Segunda Parte
Ler os escritos de alguém é conhecer muito da pessoa. Dá para traçar o perfil psicológico de alguém apenas analisando o que esse alguém produz. Sim, porque as palavras que saem da ponta de uma caneta têm total relação com a mão que escreve. Ao menos essa era a teoria de Amanda. Se achava especialista nos outros conferindo o que eles diziam, ou melhor, escreviam.
Se apaixonou pela escrita de Letícia. Leve, porém intensa, bem humorada, objetiva. Ela sempre teve um pouco de preguiça de quem se vale de muitos adjetivos, ou quem dá muitas voltas e não sai do lugar, ou quem escreve com muitos erros. Isso não acontecia com aquela autora. E em uma transição de linhas Amanda ria, suspirava ou desviava os olhos para o teto para refletir sobre o que tinha lido. Às vezes em sequência.
Em poucos minutos (na verdade foram algumas horas, mas ela nem percebeu o prédio vizinho se apagar aos poucos e adormecer) leu coisas profundas, que mexiam com ela enquanto ia absorvendo aquelas palavras, aquelas ideias. E leu também piadas do tipo “tio do pavê” que a fizeram soltar só um arzinho pelo nariz enquanto pensava “ai, Letícia, que besteira”.
Escolheu a dedo o primeiro texto para comentar e optou por um que fazia uma analogia entre um jardim florido e o inferno (um texto ótimo, com uma boa sacada). Seu comentário foi curto, mas educado: “Amei seu trabalho. Que a Santa Inspiração te brinde, sempre”, seguido de um coraçãozinho.
Apoiou o celular na mesinha e sorriu, enquanto se virava até o gato para lhe encher um pouco o saco. O bicho deu uma resmungada, mas mesmo assim ofereceu-lhe a barriguinha. Amanda estava verificando uma manchinha em Nhoque quando o seu celular vibrou. Letícia tinha respondido sua mensagem.
Ela fez uma piada quanto ao fato de ser ateia, e perguntou se ela achava que isso a atrapalharia de receber alguma santa ajuda. Amanda a achou ainda mais divertida, e se sentiu especial por receber da sua já autora favorita uma comunicação direcionada, assim, tão rápido. Quem não gosta de ser mimado e receber um pouco de atenção, não é mesmo?
Ainda sorria quando levantou para fechar a janela. Parou um instante na beira, apoiando um dos braços enquanto segurava com a outra mão as pontas da mantinha sobre os ombros. Um vento gelado entrava pela frestinha aberta, e despenteou seu cabelo. Ela observava um morador de rua, lá embaixo, empurrar um carrinho pelo meio da rua, e puxou a franja para o lado, distraída.
De tantas histórias que as pessoas podem ter, as que as levavam a morarem nas ruas eram as que mais a intrigavam. Tinha dificuldade de imaginar que infernos tinham sido vividos para resultarem naquilo. Era triste, ela ficava triste.
Pensava nisso quando fez o movimento de fechar a janela, mas o cabelo no mesmo instante se despenteou novamente, e ao mexer a cabeça quase simultaneamente viu um movimento na janela à frente. Pareceu ter visto alguém se escondendo. Ficou alguns segundos olhando em direção de onde tinha visto o vulto, mas nada aconteceu.
“Foi só uma impressão, Nhoque, não entra na pira”, ela disse para o gato, deitando-se e se cobrindo até a cabeça. Estava ali na cabaninha, já quase dormindo, quando tudo de repente ficou claro, com uma notificação do celular: “Sua autora favorita atualizou uma história”. Amanda pensou “eba!”, mas dormiu segurando o aparelho, sem condições de ler. Já era tarde, no dia seguinte ela levantaria cedo para o trabalho.
Despertou algumas horas depois. Especificamente um minuto antes do despertador tocar, com o “plim” de uma notificação no celular. Quis soltar um palavrão, mas mudou o rumo da prosa interna quando viu piscando na tela: “Sua autora favorita atualizou uma história”. Sentou na cama, meio mole, ainda confusa do sono, e ignorou o gato miando na porta. Na sua cabeça Nhoque tinha uma voz bem fina, e sabia ser grosseiro às vezes – como agora, que parecia dizer “me sirva, vadia, tenho fome”.
Foi na ordem das histórias. Clicou primeiro na que tinha sido postada um pouco antes de ela adormecer. E conforme lia, ia arregalando os olhos, e contraindo as sobrancelhas, e a testa, e piscou repetidas vezes enquanto uma voz de narrador contava, na cadência, aquilo que Letícia tinha escrito. Basicamente era uma história sobre seu gato, Lasanha.
Seu primeiro impulso foi achar que era uma coincidência fofa (“Nhoque”, “Lasanha”), mas os elementos todos do texto, as descrições todas, tudo era muito familiar. Estranhamente habitual. OK, gatos são muito parecidos, e se comportam de uma maneira mais ou menos igual, mas peraí. Antes de formular um pensamento mais sólido, o despertador tocou, mudando a tela. Nhoque, nervoso, subiu na cama no mesmo instante e a cutucou com a pata. “Vai, escrava, me alimente!”.
“Ai, Senhor Nhoque, que saco”, ela disse, saindo da cama, pisando firme, calçando as pantufas de qualquer jeito e caminhando em direção à porta. Tropeçou na mantinha ali no chão, derrubou o celular, caiu até a bateria, que foi parar embaixo da cama. “Puta. Que. Pariu.”, ela disse. Seria um dia daqueles, certeza.
Depois de servir Vossa Alteza, Amanda ouvia do quarto a chaleira apitar, com a água pronta para o café, enquanto se contorcia tentando pegar as partes soltas do seu celular debaixo da cama, que era bem rente ao chão. Estava um pouco frustrada, não tinha pegado a vassoura para auxiliá-la na empreitada e provavelmente não conseguiria só se esticando. Se convenceu disso depois de algumas tentativas, quando se levantou, bufando, já bastante irritada, com alguns cutões formados por pelos de gato presos nas pulseiras de pano que tinha nos punhos. A chaleira, que continuava gritando que nem uma histérica, contribuiu para a irritação aumentar.
Mas Amanda se lembrou de que era uma pessoa comedida. Respirou fundo, apagou o fogo, coou o café e se permitiu ser acalentada por aquele líquido quente e miraculoso. Aí conseguiu o discernimento para pegar o rodo e puxar a bateria de debaixo da cama, a capinha, a parte da frente do celular. Achou R$ 5. Sorriu, lembrando que tudo é uma questão de frequência, e a gente recebe de onde a gente vibra.
Vibrava na paz e no amor quando o celular finalmente ligou (às vezes demorava mais para ligar, alegando uma atualização, mas ela sabia: era parte do teste). Clicou novamente no texto de Letícia, que pertinentemente se chamava “O gato xerox”. Lasanha, assim como Nhoque, era um gato preguiçoso que agia por interesse e com desdém. A última frase da crônica vinha como que para amarrar todas as impressões de Amanda: “É maravilhoso quando olho para aquela bola de pelos gorda, deitada em meio aos travesseiros, e ele se parece com as bonecas da mesinha de cabeceira, ou com os ursinhos do quadrinho na parede. Meu coração até se aquece”.
Amanda olhou para dentro de seu quarto, um pouco desanimada, sentindo o calor da caneca entre os dedos. Viu Nhoque enfiado entre as almofadas próximas da cabeceira. À sua direita, duas bonecas gorduchas, quase da mesma cor que o gato, enfeitavam a mesinha, junto com o abajur. Acima, no lado oposto, um quadrinho com dois ursinhos bordados em ponto-cruz.
Fim do capítulo
Olha, quentinho, hein
Esse nem esfriou, publiquei direto!
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Aja Rocha
Em: 23/08/2020
bom djia, digníssima escritora
hoje tá um dia tão bom, né.
perfeito pra atualizar uma história hehehe.
Resposta do autor:
Hahahah
Pois é, a ideia era essa... mas vou ter que trabalhar...
Oq?, em pleno domingo?
Pois é... torce pra essa escritora conseguir a dignidade de ser só escritora rsrs
Essa semana sai! Prometo!
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Luasonhadora
Em: 21/08/2020
Só pra terminar meu comentário anterior(Pq o celular havia descarregado me impedindo de terminar) amei o nome dos gatos, e como ia dizendo minha gata se chama mingau pq amo deixar claro que não existe nada exclusivamente de meninos ou meninas, tudo pode ser pattilhado(inclusive o nome). E explicando melhor, a magali que disse que me inspirei foi aquela personagem da turma da Mônica( do Maurício de Sousa ) hahaha. Desculpe se não havia sido clara. Mais uma vez, ansiosa pelo próximo capítulo.
Resposta do autor:
Hahaha
Eu sei que vc não se chama Magali! Peguei a referência rsrsrs
Em breve libero mais uma parte desse conto!
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Luasonhadora
Em: 20/08/2020
Minha gatinha se chama mingau, inspirada única e exclusivamente na magali, que creio ser taurina como eu kkk.
Resposta do autor:
Adoro meninas (a gatinha, no caso) com nomes masculinos ("mingau")!
Adorei o nome, a propósito, Magali! Quer dizer, Luasonhadora rsrs
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Luasonhadora
Em: 20/08/2020
Será que a Leticia escreve esses textos inspirados em uma vizinha do prédio da frente, mas precisamente uma Amanda? Hahaha já comecei as teorias
Resposta do autor: Hahaha Hum, será? Ou será que quem tava na janela era a Alice?rsrs
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Aja Rocha
Em: 19/08/2020
fico pensando se você estava com fome quando pensou o nome desses gatos rs.
Será que tinha alguém na janelas?
já tô criando minha teoria sobre o que poderá acontecer. 🤔
Resposta do autor:
hahaha
Boa! Cria teoria, sim! Mas tenho certeza de que vou te surpreender msm assim rsrs
Os nomes não sou quem dou (não sempre). Aí saem uns "Nhoque" e "Isolda" da vida hahaha
Minha assessoria é foda!rsrs
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