#2: Felipe
Felipe tem 23 anos, calvície precoce e algumas sardas (no rosto, mas principalmente nos ombros e nas costas). Sempre quis ter barba, mas a sua era toda falhada, nem só o bigode ficava bom, ou apenas as costeletas alongadas, e ele ainda não era louco ao ponto de fazer um implante de barba. Era? Não sabemos, ele dizia que não.
O cara tem um estilo todo próprio, todo seu, uma malemolência característica, forçava até um gingado que não existia até o ano passado, só para fazer pose, fazer cena, fazer graça. É uma ginga que mexe com as mãos, e os ombros vão meio que no sentido oposto, parece que está dançando, parece que está caindo. Um break muito louco, sem música, nada a ver. Felipe não tinha amigos chegados que dão aquele toque, falam “pô, cara, pega leve, não está legal, não está bacana”. Mas ele tinha quase um milhão de seguidores no Twitter.
Visualmente, Felipe era bem aqueles caras de internet, se dizia eclético, se dizia exótico, vestia umas peças que tinham como intuito só chamar atenção, mesmo (ainda que horrorizando quem o via; muitos se questionavam como alguém tinha coragem de sair de casa daquele jeito). Ele gostava era de causar, sabe como são esses jovens – é uma geração muito louca que já deixou para trás aquela que a antecedeu, que também era bem singular, com suas peculiaridades, gostava de Pokemon e Dragon Ball (Z) – porque Naruto é tão clichê!
E Felipe gostava de demonstrar que era especial de verdade, que era único, e aí por isso usava umas roupas um número maior que o seu tamanho, as calças, as bermudas, tudo exceto as camisetas, que ele comprava escondido na seção feminina das lojinhas virtuais. Comprava mesmo, mandava entregar tudo em casa, se alguém visse ele diria que era para alguma mina, sei lá, sua mãe (se na hora ele não conseguisse pensar em algo do tipo). Sua preferência eram aquelas brusinha mais justinhas, com a manga apertadinha, que ressaltam seus, cof, cof, “músculos” (reforçam também o seu ego, mais inflado que os braços, vítimas de anabolizantes com eficácia duvidosa).
Naquela manhã ele tinha escolhido uma camiseta cor de abóbora onde se lia nas costas: “Já amanhesi cançada”, em referência ao meme, com a bonequinha ao lado, desenhada (cópia fiel, igual o original). Ele pirava nessas coisas de meme, amava memes! Sentia que era uma revolução aquilo tudo, até na forma de se comunicar, mesmo. E Felipe tinha aquela peculiar capacidade de manter um diálogo por longos minutos apenas se valendo de memes. Era “ótchimo”.
Ou não, se o interlocutor fosse leigo. Alguém, por exemplo, dos tempos de Orkut e Colheita Feliz... ou até mesmo alguém de antes disso, cruzes! Já pensou? Aquela galera que usava disquete (que porr* é essa?, disquete?).
Estar por dentro dos memes era trabalhoso, mas valia o esforço que lhe dava todo um status. E Felipe jamais revelaria, nem para si mesmo (era todo desconfiado de que o Google o vigiava, gravando suas conversas para depois mostrar os anúncios bem assertivos), mas era cansativo se manter sempre atualizado e a velocidade da internet é incalculável, é absurda, é surreal. É que nem aquele vídeo que o cara vai tirar uma selfie perto da linha do trem, leva um tapa e nem sabe de onde. O “ultrapassado” às vezes foi há dois minutos, sabe? Foco!
Felipe era um especialista moderno, das redes sociais e, por que não, das pessoas, dos usuários, dos logins todos por detrás das contas. Para ele, era sempre um indício quando não se fazia ser compreendido: prova de que cada um vive mesmo numa bolha!, pobres criaturas! Mas também era aquilo: se as pessoas não o entendiam, elas que se virassem para entender. Exceto seu pai e sua mãe. Com eles Felipe sempre conversava que nem gente, normal. Mas soltava às vezes, sem querer, um “ezatamentchy”. Força do hábito. Ele não deslogava. Nessas hora só ele ria.
Não tinha irmãos, era filho único, criado à base de Danoninho com pera, na infância ninguém brigava com ele pelo joystick do videogame ou para ver quem tomaria banho primeiro, então nem tinha com quem compartilhar essas histórias íntimas de família, as cenas que seus pais protagonizavam (e que eles próprios classificavam como “micos” quando contavam histórias desconexas que envolviam, por exemplo, uma ficha que não caiu. Quê?). “Quem entende os pais” foi um dos seus podcasts mais acessados desde o início do ano.
Nem tudo Felipe compartilhava na internet, achava que seria um pouco de exagero devassar sua vida pessoal assim, ainda que gerasse buzz, possíveis novos seguidores e uma remexida na audiência. Mas, veja que contraditório, ainda assim, mesmo com esse quase senso de ridículo era comum o moço postar fotos um tanto quanto comprometedoras. Ele mesmo se queimava, às vezes, sozinho. Tipo a grávida de Taubaté! Geral ficava “mano, pra quê?”.
Este era Felipe. Que naquele momento dirigia descalço, despreocupado com todos os haters; ao lado, embaixo do banco do carona estava o seu crocs preto (superconfortável, alvo de polêmicas, ficava ótimo com meia). Ele gostava de prender o dedão do pé esquerdo no pedal da embreagem, mas estava com o carro da mãe, que era automático. O seu carro estava na oficina, tinha arranhado na semana anterior, ao sair da garagem. Era muito estreita aquela passagem, sai fora! O som que a pilastra causou na lataria do carro vermelho, quase um grito, estridente e metálico, só não foi mais audível porque a música já estava no talo, desde a partida. Tocava Raça Negra na altura 37, mas Felipe disse que era Black Sabbath quando contou a história, enquanto filmava o carro sendo guinchado pelo seguro. Foi um publi ótimo, fez valer o esquema com a seguradora. Mas antes de tudo, antes do REC, o seu primeiro pensamento após o ocorrido foi: “morre, diabo!”. Até saltou um pouco os olhos, sorte que ninguém viu. Teria virado meme, com certeza. Meme do meme.
O rapaz está sempre de boné, e já há alguns meses era sempre visto com o mesmo, um azul, já meio esgarçado atrás, puído na frente, com um emblema pequenininho, azul escuro, na lateral esquerda (um alce, com longos chifres). Embaixo estava escrito “caribu”, com letras brancas.
Felipe tinha complexo com a testa desde a infância, uma bobeira, mas ele a achava muito grande e projetada para a frente, saliente de um jeito feio, esquisito. Se convenceu de que era um pouco não convencional demais e ele era daquele tipo de pessoa que não arreda o pé quando se convence de algo. E aquilo nem cabelo escondia – ele tinha testado ao longo dos anos, nas baixas temporadas, alguns cortes diferentes, e até franja. Cedeu à franja! Nada.
Adotou o adereço na juventude, lhe pareceu uma boa ideia, era aceitável que meninos (mesmo os com testas normais) usassem bonés, ainda que não houvesse sol, que fosse noite, ou mesmo dentro dos lugares, e aquilo virou quase uma parte dele, era uma extensão sua, e agora Felipe parecia até careca quando eventualmente ficava sem aquilo na cabeça – por exemplo, na hora de dormir, ou quando tomava banho e se via de relance no espelho do banheiro, depois de tirar o embaçado do vidro (ele era doidão, tomava banho quente até no verão). Nessas horas sempre cerrava um pouco os olhos e, mudando o tom de voz, se perguntava: “eu sou uma piada para você?”. Antes de rir já estava com o boné novamente, por cima do cabelo molhado mesmo, ele nem ligava, e aí acontecia que ensebava tudo ali dentro, dava caspa.
O boné tinha também outra funcionalidade, utilíssima: a aba era boa para esconder a soberba dos olhos de Felipe, castanhos, iguais do pai, arrogante. Mas ele usava lentes, verdes. Combinava com o seu ar de playboyzinho. Foi o que pensou, ao se olhar no espelho retrovisor. “Se isso é estar na pior, porr*n...”.
Fechou os vidros ao observar alguns moradores de rua, ainda que distantes dele por alguns quilômetros por hora. Sessenta e cinco, para ser exata, um pouco acima do limite, mas dentro da tolerância do radar que talvez fingiria não ver a placa do seu carro. Ele era homem, branco, hétero, privilegiado até as tampa. E recorreria, é claro, caso fosse multado. Dava carteirada mesmo, essa é a real, sua sorte é que nunca tinha sido filmado nessas horas. Se fosse, brincaria dizendo “estou triste, não estou feliz” e “meu pai vai me matar”, só para quebrar o gelo (descanse em paz, “bêbada de Curitiba”). Daria muitos views, certeza!
No banco de trás do carro, espalhados, se veem alguns materiais da faculdade: dois livros (um com a capa rasgada, o outro com orelhas marcando as primeiras páginas), um caderno com quase todas as folhas em branco e um calendário de papel, com algumas datas marcadas com caneta vermelha (em círculos). Felipe estudava Publicidade e Propaganda, quinto semestre, mais por pressão dos pais do que por gosto, ou vocação. Sim, Felipe achava que diplomas podem ser inúteis, às vezes. No seu caso era! Se fizesse realmente sucesso seria porque ele me-re-ceu!.
Quando perguntado, se dizia ser influencer – o antigo “blogueirinho”, atual “tik-toker”; profissões modernas que basicamente consistem em existir. E se divulgar. À exaustão e com links patrocinados. Vale tudo, até robô (teve um presidente que se elegeu assim, né?). Desde que ganhou de presente de aniversário um Iphone XYZ, em julho, Felipe gravava e editava vídeos para o iutubiu. Tinha encontrado um app incrível, com efeitos cabulosos, que deixavam muitas versões grátis no chinelo. Seu último vídeo editado assim teve 2k de visualizações. Ele mirava nos cem mil. Muita gente conseguia, e isso não era nada em se falando de universo da internet, então ele nem pensava na impossibilidade de ocorrer. A autoconfiança pode ser uma bênção mesmo! Ninguém derrubava o forninho de Felipe! Segura essa!
Felipe estava sempre envolvido em algum protesto ou manifestação – em especial aqueles que têm visibilidade, ou geram algum tipo de comoção midiática. Mudava até a foto do perfil, alterava os avatares todos em aderência. Nisso cabiam desde as reinvindicações pela demarcação das terras indígenas até a proibição de canudos no Mc Donalds ou a #segundasemcarne (apesar de ele comer hambúrguer. Era só “ativista de sofá”). Acreditava que valia tudo pela visibilidade da coisa (até a causa, em si, às vezes). Por isso seguia algumas hashtags peculiares no Instagram (ele já era uma #!). Aí antes de dormir procurava sempre um adjetivo que significasse “antenado”, mas com outro nome. Era como “contava carneirinhos”.
Felipe também tinha um que espiritualista. Amava raves, festas eletrônicas, eventos psicodélicos. Quanto maior fosse o nome, melhor. E ele sempre se preparava previamente para a ocasião, no dia fazia uso de drogas ilícitas (umas que também mudavam de nome, claramente numa ação de marketing ilegal, que contavam especialmente com a sua parcela de placebo para atingir aquilo tudo que prometia). Sempre já chegava no rolê no grau, e depois jurava que tinha experimentado alguma situação transcendental, trazia sempre recados do seu Eu Superior (que ele precisava anotar, sempre dava branco depois). Era um exemplo típico do tal “jovem místico”.
Felipe é daqueles caras que se enquadram na categoria “macho palestrinha”, que alguns taxam como “mansplaining” (como se o português não tivesse palavras suficientemente poderosas para enquadrar as pessoas em quaisquer categorias que sejam!). Era o sabichão das rodinhas, mas pesquisava sempre no Wikipédia; se dizia evoluído e lia revistas de trás para frente (mas a verdade é que ele não lia nada; só via as figuras). Enfim, a hipocrisia.
Parou no semáforo ainda no amarelo, queria ver do que se tratava o e-mail que tinha acabado de fazer vibrar o relógio no seu pulso, com a notificação. Era algo falando do Amoêdo, o seu candidato nas últimas eleições. Claro, a culpa nunca foi dele! Felipe era eleitor do Novo.
Fim do capítulo
Comentar este capítulo:
Rain
Em: 19/09/2020
Oi!
Felipe é todo doido, tipo doidão mesmo. Nem eu chego a esse nivel de doidura. To ficando curiosa para ver onde tudo isso vai dar.
De onde vem o nome "Caribu"?
Até a próxima, bye,bye
Resposta do autor:
Felipe é "macho palestrinha", né rs Não podemos exigir mto do moço rsrs
"Caribu" é uma espécie de alce, um tipo de veado. "Alce" é um dos meus apelidos. Acredito em reencarnação e soube que tive uma vida em que fui índio, e me chamava Caribu. Eu sempre falo brincando que nesta vida sou indiazinha, então veio a calhar! ♥
Ate a próxima, bjo!
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