Terceira Parte
Amanda saiu de casa contrariada, desconfiada e se sentindo esquisita de várias maneiras. Antes de chamar o elevador inclinou a cabeça meio de lado, tentou ouvir alguma conversa ali perto. Ao atingir a calçada olhou para os dois lados da rua, receosa. Viu vários sacos de lixo perto do poste, um morador de rua dormindo ao lado de um cachorro embaixo do seu carrinho e um moleque com os olhos vidrados de crack e potencial de assaltá-la do outro lado da rua. Nenhum perigo iminente, ufa.
Seu coração ficou agitado até perto da hora do almoço. Fez umas meditações guiadas e colocou no Youtube um vídeo de Ho’oponopono. “Eu sinto muito. Me perdoe. Te amo. Sou grata”. Repetiu que nem mantra, até as palavras perderem o sentido depois de muitas repetições (o cérebro parece que dá um tilt, quando vê está se perguntando “muito? M u i t o? Mui-to?”). No começo da tarde, logo depois do almoço, Amanda se sentou no sol, perto de onde as pessoas fumavam, mas o único local que os raios alcançavam àquele horário. Foi ler então a história de Letícia, a que faltava, cuja notificação a despertou naquela manhã.
Era um poema.
Meio complexo – ou só era confuso demais (parecia um tuíte do Carluxo). Falava basicamente sobre verbos. Verbos e conjugação. Amanda não entendeu direito. Mas se convenceu de que o surto na hora do café tinha sido só um alarme falso. Aí voltou a achar fofo que a autora tinha um gato com o nome parecido do seu.
Desligou o celular aliviada e ficou olhando as rodinhas das pessoas conversando. Pareciam uniformes demais, todos vestindo a mesma roupa, dentro daquele espaço cercado por muros altos, mas ela captava a essência dos colegas. Riu sozinha ao constatar de que era mais fácil ler aqueles gestuais do que compreender o poema de Letícia.
Colocou um audiobook para tocar na hora de ir embora. Era um conto erótico que tinha descrições que quase a ruborizavam. Quase. Amanda já tinha lido muita coisa +18. O enredo era cativante, basicamente falava sobre dominação entre duas mulheres desconhecidas, e a trama tinha umas reviravoltas muito inesperadas, o que a fazia balançar a cabeça de vez em quando, espantada com o que ouvia. Ou a história provocava nela um sorriso, e ela tentava não transparecer naquele gesto a malícia que ali cabia. O metrô estava lotado àquela hora.
Amanda se sentia ao mesmo tempo corajosa e ousada, e aquele era um sentimento constante na sua vida em São Paulo, uma cidade onde as pessoas não têm muito tempo para reparar em você – ou até reparam, mas no centímetro seguinte tem outro, mais esquisito, e aí você já é esquecida. Tudo tranquilo, ninguém não está nem aí para você! É ótimo e libertador em vários níveis.
E era para Amanda tão excitante – ser uma estranha excitada, se sentindo molhada no meio do vagão lotado, ouvindo aquele script louco, aquela teia de elementos interessantes, e descrições bastante detalhistas – que desceu duas estações depois. A estação Paraíso estava uma loucura, quase tanto quanto a Sé, e ela caminhou por entre a massa saboreando as informações que seu cérebro captava: “Mandei que ela abrisse as pernas. Ela tremia, e senti ali certo vacilo, quase um receio em me obedecer. Seria possível?, àquela altura ainda ter que lidar com malcriações e insolência? Dei um tapa na sua bunda, forte, meus dedos arderam no mesmo instante. Sorri satisfeita quando ela gem*u, de dor e prazer, e se abriu, se oferecendo. Não disse um ‘ai’”.
“Oi!”, Amanda ouviu. Se assustou, puxou o fone com força para fora do ouvido. Era uma moça quase da altura dela, tinha um sorriso no rosto. Viu a placa da estação pouco antes de as portas fecharem: São Bento.
Respondeu o cumprimento, se disse surpresa, contou que passou da sua estação e nem notou. A moça sorriu mais ainda, a achou engraçada. Comentou que já a tinha visto antes, sentada na escada do metrô São Joaquim – no sentido oposto ao que se dirigiam naquele momento, na velocidade do trem do metrô. Perguntou se ela estava perdida. Amanda ficou sem graça, não estava esperando aquilo (nada daquilo). Mentiu dizendo que ia visitar uma amiga, achou a pergunta invasiva. Mas ela era uma romântica nata, adorava acreditar que a vida real podia ter aquele toque mágico dos romances. Quem sabe aquilo não tinha acontecido justamente para que se conhecessem?
Desceu na estação seguinte e a Luz é outro local em que há integrações (aqui, com trens da CPTM). Aquela era sua terceira muvuca na última hora. Tudo porque estava com fogo na pepeka. A moça desembarcou também. Quis passar seu contato antes de sumir na multidão. Disse que se chamava Léo. “Léo?”. “Leocácia”, ela disse, suspendendo as duas mãos como quem diz “o que posso fazer?”.
Desapareceu, como mágica, no meio das pessoas que iam e vinham de todos os sentidos. Amanda reembarcou sentido Jabaquara. Não ouviu mais o conto porque agora sua mente fabricava para ela uma nova história. Uma história de amor entre Amanda e Leocácia. “Amanda e Léo”, ela se corrigiu com um sorriso meio bobo.
Se sentia meio levitando quando subiu os poucos degraus da saída da sua estação. A feirinha ali na praça já estava montada, ela se perdeu por alguns instantes sentindo os cheiros e vendo as cores, os movimentos. Se sentia grata por morar naquele bairro, era uma experiência quase intercontinental! Parou numa banquinha e pediu uma guioza. Estava salivando enquanto aguardava, e viu uma silhueta passando por detrás do vapor das panelas japonesas. Voltou, de repente, a ficar em alerta. Ainda havia aquela questão.
Pediu para embalar para viagem, e se programou para caminhar bem rápido – o suficiente para o vento do começo da noite não gelar o seu lanchinho. E quase correu por entre as pessoas na calçada, naquelas ruas com postes de luz com formatos divertidos, que parecia que se acendiam conforme ela avançava, segurando com as mãos sua sacolinha de papel.
Mal abriu a porta e Nhoque a recepcionou cheio de queixas*. Na cabeça de Amanda, seu gato dizia: “Finalmente, puta! Onde você estava? Eu estou morto de fome!”. Era um miau miau miau sem fim. Ela pediu que ele esperasse um pouco, e balançou a cabeça contrariada quando viu seu potinho cheio em cima da pia. “Pô, Nhoque, deixa de ser fresco!”, ela pediu, mas fazendo afagos no bichano, que ainda miava.
Comeu em pé, encostada na pia, e estava só um pouco morno. Ela fingiu que estava ótimo e lambeu até os dedos antes de jogar o papel no lixinho. Foi dali direto para o banho – estava um friozinho propício para uma leitura. Estava debaixo do chuveiro quando alguém se movimentou atrás da cortina de seu quarto.
* Nessas de acharmos que interpretamos nossos bichos, acabamos por acreditar que eles falam o que não nos dizem. Nhoque, longe de ter voz fina, ficou feliz quando a dona finalmente chegou. Assim que abriu a porta ele lhe disse: “Escrava, alguém invadiu o apartamento”.
Fim do capítulo
Dedicado à leitora Aja, que tem nome de verbo, mas se chama diferente ♥
Comentar este capítulo:
rhina
Em: 30/08/2020
Gatos.
Ulisses.....
Max......
Pérola.....
Meus.
Rhina
Resposta do autor:
Ah, eu tenho um livro que o papagaio se chama Ulisses ♥
(adorei os nomes! Gatos são ótimos ♥)
Tenho uma cachorrinha que tem um nome só, mas mil apelidos rs Deve sofrer de distúrbio de personalidade, tadinha rs
Ultimamente eu vinha chamando ela de "Mamãe", mas ela tá cada dia mais velha (rs), então agora ando chamando de "Vovó" rsrs
rhina
Em: 30/08/2020
Eae Amanda continua as coincidência:
Meditações guiadas ( a noite., durante ao dia e pelas manhãs)
Hooponopono não falta jamais.
Rhina
Resposta do autor:
rsrsrsrs
Olhe bem para fora da janela hoje quando for dormir rsrs
Vc pode estar sendo vigiada rsrsrs
[Faça o login para poder comentar]
Luasonhadora
Em: 24/08/2020
Amanda se parece comigo no sentido de sair pelas ruas e imaginar quem é quem por detrás das "câmeras" se assim posso dizer.
Vagando pelas ruas e pela mente, gostando bastante de todo esse mistério rs
Resposta do autor:
#somostodasamanda rs
Meu passatempo preferido é fazer isso rs Crio história pra todo mundo rs
Tem um senhorzinho que eu chamo de Seu Craudinho, nossa a história dele é linda rsrs Às vezes mudo meu trajeto só pra passar na frente da casa dele e ver se ele tá bem hahahaha
O véio nem sabe que eu existo hahaha
[Faça o login para poder comentar]
Aja Rocha
Em: 23/08/2020
Gosto de ver as reações de amanda lendo/ouvindo hehe, me lembra alguém que conheço rs.
mas vamos comentar, né, áudiobook é uma coisa preciosa, principalmente para os dia de preguiça.
a leocácia foi mais um ponto pra sua acessória. rs.
tenho duas teoria sobre essas movimentações suspeitas. uma é mais gore (talvez seja a minha preferida pois gosto de umas esquisitices), a outra é mais racional, diria que possível.
Aaaah, obrigada pela dedicatória â˜ºï¸ ðŸ’š
**** não demora a atualizar, não estica o supense, veja bem como acabou o capítulo (coração de leitora é só um) ****
Resposta do autor:
Te lembra alguém, né? Coincidência interessante rsrs Se eu fosse vc, fechava bem as cortinas essa noite! Aloka! Hahaha
Ando pensando em me aventurar nesse mundo de audiobook! Não sei, tenho sotaque rsrs
Léo é a cereja do bolo rsrs Aguarde!
Vc mereceu a dedicatória! â¤
Finalizo o conto essa semana! Palavra de caribu!
[Faça o login para poder comentar]
Deixe seu comentário sobre a capitulo usando seu Facebook:
[Faça o login para poder comentar]