sua mamãe, mi amor?
O seu doce sorriso foi se apagando. Suas pernas balançando me indicaram o desconforto. A minha própria filha está com receio de conversar comigo. Onde eu estou errando?
Giovanna não respondeu, tampouco me olhou.
- Estou vendo que hoje você não quer conversar.
- Estoy cansada, mamá.
- Mira, el español de una niña parece haber vuelto.
Sua pequena mão coçou os olhos.
- Parece que alguien se divirtió mucho en la piscina, sí? Vamos a la ducha ahora.
Peguei a minha filha no colo e a abracei com força. Fazendo carinho em suas costas, entrei no banheiro.
O banho foi rápido e silencioso. Cantei baixo enquanto a ajudava. Quando comecei a enxugá-la e disse o quanto a amo. Mesmo sonolenta ela me respondeu dizendo que também me ama.
Giovanna dormiu assim que a coloquei na cama após vesti-la com o pijama. Fiquei ainda um tempo velando o seu sono antes de vir para a cozinha.
Abri uma garrafa de vinho para tentar clarear as minhas ideias. A história da Gi me pedir para morar com a Helena não me desce. Não que seja um completo absurdo, sei que a paulistana é uma ótima mãe. Mas será que eu que tenho falhado com a minha própria filha? Ou será que a Helena Carvalho está manipulando a Giovanna para me atingir?
Eu não posso deixar que a minha filha passe pelo o que eu passei. Não posso. Helena está jogando muito sujo.
Peguei o meu celular e procurei o seu contato. Há quanto tempo eu não falo com ela... Nem ao menos vou na sua foto como fiz inúmeras vezes. Mantê-la longe faz parte da minha estratégia de não sofrer e superá-la.
Em um único fôlego, gravei um áudio dizendo:
- Helena! Que história é essa da Gi ir morar com você? Agora vai usar uma criança para me ferir ainda mais? ¿Qué carajo estás haciendo?
Notei que ela tinha acabado de usar o aplicativo de mensagem. Com quem será que ela estava conversando essa hora da noite?
- Carajo Isabel! Não importa com quem ela fala ou deixa de falar. Foda-se Helena Carvalho.
Bebi todo o conteúdo da minha taça cheia de uma vez só. Um desperdício não apreciar esse vinho italiano como se deve, mas neste momento eu preciso de álcool para me aquecer da solidão.
Desde o primeiro momento que a vi pela primeira vez essas explosões de emoções são certeiras.
" - Ma que cazzo!!! - Exclamei quando me colidi com um corpo assim que eu entrei apressada no teatro que estou atuando na minha primeira peça no Brasil.
Não estou atrasada, mas sim repassando todo o texto pela na minha cabeça.
Texto esse que foi totalmente esquecido quando os meus olhos se fixaram na beleza da mulher a minha frente.
- Mil desculpas... ou seria, mi dispiace? Italiana?
Eu me perdi em seu sorriso. Devo estar parecendo uma idiota, pois eu demorei a responder depois de inutilmente tentar entender o que estava acontecendo com o meu coração disparado.
- No... Sou não... soy española pero también tengo ascendencia italiana.
Se para mim já era difícil falar o português, nervosa do jeito que eu estou, não sai nada.
- Ah, então está explicado a exclamação. Está há pouco tempo no Brasil... Isabel?
- Sí... Sim! Tres meses. Pero, como sabes mi nombre?
- Está escrito no panfleto da peça - respondeu apontando para o papel que está em sua mão esquerda.
Sorri de maneira tímida. Por que eu sou tão idiota? É claro que ela não saberia o meu nome sem ser por isso.
- Com licença, Isabel. Boa noite - ouvi a figurinista falar se aproximando de nós e se dirigir à moça do esbarrão - Senhorita, o diretor Machado te aguarda no escritório dele para conversar. Vamos? Eu te acompanho.
- Obrigada - a baixinha respondeu à figurinista dando um pequeno sorriso.
Quando se voltou para mim, posso dizer que me vi mais uma vez com aquelas sensações deliciosas, mas também perigosas. Eu me conheço, sei que sou capaz de me apaixonar apenas pelo olhar.
- Bem, Isabel, com licença, eu tenho que acompanhá-la para falar com o meu amigo Machado.
Acompanhei com o olhar os passos da figurinista com a moça de olhos grandes e belos ao seu lado. O seu perfume ainda se faz presente, é tão forte e delicado quanto ela. Uma combinação perfeita de mulher.
Só depois de começar a caminhar que percebi: ainda não sei o nome dela. Bem, mas a figurinista disse que ela vai falar com o Machado, então uma hora ou outra eu saberei. Aposto que é alguém para pedir emprego. Tomara que ela se dê bem na entrevista e se junte a nossa equipe de trabalho.
Depois do transe que entrei após sua saída, acordei para os meus afazeres.
O calor humano, o começo do frio na barriga, o barulho de falas atravessadas me animou e deu dá o gás que eu preciso para me concentrar no trabalho.
Definitivamente, o meu lugar no mundo é dentro de um teatro.
- Isabel?
- Sí, Fernando - voltei a minha atenção para um dos meus colegas de atuação.
- Eu te vi conversando com a Helena Carvalho, ela vai nos apreciar hoje?
- Quién? Carvalho?
- Helena Carvalho, uma das melhores atriz que temos no Brasil. Se não estou enganado, ela começou bem nova e suas atuações já renderam diversos prêmios. Tanto de cinema, quanto de televisão. Você estava conversando com ela na porta de entrada quando eu cheguei. Sabe como é, essas pessoas importantes vêm sempre para chamar o público.
A única pessoa que eu conversei na entrada foi... Díos, eu estava falando com uma pessoa aparentemente importante. Por isso estava tão bem arrumada.
- No sabía que estaba habl... falando com essa tal de Helena Carvalho.
- Como não, espanhola? Ela é famosa, trabalha em uma das maiores emissoras do Brasil. Ela está no ar com uma série sobre paixões avassaladoras. Dizem que ela um dia ganhará o Oscar.
Eu não fazia a mínima ideia do quem ele estava falando.
- Yo no assisto TV. Ni sequiera tengo una - sorri sem graça para o ator.
- Ah, então por isso que você não a conhece. Não deve nem saber do escândalo, né?!
- Que escândalo? - A curiosidade falou mais alto.
- O ex-marido dela a traiu com sua melhor amiga. Dizem que é por isso que ela voltou para o Brasil. O safado ficou lá nos Estados Unidos com a safada. Uma mulher tão bonita dessa ser traída assim...
- Fernando - o interrompi. - Yo no estou interessada. Vamos trabalhar, sí?
O ator vendo-me nervosa, pediu desculpa e voltou ao trabalho.
Comecei a andar pelos bastidores para cumprimentar os outros. A cada intervalo de conversa, na minha cabeça aparece o sorriso de Helena.
‘Despierta, Isabel. Helena no es la primera mujer que le interesa', pensei.
Tentei me concentrar e acabei adiantando a maquiagem para fazer na tentativa de tirar a tal atriz famosa da minha mente.
- Ponte en tu lugar, mujer! Tú eres solo una atriz de teatro y ella és uma persona importante y ... heterossexual - mordi o canto do lábio inferior nervosa.
- Falou comigo, Isabel?
Olhei para a maquiadora que arregalava seus olhos para o meu lado.
- No, perdón.
Depois da maquiagem feita e a transformação para a personagem, subi ao palco para mais uma apresentação. Palco é a minha vida, é o que me faz querer acordar todos os dias pela manhã. A cada nova personagem, tenho mais certeza de que é isso que quero fazer pelo resto de minha vida.
Quando terminou o espetáculo, os aplausos vieram para que o meu sorriso fosse de orelha a orelha. Eu faço peças desde a infância. Conto até mesmo aquelas feitas na escola. Mas confesso tenho me emocionado muito com o público brasileiro.
Após sair do palco, caminhei até o meu camarim e me encostei na penteadeira. Suspirei lembrando dela. Durante a apresentação da peça eu cheguei à conclusão de que essa mulher ficará por um bom tempo na minha cabeça. Minha concentração não esteve das melhores, o portunhol que minha personagem exige estava um horror, espero que isso não tenha comprometido o agora e nem no futuro. Sei que quando fico encantada demoro para tirar da minha cabeça.
‘É só me jogar no trabalho que vai dar tudo certo', pensei.
- Isabel?
Olhei para a porta já aberta para ter a certeza de que aquela voz doce vinha de Helena.
Minha voz não saiu.
- Desculpe-me. Eu estou atrapalhando? Eu fiquei esperando do lado de fora, mas você estava demorando... - se aproximou de mim. - Está tudo bem?
Engoli seco. Odeio a minha timidez.
- Esperando? Por quê?
Ouvi sua risada e sua mão passou por toda a extensão do meu braço. Arrepio.
- Te esperando, ué. Eu queria muito falar com você. Aliás, queria não, quero.
- Pois no... não?
Definitivamente eu tenho que aprender português de verdade, desse jeito não vou conseguir manter um grande diálogo com ninguém. Pelo menos eu compreendo bem.
- Primeiro eu quero te dar parabéns pela magnífica atuação. Fiquei encantada com a carga emocional que você deu à personagem. Segundo, quero te fazer um convite: quer tomar um café comigo, agora?
- No, gracias. Aqui ainda no acabou - respondi de imediato.
Sua mão pegou no meu braço e fez um carinho. Pousou-a ali.
- Ok... e que tal almoçarmos juntas no domingo?
- Eu trabajo.
Senti que o olhar da Helena me analisava.
- Claro, deve ter espetáculo no domingo, ensaio ou algo assim. O meu trabalho também ocupa muito da minha vida. Mas me diga, quando vai ser sua folga?
- No tenho.
Com alguns passos, me afastei dela falando:
- Eu... voy me trocar.
Vi a famosa bater com a ponta dos dedos na penteadeira e tentar sorrir.
- Entendi. Eu não quero te atrapalhar mais. Foi um prazer te conhece, Isabel.
Balancei positivamente a cabeça para ela, mas não disse nada. Apenas a acompanhei com o olhar até a porta do camarim."
Eu achei que nunca mais veria a Helena na minha vida, mas estava enganada. Na semana seguinte ela me enviou flores e um convite para jantar no dia seguinte.
Recusar não foi difícil. Pedi para minha assessora ligar e dizer que eu não iria.
Lembro-me que fiquei me perguntando o que significavam aquelas flores. A famosa estava querendo se divertir com uma simples atriz que mal sabia falar português? É óbvio que ela percebeu o meu interesse, mas até então eu era apenas a Isabel Casañas e ela é Helena Carvalho.
Ri de minhas próprias lembranças. Tudo parece tão atual. Talvez tenha se refletido no presente.
Quem diria que no outro dia das flores, para a minha surpresa, um carro estacionou na porta do teatro às 00:30, bem no horário que eu geralmente saía.
" - Olá, boa noite - disse Helena se aproximando de mim.
- Buen... boa noite - respondi sem jeito.
Nos cumprimentamos com um beijo no rosto de maneira desajeitada. Eu estava muito surpresa com a presença dela àquela hora.
- Surpresa?
O sorriso dela me desarmou novamente.
- És casi madrugada... Está muy tarde.
- Bem, eu acabei de sair de uma gravação e vi uma movimentação por aqui. Para a minha sorte, te encontrei.
Fiquei observando-a por alguns instantes. Seus olhos brilhavam como eu nunca tinha visto em outra pessoa. Tão pequena perto de mim, mas tão grande em presença.
- O que queres, Helena? - Perguntei direta.
Nunca gostei que brincassem comigo e muito menos com os meus sentimentos.
A mulher não se intimidou com a minha quase grosseria. Muito pelo contrário, jogou até um charme.
- Bem, eu estou tentando te conhecer melhor fora do seu local de trabalho.
- No tengo tempo para salir. Estoy cem porcento comprometida com mi trabalho.
- Uou! Mas você é dura na queda mesmo. Tudo bem, já entendi.
Helena pareceu-me ofendida.
- Perdóname pelo jeito que falei.
- Te perdoo se você aceitar sair comigo. Mas calma, só como amiga.
Fiquei pensativa. Por um lado, eu quero muito me aproximar dessa mulher, mas por outro lado tenho medo de me machucar. Bem, sair como amiga dela pode ser uma boa.
- Mi folga é na terça-feira.
- Porr*, hoje ainda é quarta... - Helena pareceu pensativa. - Quero dizer... tudo bem. Vamos sair na terça. Tem algum número que eu possa te ligar para marcarmos algo?"
Passei o meu número de celular sem saber o quanto minha vida mudaria.
Na minha folga, Helena me levou para almoçar em um restaurante e depois me apresentou o parque Ibirapuera. Algumas pessoas a cumprimentavam e conversavam. Eu, com a minha timidez, me assustei.
Por dois meses saímos durante as minhas folgas. Eu sempre na defensiva e ela gentilmente tentava quebrar a parede invisível que eu tinha construído.
" - Eu duvidava que você não tinha TV, mas estou vendo que é verdade.
Pela primeira vez eu estava recebendo a Helena no meu apartamento provisório. O que seria quase um intercâmbio por 6 meses, completará um ano em 15 dias e é a reta final do meu contrato com a peça no Brasil. Já estou em contato com alguns uruguaios e provavelmente será a minha próxima casa, assim como foi Peru, Argentina e Chile nos últimos 2 anos.
Nós marcamos um cinema, mas eu estava totalmente atrasada porque passei o dia inteiro resolvendo algumas papeladas da imigração e acabei chegando tarde em casa.
- Nunca foi minha praia - repeti uma frase que ela me ensinou para respondê-la sobre a falta de uma televisão.
- Olha quem está se tornando uma brasileira.
- Tenho a mej... melhor professora. Puedo ver las películas en mi notebook, en el cine... cinema.
- Vou fingir que não fiquei ofendida por saber que você até hoje não me assistiu.
Sorri para ela sem graça pela sua fala e fui até o meu quarto. Para não me apegar ainda mais, evitei de saber sobre a sua vida profissional. Eu preciso conversar sobre a minha partida com ela.
Não consegui tomar um banho tão rápido pois tive que lavar o cabelo. Com isso, o nosso cinema atrasou ainda mais.
- Isa? - Helena me chamou na porta. - Querida, não vai dar tempo de pegarmos a sessão das 21:00.
Droga! Tudo culpa minha! Minha primeira folga em uma sexta e o primeiro dia das férias dela, estraguei.
Sentei-me na cama e soquei de leve o colchão.
Coloquei um vestido de alcinha preto solto que eu uso para ficar em casa mesmo e saí do quarto com meus cabelos molhados.
- Desculpa, Heleninha.
A paulistana sorriu assim que me viu.
- Não se preocupe, o filme não vai sair de cartaz tão cedo, podemos ir semana que vem.
Semana que vem talvez eu já não esteja mais no Brasil.
Vi a famosa apontar para um porta-retrato.
- Mi mamá - respondi sua pergunta que foi feita com o olhar.
Eu já tinha contado toda a minha história, então ela sabia tudo sobre a ligação forte que eu tive com minha mãe e a tragédia. Carmen se suicidou aos 40 anos de idade. Há 10 anos para ser mais exata, quando eu tinha acabado de completar 18 anos. Eu fiz de tudo para ajudá-la, mas não consegui.
- Muito linda - falou chegando perto de mim. - Estamos sem programa para fazer. Ainda quer sair ou prefere que eu vá embora?
2 meses de receio, mas me aprofundando cada vez mais na magia da pequena grande mulher. Completamente apaixonada e ao mesmo tempo com medo de me entregar.
- Fica. Yo voy preparar um cena... jantar. Quieres?
- Se eu quero um jantar exclusivo preparado pela minha atriz favorita? Será uma honra.
Fui até a minha geladeira procurar algo para ser feito. Não tenho tanta coisa, afinal de contas estou quase de partida.
Olhei para a mulher encantadora. Nunca tive pesar de deixar ninguém para trás. Sempre tive as minhas relações pelos lugares que passei, mas nada além do sex* e paixão que passa. Tanto sei que com ela é diferente que prefiro até não arriscar.
- Risoto de camarão, gosta?
- Amo! - Respondeu-me empolgada. - Nunca imaginei que soubesse preparar... eu nem arrisco. Você sabe fazer mesmo, não é?
- Veremos - fiz suspense.
Enquanto preparava o nosso jantar, Helena sempre muito comunicativa emendou um assunto no outro. Falou sobre a sua infância e seus futuros projetos.
Assim foi fácil que as horas se passassem e a refeição fosse leve e descontraída entre mim e a brasileira.
Depois do jantar, extremamente elogiado por Helena, nos sentamos no sofá para acabarmos com a taça de vinho que abrimos.
Cozinhar é a minha paixão. Heleninha, como todos carinhosamente a chamam pelo seu tamanho, é a primeira pessoa que mostro este meu lado b. Apenas minha mãe e minha avó conheciam. Minha avó dizia que eu deveria largar o teatro e virar uma cozinheira. Eu apenas dava risada e seguia cozinhando para mim enquanto desbravava os palcos da América Latina.
Helena bebia enquanto seus olhos me encaravam. Diferente das outras vezes que a peguei me olhando, hoje ela nem disfarça.
- Isa.
Bel era como geralmente as pessoas intimas me chamavam, mas a paulistana disse desde o primeiro momento que seria diferente na minha vida, então mudou o meu apelido. Isa... gostei pois saiu da sua boca.
- Sí?
- Eu estou completamente apaixonada por você - disse se arrastando pelo sofá para as nossas peles se tocarem o suficiente. - Desculpe-me, mas eu não consigo mais tentar me enganar que estou satisfeita em ser sua amiga. Eu gosto de você muito mais do que isso.
- Helena...
Quando pensei em formular uma frase, fui calada pelos seus lábios. Senti a textura macia da sua boca e foi como sentir um pedaço do céu. Não vendo resistência da minha parte, a atriz 5 anos mais velha do que eu, levou uma de suas mãos até a minha nuca e com a língua pediu passagem para aprofundar o beijo.
Encontramos uma sintonia que eu nunca tive com ninguém. Nosso encaixe tornou-se perfeito e de movimentos rápidos e exigentes. Aos poucos a lentidão foi nos acalmando. Com selinhos no fim, Heleninha abriu os olhos e nos encaramos.
Ficamos em silêncio com nossas trocas de olhares. Eu tinha amado a declaração. O beijo nem se fala. Mas a barreira que construí ainda está aqui.
Helena encaixou uma de nossas mãos, mas eu não correspondi o seu aperto.
- Do que você tem medo, Isa?
Engoli seco. Procurei alguma desculpa para sair daquela situação, mas não consegui. Suspirei cansada.
- O que você viu en mi?
Helena fez uma cara de interrogação. Após ver que eu estava séria, ergueu uma de suas sobrancelhas e balançou a cabeça negativamente.
- Como assim, Isabel? Bem, naquele dia que nos esbarramos no teatro, vi sua beleza. Eu não sei explicar, foi uma atração louca - sorriu. - E depois...
- No sou tan bonita assim, Helena - disse interrompendo-a.
- Como não, Isa? Você é a mulher mais bonita que eu já vi na minha vida.
- No seja exagerada. Yo no tengo roupas chiques, no sei nem me vestir. No uso maquiagem, soy alta e desajeitada.
- Eu não acredito que estou ouvindo isso - Helena rolou os olhos para cima. - Vem, levanta.
A mais velha levantou-se e me puxou com a mão.
Entramos no meu quarto e ela me fez caminhar até o espelho.
- És naturalmente linda, não vê?! Perto de mim você é altíssima mesmo, mas talvez eu tenha esquecido de crescer - brincou. - Você é tão naturalmente elegante que até esse vestidinho básico que se encaixa perfeitamente em seu corpo é melhor que qualquer roupa chique - Helena me abraçou por trás e depositou alguns beijos na pele das minhas costas. - Agora olha o seu rosto, tudo se encaixa perfeitamente bem. Seus olhos, com seu nariz... e tua boca desenhada...
Nós encaramos pelo espelho. Voltei o meu rosto para o seu e mais uma vez nos beijamos como havíamos feito minutos atrás. Agora sem a tensão do primeiro contato, nos permitimos nos divertir ainda mais.
Ao fim do nosso segundo beijo, Helena mais uma vez juntou as nossas mãos e me estudou com o olhar.
- Você sabe que é muito além do físico, não é?! Nos últimos dois meses eu tenho conhecido uma Isabel que me encanta cada dia mais. Extremamente inteligente, mais culta até que muitos colegas de trabalho que se dizem intelectuais. Uma mulher batalhadora, forte e que não tem medo de nada... quero dizer, eu achei que não tivesse, mas aparentemente Isabel Casañas tem medo do amor. Qual o problema, Isa? Você não gosta de mim?
Sorri de lado e correspondi o aperto de nossas mãos.
- Gosto muito. Gosto mais do que podría imaginar. Pero... mas... soy una atriz viajante, poco sei me comunicar fora dos palcos, no mi gustaba la idea de me envolver com una persona famosa. Mas eu não mando en mi corazón.
- Eu também sou atriz, Isa. O fato de eu aparecer na televisão faz com que as pessoas me conheçam. Entretanto, você me conhece, sabe que eu também tenho o meu lado tímido. Essas suas desculpas são esfarrapadas.
- Es... esfa o quê?
Helena achou graça e demos risada.
- Esfarrapadas, Isa. Sem nexo, sem sentido. Não tem lógica você não querer ficar comigo porque acha que sou famosa. Qual a parte do ‘eu gosto de você' que não ficou claro? Quer saber? Eu vou ser mais direta: eu estou te amando.
Olhei em seus olhos, sei que diz a verdade.
- No puedo... mi contrato...
- Eu sei, em dois dias você se apresenta pela última vez e sei que foi hoje na imigração, vi os papeis que deixou na estante, me desculpe - pediu com sinceridade e continuou. - Não sou idiota, sei da possibilidade de nunca mais te ver. Se quiser ir porque não sente o mesmo por mim, tudo bem, eu vou entender. Mas se sente e tem receio, eu te peço: não fuja. Fique. Fique, Isa. Eu prometo te amar todos os dias da minha vida. Fique."
Eu fiquei. Por mim, pela minha felicidade, por amor, por ela. A verdade é que eu sempre procurei um lugar para chamar de lar. Minha vida em Madrid nunca foi fácil, carrego cicatrizes de uma vida difícil. Meu pai morreu durante a gravidez da minha mãe e ela nunca conseguiu sair do luto. Cresci com a responsabilidade de cuidar da minha mãe, da minha avó de idade e de mim mesma. Não reclamo, minha mãe do seu jeito me deu amor e minha avó compartilhou todos os momentos comigo com o apoio e sorriso que eu precisava.
Foi então ainda naquele dia eu soube que Helena se tornaria o grande amor da minha vida e o Brasil meu lar. Foi, definitivamente, um encontro de almas.
Meus pensamentos que estavam viajando pelo período de 15 anos atrás, voltaram a si quando o meu celular tocou.
Na tela está a foto de Helena. Eu pensei que ela mandaria uma mensagem pelo aplicativo. Pega de surpresa.
Tomei mais um pouco do vinho e atendi a ligação já deixando bem claro o que queria:
- Gi não vai morar com você, Helena.
"- Isabel, por favor, tente manter a calma. Escuta-me, eu também estou sendo pega de surpresa com a Gi querendo morar comigo..."
Eu não sabia que estava com tanta saudade de escutar a voz dela e isso me deixou ainda mais nervosa.
- Ah, claro. Você quer que yo acredite nisso? ¿Es serio?
"- Isabel, escuta-me! Eu te juro que nunca fiz esse pedido à Gi. Quando eu sugeri dividirmos as semanas, você falou que resolveríamos na justiça, mas nunca entramos com processo..."
- Agora entendo por quê. Su plano era manipulá-la e conseguiu.
Ouvi Helena respirar fundo por três vezes. Sinal de que ela está ficando nervosa, mas que tentará manter a paciência.
"- Neste final de semana eu senti a nossa pequena triste. - O meu coração apertou, pois eu percebi a mesma coisa pelo pouco que consegui estar com ela durante a semana. - A última coisa que eu quero é que o fim do nosso casamento a afete de alguma forma. Eu acho que devemos entender o que está acontecendo com ela juntas. Vamos sentar e compreender o que a fez pedir isso... eu não quero brigar, por favor."
Não me senti confortável com a ideia. Encontrar-me com Helena de livre e espontânea vontade está fora de cogitação.
"- Isa?"
Meu sangue subiu. A paulistana e seu jeito doce que sempre usou para me fazer ceder alguma coisa. Não desta vez.
- Não me chame de Isa, Helena Carvalho. E você não me engana mais com esta voz dolce. Yo no voy me sentar com você para nada. Eu só peço que não me tire a Gi.
"- A última coisa que eu quero é isso. Pense na minha ideia de a Gi passar uma semana comigo e outra com você. Ela é só uma criança e não merece sofrer as consequências das nossas escolhas..."
Nossas escolhas? A minha escolha era passar toda a minha vida com ela.
Explodi:
- Sua escolha! Tú deberías ter pensado nisso antes de ter enfeitado a minha cabeça com um par de chifres.
Encerrei a ligação e me joguei na mesa. Senti que esbarrei em alguma coisa, o barulho de taça se quebrando foi o que bastou para permitir que me entregasse ao pranto.
"Eu nem estava acreditando que a externa tinha acabado às 15:20 daquela sexta-feira. Tudo bem que começamos a gravar com o sol começando a nascer e que era uma final inovadora de ‘Atuando', o reality show para novas talentos da atuação, mas mesmo assim a previsão era que acabaria no começo da noite.
- ISABEL!!! - Maurício gritou bem no meu ouvido.
Claro que eu levei um susto e descontei nele com alguns tapas. Meu amigo galã grisalho nunca perde a oportunidade de fazer um exame cardiológico em mim na frente ou por trás das câmeras.
Toda a nossa implicância terminou com um abraço de lado e um beijo no seu rosto.
- Eu nem acredito que vou chegar cedo em casa - disse se espreguiçando. - Estava fazendo o que aqui parada que nem uma barata tonta?
- Estou procurando a Helena. Eu disse para ela que iria para casa e fui direto para o nosso camarim trocar de roupa, mas acabei lembrando que viemos juntas em um carro só.
- A última vez que vi a sua amada foi lá no jardim que gravamos umas entradas. Mas se você quiser, eu posso dar uma carona para ela.
- Obrigada, pero eu preciso ter certeza de que ela não vai se importar. Qualquer coisa hoje é motivo para brigar em casa.
- Ainda nesse clima? Já cansei de te dizer para ter uma DR daquelas. Vocês vão acabar se machucando.
- Eu sei, meu amigo. Bem, eu vou dar uma conferida lá no jardim e te mando uma mensagem sobre a carona - falei dando um beijo no seu rosto em despedida.
Fui ao local indicado, mas nada de Helena por lá. Comecei a ficar preocupada. Pior é que terei que ficar procurando-a porque seu celular está no camarim.
O único lugar que não procurei foi na cozinha..."
E foi lá que perdi uma parte da minha vida.
"Parei na porta ao ouvir duas pessoas conversando. A voz é da Helena e a outra é do... Gustavo. Sim, o participante que eu e os meninos acabamos de avaliar o sua atuação e que pelo jeito tem grande chance de levar o troféu. Insuportável, mas um excelente ator.
- Deixa a Isabel pra lá - ouvi Helena dizer.
Eles riam de alguma coisa. Ou pior, de mim. Me incomodei na hora.
- Hum... isso daqui está uma delícia. Foi você mesmo que fez?
Vi que a meu amor comia um bolo que ele confirmou com a cabeça ter sido feito por ele.
- Me inspirei em você.
Ouvi um grito fraco de surpresa. O que vi foi o Gustavo suspendendo a Helena pela cintura e girando-a.
- Me coloca no chão, Gustavo!
Ela ordenou, mas o fez rindo de toda situação.
Ciúmes? Esse sentimento maldito gritou dentro de mim. Queimou-me por dentro como tantas outras vezes desde que começou esta temporada. O pior de tudo é que eu não sei lidar com ciúmes. Nunca soube. Até me acostumei a guardá-lo dentro de mim e lidar com minhas inseguranças sozinha. Diferente da minha esposa que sempre demonstrou e até já brigamos por isso.
Quando pensei em sair de lá para esquecer essa bobagem, dei uma última olhada para eles.
Quebrei-me inteira quando o participante colocou suas mãos na cintura fina da Helena. A cena a seguir passou em slowmotion: eles se beijaram.
Eu só tive tempo de lembrar como se anda para apressar os meus passos para longe dali."
Destruída e jogada na minha mesa, sinto o meu rosto banhado em lágrimas. Há meses não chorava, mas uma hora esse choro acumulado tinha que transbordar.
Fim do capítulo
Até a próxima!
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EliandraFortes
Em: 12/10/2020
Não conhecia a autora, mas já amei Isabel e Helena...ah e a Gi. Tomara que atualize sempre.
Resposta do autor:
Bem-vinda e obrigada :).
Atualizo sempre 1 vez por semana.
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preguicella
Em: 11/10/2020
Uouuu! Que bom que voltou e voltou em grande estilo!
Já gostei da história, devorei os dois capítulos e morrendo de ansiedade pelo próximo!
Bjão
Resposta do autor:
Eba! Fico feliz em te ver por aqui, preguicella!
Bjão.
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