Allynne (Aline)
Allynne é uma pessoa marcante. Em partes porque deixa por onde passa um rastro forte do seu perfume, comprado em catálogo. Ela gosta dessas simplicidades de não precisar ir a uma loja, ser atendida por uma pessoa, ter que pagar para outra para, enfim, borrifar um aroma que amenize a toxicidade que a rodeia (em partes porque a qualidade dos seus pensamentos é bastante duvidosa). A verdade é que Allynne não gosta de nenhum tipo de convívio social; se pudesse moraria em uma caverna, de preferência escondida atrás de alguma cachoeira (tipo Zumbi dos Palmares, só que diferente).
Outra coisa que ela não gosta é do seu nome. Acha que tem muitos Ls, e muitos Ns, e um Y que parece que sobra. Quando criança, na escola, na época da alfabetização, não entendia como era possível escrever um nome com tantas letras a mais do que o som da palavra. Sua mãe, ao contrário, achava chique, se divertia. Sempre se achava sagaz pelas ótimas escolhas de nomes (dos filhos e de todos os animais de estimação que teve ao longo da vida, até ali).
Allynne (que chamaremos simplesmente de “Aline”, de maneira respeitosa) certa vez teve uma crise de ansiedade, na tenra idade, porque como pensava muito nessas coisas de letras, entrou num pensamento de nomear cada uma conforme o som (por exemplo, “bê”, “cê”... “efe”, “agá”) e quando chegou no J não conseguia lembrar qual era a primeira letra do nome dessa letra (no caso, J, de “jota”). Daquele momento em diante evitava qualquer pensamento que envolvesse o alfabeto, e passou a assinar como “A”, “ele” “i”, “ene”, “e”, simplesmente.
Mais tarde, quando o ocorrido voltava à lembrança, se ria um pouco (mas nervosamente).
O fato é que ela sempre acreditou ser dotada de algum poder especial (ou isso ou algum tipo de transtorno) porque sua cabeça funcionava com uma lógica (se é que havia uma!) que não parecia ser a do senso comum. Aline pensava numas coisas que às vezes ela até desacreditava, e aí começava a pensar que aquele pensamento era de alguém que não necessariamente era ela, e aí aquilo virava quase uma discussão, com muitas vozes, e ela se questionava, várias vezes, se tinha esquizofrenia ou mediunidade.
Houve casos em que ouviu uma resposta. Certas vezes ela se diverte. Em outras só mudam de assunto.
Apesar da ojeriza com relação a toda e qualquer pessoa que não habita seu campo mental, o ofício de Aline pode ser considerado ingrato, porque ela trabalha com telemarketing. Em duas frentes: cancelamento de serviço, em horário comercial, e oferecimento de serviço, nas horas extras.
Se ela detesta? Acredita-se que sim, por mera suposição – ninguém conhece Aline a não ser Allynne. Mas é fato que ela vê alguma magia ali, talvez porque se trate de um trabalho em grupo. Não se sabe o que se passa em sua cabeça naquelas quase 13 horas de atendimento a estranhos. Às vezes parece até que ela sorri!
Nas horas vagas, escassas, ela simplesmente sai para andar. Deixa que as vozes comandem também as suas pernas, em cada passo, em cada virada de rua. Esquerda, direita? Quem sabe. Ela se deixa levar (e quase sempre se permite voltar de Uber, porque em geral se afasta alguns vários quilômetros de onde mora).
Nas voltas, cansada, vítima de uma timidez estonteante e dona de uma introspecção gigantesca, Aline sempre inventa para o motorista do aplicativo uma versão diferente de sua vida.
Fim do capítulo
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