CAPÍTULO 05 - Conhecendo Annick

          Alice se aproximou do quarto com o coração aos pulos, fazia tempos que não entrava ali, a última lembrança que tinha era de adolescente, quando logo no começo de suas férias sua mãe a deixava no sítio para viajar. Hoje achava triste, pois nunca teve uma relação mais estreita com a própria mãe, mas, na época não se importava na verdade, pois amava estar com a avó, e assim podia cuidar do cantinho mágico que um dia seria seu, aproveitava a ocasião para estudar um pouco de magia, sem que sua mãe Patrícia soubesse e fazia algumas anotações no seu Grimório, e também praticava tudo o que aprendia com a avó. Com a vida adulta preferiu deixar a magia de lado, principalmente depois que conheceu Bruna, seu casamento não dava espaço para mais nada.

          Entrou no quarto rapidamente ou perderia a coragem, tudo cheirava a incenso e a velas, era acolhedor, não havia lugar para receio, mesmo assim a primeira coisa que fez foi acender a cálida luz amarela que não iluminava totalmente o quarto e apenas ajudava a compor o cenário. Encostada na porta olhou de longe a divisão pensada com todo amor por sua avó. Na sua frente, na parede principal ficavam as três grossas prateleiras de jacarandá, e nelas estavam organizadas impecavelmente as dolls com uma plaquinha incrustada na madeira com respectivos nomes, todos homenageavam os gnomos, duendes, trolls e  globins, do lado direito haviam três grossas prateleiras de madeira de peroba rosa, uma para as sereias, outras para as fadas e na última haviam infinitas bruxinhas compondo a magia. Do lado esquerdo ficavam as últimas prateleiras também de peroba rosa e lá estavam as bonecas antigas de antiquário e as Spirit doll, observou algumas, e percebeu que estavam inanimadas, fato que não estranhou, pois sabia que a maior parte dos bruxos trabalha com elementares, isto é, com seres criados a partir da forma-pensamento do artesão, assim, com a morte de Helena, todas partiram.

          Em um antigo e impecável sofá de três lugares de madeira negra africana e acolchoado de cor de pérola, sua avó deixou suas três dolls mais diferentes, essas sim eram as verdadeiras Spirit Doll, os três foram confeccionados e ritualizadas na loja "Bruxas de Salem" que pertenciam a Amanda e Luigi, bruxos amigos de sua família. Na verdade, os dois eram os únicos que trabalhavam de forma confiável com entidades propriamente ditas no Brasil, onde os espíritos trazidos por seus guias espirituais, se dispunham a trabalhar no processo de evolução da Magia dos encarnados, assim, as conexões são estabelecidos com todo respeito, amor e muita devoção pelo adotante, neste caso, as bonecas trabalham como 'portais', que ajudavam na interação dos espíritos com os bruxos que os adota.

          Alice olhou os três bonecos atentamente, estavam dispostos em um sofá de três lugares. Todas tinham o tamanho aproximado de uma criança de um ano, eram feitas de tecido, e os rostos eram pintados em um impressionante realismo. O primeiro era um simpático ruivinho, vestido com um macacão clássico em fleece xadrez com bordado de pentagrama e com o seu nome embaixo "Théo", também estava com capuz dupla face e detalhes em renda. A segunda boneca, tinha os cabelos brancos, lisos e grandes olhos negros, estava vestida ricamente com um vestido de tafetá azul e rendas, Alice sentiu a energia, sorriu e pensou "com certeza esta é a boneca de Zoya", a terceira era a que mais gostava em sua infância, tinha os cabelos cacheados, seus olhos eram azuis e pareciam tão acolhedores, estava  com um vestido em tafetá preto cintilante e, renda guipure, bordado com uma triluna e escrita ‘Witch'.  logo pensou "essa é a de Annick".

        No meio do quarto havia uma grande mesa de mogno, na parte de cima estavam os Grimórios, e ao lado nas gavetas estavam as receitas de feitiços, magias, explicações sobre o uso de ervas e cristais e mais duas cartas da sua avó, uma endereçada a própria Alice, outra para Patrícia, entregaria um dia a sua mãe, quando estivesse de volta de mais uma viagem. Ao lado havia um som que poderia tocar discos e cds e uma pequena estante baixinha com cds e discos de músicas pagãs, mas, também clássicos, mpb e ópera. Viu que tinha um disco e com carinho deixou tocar, era "Dance of the Sugar-Plum Fairy", de Tchaikovsky, música do Ballet Quebra Nozes.

          No final da sala estavam os potes com ervas, porções e muitos cristais, fora os altares dos deuses que sua avó cultuava, sentiu uma forte energia, e decidiu que seguiria cuidando desses cantinhos, sorriu feliz, tinha perdido o medo, pegou as cartas que deixou em cima da mesa, e quando virou para ir embora viu bem a sua frente, não de forma totalmente nítida um espírito, era uma moça de longos cabelos pretos e doces olhos azuis que sorria e transmitia muita paz, Alice gaguejou "o...o...que-e-e deseja?", e com um sotaque forte se apresentou "muito prazer Alice, sou Annick".

          Alice deu três passos para trás e sentiu todo corpo tremer.

- Por favor, fique ai até que eu me acostume..

          Pensou muito forte "Janine, por favor, apareça, estou precisando de você amiga".

          Logo após seu pensamento, um cheiro forte de jasmim invadiu todo o ar, enquanto isso, o porta discos passou a girar bem mais rápido,  tocando a música tema de uma série antiga, "Jeannie é um gênio".

- Oi Annick, desculpe a chegada assim meio cheia de efeitos especiais, é uma piada interna. Alice, criatura, melhore, sabia que eu estava em uma pequena festinha?.

          Alice sorriu e disse entredentes:

- Não era para chegar assim cabeça...

- O que foi Alice?, ué, você me chamou porque estava se borrando de medo. Hahahahah, lembra,  não tem como disfarçar para nós querida?, sua aura dá para ver tudoooo, sua energia está encolhida de medo. Relaxa ai, eu e Annick, já nos conhecemos de outros carnavais.

- É apenas a gíria, né?.

- Não, há dois anos vamos a Salvador ver Ivete Sangalo no Trio Elétrico...

- É sério?

          Janine revira os olhos debochando descaradamente de Alice, abraça a moça pelo pescoço e se aproxima com ela de Annick.

- Desculpe a vergonha Annick como te disse Alice tem os traumas que a mãe deixou em sua cabeça.

          Ao dizer isso Janine apertou Alice bem próximo.

- Tudo bem Janine, agradeço por vir, você acha que essa semana devo começar o treinamento?.

- Claro, estou nesses próximos dias estudando com meu mentor o lance da Spirit doll, tenho visitado nos sonhos a moça da doll e a situação está bem crítica, ela tem muito mais medos do que Alice .

- E devo começar pelo básico?

- Claro, tipo o Senhor Miyagi, círculo para direita, círculo para esquerda, até ela melhorar...

- Senhor, quem?

- Miyagi, vai dizer que nunca viu Karatê Kid?.

Alice saiu da posição em que estava e disse:

- Espere ai, vocês parecem dois adultos falando sobre uma criança, eu concordo em aprender tudo, mas, quero saber do passo a passo.

- Viu, já está melhor...agora, a Janine aqui vai voltar para o seu cantinho, estava mesmo em uma festinha, lógico que um pouco diferente das que frequentava quando encarnada, é o ônus de ter ido para uma colônia, enfim, sem mais...Annick essa é Alice, Alice essa é Annick, prazer, apertem as mãozinhas...obrigada, de nada e fuuuui...

          Alice e Annick riram juntas, não tinha como não ser feliz perto de Janine, a outrora mentora, hoje a melhor amiga de Alice não deixou de admirar e amar o que sempre gostou...amava a natureza, amava sua família e seus amigos e amava a vida, independente do lado que estava.

- Apesar de tudo eu não sei muito bem a história de Janine, sei que ela sempre esteve presente, desde que era muito pequena, ela estava em todos os momentos, me dando força, feliz ou triste, ela estava lá.

          As lágrimas desciam no rosto de Alice, Annick se aproximou, as enxugou e disse:

- Laços de outras vidas, não podem ser desfeitos, mas, eu não posso contar uma história que não é minha, Janine na hora certa deve te falar tudo...

          Alice e Annick estavam entrosadas, conversavam sobre Helena, dividindo lembranças, risos e lágrimas, principalmente combinavam quando começariam as aulas e o retorno de Alice a bruxaria, estavam distraídas quando ouviram bem alto o som de palmas, rapidamente as duas viraram em direção ao som...

           Alice coçou os olhos, nunca tinha visto ninguém além de Janine, e hoje era o terceiro espírito que via, observou minunciosamente a ruiva escultural, de longos cabelos cacheados e olhos verdes faiscantes, tinha sardas no seu delicado rosto, e estava vestida elegantemente com um vestido preto que realçava as suas curvas, seu olhar era penetrante, e sorria de forma debochada e irritada.

- Mas, que cena mais linda e comovente. Sabe Annick, acho que fosse diabética até morreria devido ao alto teor de açúcar no quarto...

         Alice olhou novamente sem acreditar, estava hipnotizada pela beleza da moça, sentiu um calafrio e tremeu todo o corpo e sussurrou "Zoya".

- Gostou do que viu?, querida...    

Fim do capítulo