Capitulo 2
Passaram-se vários minutos desde que Malvina dissera para que a esperasse na varanda, e nada dela aparecer, já estava ansiosa com o pedido de acompanhá-la no passeio, com sua demora acabei ficando nervosa também.
Andava de um lado para o outro na varanda, ouvindo o som irritante dos meus próprios passos, no momento que percebi a presença de mais alguém, parei e fixei meus olhos no "intruso", para instintivamente prender o ar.
Malvina estava parada diante de mim, usando trajes tipicamente masculinos, ao menos ali em Goytacazes eram considerados masculinos, mas sabia que era moda na Europa e certamente ela adquirira no período que viveu em Lisboa. A calça num claro estilo de montaria, muito semelhante as que os homens usavam para cavalgar, porém um tanto mais justa, marcando despudoradamente suas pernas, e completando suas vestimentas, ela usava uma camisa feminina branca e botas de montar pretas assim como a calça, e um chapéu panamá.
Fiquei ali, analisando-a minuciosamente enquanto ela me observava de forma divertida, fui arrancada dos meus devaneios com o relinchar de "Trovão", um dos cavalos do comendador Almeida, meu antigo senhor. Voltei minha atenção e meus olhos para o animal, quebrando o contato visual que mantinha com minha senhora, era Miguel meu pai, quem trazia Trovão até o pé da escada.
-- Vamos Isaura!
-- Sim senhora.
Acompanhei-a até onde meu pai estava, feito um autômato, despertando do meu estado letárgico, apenas quando vi a senhora Malvina montar Trovão de forma ágil e estender a mão para mim.
-- Venha!
O que? Como assim "venha"? Por acaso ela queria que eu montasse em Trovão? Justo ele que era o cavalo mais intempestivo que a fazenda possuía? Retesei meu corpo esbugalhando involuntariamente os olhos, fazendo com que minha senhora gargalhasse.
-- Não tenha medo Isaura! Sou uma amazona exímia.
Me deixei levar pelo seu olhar, que naquele instante era intenso, profundo, estava grudado no meu. Ainda que timidamente me aproximei do cavalo, aceitando a mão estendida da senhora.
Malvina acomodou-me em sua frente, senti seus braços rodearem minha cintura, para que pudesse controlar o cavalo, meu corpo estava tenso, não me sentia digna de estar ali tão próxima do corpo macio e cheiroso de minha senhora. Fiquei imaginando o que o senhor Leôncio faria se nos visse naquela situação, mas também, o que tinha demais naquilo? Trovão afastou-se a galopes pela estrada, saindo da mesma mais adiante, se embrenhando no pasto vasto que cobria os campos, guiado pela sinhá.
Nossas respirações acompanhavam o trotar de Trovão, nossos corpos em atrito o tempo todo, eu podia sentir sua respiração em meu pescoço, causando-me um leve desconforto.
-- Diga-me Isaura?! Pra onde devemos ir?
Arrepiei-me, sua voz era ligeiramente rouca, no entanto sendo pronunciada em sussurros tornava-se absurdamente provocante. Suspirei antes de respondê-la, até porque estava perdida e não fazia idéia do porque sentia aquelas coisas.
-- Bom! Se seguires por aquela direção, chegaremos até o lago.
Malvina não respondeu, apenas guiou o cavalo pela direção onde eu havia apontado e rapidamente chegamos ao topo de um monte, onde a alguns metros abaixo havia uma estrada que passava ao pé do morro, e do outro lado ficava o lago curvilíneo. O lago era lindo, mas não era próprio para banho, pois a água era funda apesar de ser um lago estreito que se perdia por debaixo das árvores que o cercavam mais adiante, havia uma pequena ponte que o cortava, por onde Malvina guiou Trovão, deixando-nos em uma espécie de ilha coberta pela grama verde.
Malvina desmontou Trovão, ajudando-me logo em seguida a fazer o mesmo, deixando o cavalo arisco, solto para fazer o que bem entendesse, afastei-me me protegendo do sol forte, ficando sob a sombra fresca da grande árvore. Minha senhora estava á beira do lago, observando minuciosamente todos os detalhes daquela paisagem exuberante e exótica.
-- O que há além da mata?
Voltei minha atenção a minha senhora, que naquele instante encarava-me a com feição interrogativa. Entristeci-me levemente, para então responder sua pergunta.
-- Se seguirmos o curso do lago, depois da mata chegaremos à senzala.
Percebi a confusão nos traços perfeitos do rosto de minha senhora.
-- Como assim senzala? Há uma senzala na fazenda?
Fiquei confusa com aquela pergunta, afinal era óbvio que havia uma senzala ali, afinal eu era uma escrava, as pessoas que trabalhavam nos porões da casa grande eram escravas, as pessoas que trabalhavam nas plantações eram escravas, por acaso ela pensava que todos viviam na casa grande assim como eu?
-- Sim senhora, é onde os escravos ficam durante a noite.
Ela voltou ligeiramente o olhar para mata, como se imaginasse o que encontraria além no horizonte.
-- Eu não sabia que havia uma senzala aqui na fazenda, na verdade não sabia que ainda havia escravos por aqui.
Como é? Certo que ela vivera os últimos anos na Europa e a escravidão fora extinta por lá há um bom tempo, mas aqui não, ainda era bem real, a única liberdade que conhecíamos era a alforria.
-- Eu também sou escrava senhora! Vivo na casa grande porque fora da vontade de minha antiga senhora, esposa do comendador Almeida. Seu esposo mencionou na noite passada, que eu vinha das senzalas...
Desviei os olhos das esmeraldas de minha senhora, a humilhação sofrida por parte de meu senhor voltara com força total, fazendo com que meus olhos ficassem rasos de lágrimas.
-- Leôncio é um homem muito preconceituoso, tinha este tipo de atitudes até mesmo na Europa, tratava qualquer tipo de empregado como um escravo, imaginei que não passasse de mais um preconceito dele, acreditei que tu fostes alforriada.
-- Não senhora!
Minha senhora aproximou-se de mim, fazendo com que meu coração batesse descompassado mais uma vez, seu perfume confundia todos os meus sentidos, fazendo com que eu me recriminasse mentalmente por tais sentimentos libidinosos.
-- Leve-me até lá Isaura.
Estremeci ao ouvir meu nome sendo pronunciado pela sua voz rouca e compassada, só consegui imaginá-la sussurrando em meu ouvido, enquanto rezava o pai nosso, afinal aquela vontade insana de tocá-la só podia ser obra maligna.
Respirei fundo, e com um manear de cabeça concordei em levá-la até a senzala.
Malvina rapidamente montou em Trovão, estendo a mão para que mais uma vez eu ficasse a mercê de desejos profanos, não sei de onde busquei forças para conseguir guiar-nos até a senzala, no entanto, "levei-a" por entre a mata a beira do rio, passando por um verdadeiro bosque onde podíamos ouvir diversos sons de animais.
O rio era curvilíneo, estreito, rodeado por pedras, árvores e arbustos, aonde apenas pequenos feixes de luz chegavam. Ao longo do bosque, a mata densa ia tornando-se mais aberta, possibilitando uma visão mais ampla do que estava a nossa frente.
Chegamos a um determinado ponto, onde o rio fazia uma curva mais fechada cortando a nossa frente, estávamos num ponto onde era possível ter uma visão de "cima" da senzala mais adiante. Na outra margem do rio a nossa frente, havia uma pequena roda d'água cercada por pequenas pedras emersas, Malvina desmontou do cavalo ajudando-me a fazer o mesmo, para logo em seguida prendê-lo em uma árvore qualquer. Fiquei ali a observando, enquanto ela a alguns passos a minha frente, parecia estarrecida com o que via.
A grande construção de dois andares conhecida como senzala, não passava de um alojamento velho, abraçado por árvores trepadeiras e musgo, dando um ar triste e sombrio ao lugar, as grandes janelas não possuíam vidros e sim, madeiras grossas e firmes pregadas pelo lado exterior, para impedir que os escravos tentassem fugir durante a noite.
O local parecia deserto, afinal neste horário a maior parte dos escravos se encontravam nas lavouras, enquanto outros estavam no porão da casa grande fazendo serviços domésticos.
-- Então isso é uma senzala?
Malvina voltou-se na minha direção, fixando seus olhos intensos em mim, não consegui definir o misto de sentimentos expressos em seus o olhos.
-- Sim senhora!
Respondi de imediato, não gostava de estar ali, não queria estar ali, não me agradava em nada aquele lugar, muito pelo contrário, saber que minha mãe vivera num local como aquele até o dia de sua morte, não era uma das melhores sensações para mim. Queria ir embora o mais rápido possível, no entanto, não podia simplesmente dizer isso a minha senhora e sair arrastando-a dali.
-- Como chegamos até lá?
Engoli em seco, não bastava ver? Ela tinha que ir até lá? Suspirei angustiada, antes de andar até onde minha senhora estava, se ela realmente queria ir, então eu a levaria.
-- Há uma trilha de pedras logo ali, ou podemos dar a volta no lago e ir pelo caminho que vai até o casarão.
Mencionei apontando na direção onde havia algumas pedras entre o rio.
-- Por aqui! Vamos!
Ela nem esperou que me pronunciasse, simplesmente apanhou minha mão entrelaçando nossos dedos, e saiu andando praticamente me arrastando na direção do rio. Eu poderia ter protestado, dito o quão incômodo era estar ali, dito que ela poderia encontrar coisas que não gostaria de ver se atravessasse o rio, mas tudo parece ter abalado meu psicológico, no momento que senti sua mão macia e ao mesmo tempo firme em contato com a minha, causando-me uma dor desconhecida e incômoda no ventre.
Atravessamos o rio e em silêncio de mãos dadas andamos até ficarmos de frente a senzala, e foi neste instante que pela primeira vez Malvina o viu, mas infelizmente não seria a última. Era uma espécie de altar, que possuía um poste com correntes atreladas a si, ele estava fixado bem no centro daquele espaço, o tão temido tronco.
Senti sua mão apertar a minha, enquanto seu corpo retesava diante do desconhecido, ficamos longos minutos diante do tronco, eu relembrando as inúmeras vezes que vi homens, mulheres e até mesmo crianças sendo castigadas naquele local, enquanto Malvina tentada digerir o que aquilo representava.
-- Isso, isso é o que eu estou pensando?
-- Uhum!
Nesse instante ouvimos um barulho vindo de dentro da senzala, ambas atraídas pelo som, encaramo-nos antes de andarmos na direção da grande porta de ferro que dava acesso ao interior do alojamento. Mais um barulho se fez presente, porém desta vez fora uma espécie de gemido, o que fez com que estancássemos no meio do caminho.
Eu já imaginava o que ali se passava, e não estava nenhum pouco interessada em presenciar, sem mencionar que também não queria que Malvina visse algo do gênero.
-- Minha senhora? Acho que devemos voltar...
Malvina olhou-me por alguns segundos, como se ponderasse minha proposta, logo após olhou para a porta de ferro, e sentenciou.
-- Alguém pode estar precisando de ajuda, não podemos ignorar!
Senti uma espécie de vazio tomando conta de mim, e uma angústia crescente no instante que minha senhora desprendeu-se de minha mão, andando decidida na direção da porta. Resignada, assustada e temerosa, acabei seguindo-a a passos largos.
A porta estava destrancada, no entanto, no momento que Malvina a forçara para entrar um barulho estridente de metal se fez presente, revelando nossa chegada e assustando os responsáveis pelos sons ouvidos por nós, pouco antes.
O homem bruto de calças abaixadas na altura dos joelhos, que estava sobre o corpo magro de uma jovem escrava, levantou-se num rompante, claramente irritado pela interrupção. Ainda conseguimos perceber o constrangimento e as lágrimas no rosto da menina, enquanto o homem recompunha suas vestimentas, e vinha raivoso em nossa direção.
-- Mas que diabos pensam que estão fazendo?
Ele avançou ferozmente em minha direção, até porque eu conhecia muito bem o feitor Juvêncio, e certamente ele não conhecia a nova senhora da fazenda, tanto que agiu feito o ogro que era.
-- Sua escrava infeliz! Veio fazer o que aqui? Tá querendo que eu trace você também é?
Ele segurava-me violentamente pelo braço, no entanto, Malvina pôs-se entre nós empurrando-o fortemente, afastando-o de mim, sem dar chances de revide.
-- Não ouse tocá-la! Sequer dirija-se a ela dessa forma!
-- E quem você pensa que é pra me dizer isso sua vadia?
-- Eu sou Malvina Almeida! Sua senhora!
Juvêncio calou-se imediatamente, sabia da chegada dos novos senhores, mas não imaginara que a esposa do Sr. Leôncio se daria ao trabalho de ir até a senzala, surpreendê-lo com uma de suas escravas.
Malvina percebendo o quão acuado o homem ficara com sua postura, atacou novamente deixando claro quem mandava ali.
-- Não quero nem saber que diabos você pensava estar fazendo com aquela menina, mas que fique claro que foi a última vez que algo assim aconteceu. Do contrário, você será açoitado com um deles!
Certamente aquela fora a maior afronta que o feitor já sofrera em sua vida, tanto que não conseguiu manter-se no lugar de empregado. Ousou retrucar sua senhora.
-- Não sou um desses negros pra ser açoitado! Não pode fazer isso!
-- Pois experimente repetir o que acabo de presenciar, e descobrirá que não só posso mandar açoitá-lo, como matá-lo e jogá-lo no rio! E assim o farei!
Malvina aproximou-se ainda mais do homem, e sentenciou.
-- Ninguém sentirá sua falta! Torço tremendamente para que pague pra ver!
Juvêncio engoliu os diversos xingamentos que estava para proferir, ajeitando o chapéu na cabeça, antes de deixar a senzala a passos largos.
Foi nesse instante que Malvina finalmente fixou seus olhos na escrava, que se encolhia no chão frio e fétido da senzala. Minha senhora aproximou-se lentamente, agachando-se próximo a garota, que soluçava baixinho com medo das conseqüências.
-- Você está bem?
A escrava não respondeu, apenas chorou um pouco mais.
-- Está tudo bem agora, ele não vai maltratá-la de novo.
Malvina levantou-se deixando a garota onde estava, vindo em minha direção.
-- Vamos embora Isaura!
Não esperei que repetisse, acompanhei-a a passos largos para fora da senzala, mas não sem antes olhar piedosa mais uma vez para a pobre escrava que se encontrava na mesma posição. Malvina andava rápido em minha frente, e assim foi até que chegássemos à outra margem do rio, onde havíamos deixado Trovão.
Minha senhora respirava com dificuldade, parecia nervosa, angustiada, parou ao lado do cavalo, com ambas as mãos apertando firme parte da cela do animal. Mantive-me em silêncio pouco atrás dela, não sabia o que falar e também não sabia se deveria falar.
De repente Malvina virou-se em minha direção, seus olhos aparentavam uma fúria desconhecida, misturada com, medo ou receio, não sei ao certo.
-- Eu, eu, eu já não sei se agi corretamente interrompendo-os.
Como assim? Lógico que ela estivera correta em sua atitude, porque a dúvida? Ela viu que a escrava não passava de uma garota.
-- Ela estava chorando, parecia com medo de mim! Com medo do que eu poderia fazer com ela, ou com medo de ficar sem seu homem...
Como? Ela estava brincando comigo não é? Era só uma menina.
-- Não creio que seja esse o motivo minha senhora. O feitor Juvêncio é acostumado a tomar as escravas para si, contra vontade delas.
-- Foi exatamente isso que pensei quando os surpreendemos, mas aí, eu não entendi o desespero dela quando falei que aquilo não iria se repetir era como se ela quisesse tudo de novo.
-- Não acredito nisso! Ela estava aliviada com sua intervenção, o choro fora uma forma de expressar seu alívio.
-- E se não for isso? E se ela quisesse estar com o feitor?
-- Nenhuma escrava quer estar com seu feitor!
Houve um breve silêncio, nossos olhos duelavam, ambos imersos nas próprias verdades.
-- Sua mãe quis!
Aquilo foi um tapa na cara, mais que isso, um soco no estômago, não podia acreditar que Malvina estava comparando aquela menina com minha mãe, menos ainda que estivesse comparando meu pai com aquele monstro. Meu pai jamais maltratara os escravos, menos ainda minha mãe, era uma situação completamente diferente, ele passou a desempenhar outros serviços aos senhores, pois o castigo não estava no seu sangue. No entanto, não revidei seu insulto, certamente iria para o tronco se o fizesse. Abaixei os olhos, desviando de suas esmeraldas raivosas, até ouvir mais um insulto vindo dela.
-- E você Isaura? Costuma se deitar com os feitores?
Lágrimas involuntárias marejaram meus olhos, encarei-a mesmo assim, eu era pura, fui criada pela minha antiga senhora na casa grande, as poucas vezes que estive nas senzalas depois disso, estava acompanhada de meu pai. Jamais havia sido cortejada, não permitira que homem algum me tocasse, primeiro porque um homem só deveria tocar uma mulher depois do casamento, e segundo, porque jamais tivera vontade de estar com um.
Senti o peso do meu olhar incomodá-la, era como se através do meu olhar ela percebesse que havia sido injusta, maldosa e precipitada, a raiva abrandou, seus olhos antes turvos de ódio transformaram-se em constrangidos e arrependidos, seu rosto antes rígido, agora estava tenso. Permiti que seus dedos enxugassem as lágrimas que desprendiam dos meus olhos pela segunda vez desde que nos conhecemos, fechei-os engolindo meu orgulho e abrandando a mágoa que despontava no meu interior. Ela estava errada e sabia disso, era o suficiente para mim, para que pudesse perdoá-la e permitir um contato maior.
Meu corpo estava tenso, sentia a proximidade do seu enquanto minha pele sentia o toque suave de suas mãos, um calor gostoso e certamente pecaminoso, invadia meu corpo o balançando, almejando despudoradamente por um contato maior, mais íntimo.
Senti quando seus lábios tocaram minha pele, mais especificamente o meu rosto, por onde as lágrimas molharam era como se ela estivesse "beijando onde bateu", reprimi a vontade insana de puxá-la de encontro a mim, apertei fortemente o maxilar na tentativa de impedir que o pranto tomasse conta e insistisse em enfraquecer-me.
Malvina era mais alta do que eu, e estava com ambas as mãos segurando firme o meu rosto, enquanto sua testa permanecia encostada na minha, e sua respiração pesada vinha de encontro ao meu rosto.
-- Ah Isaura...
Sua voz fora um sussurro, rouco, sensual, eu sequer sabia o significado da palavra sensual, mas gostava da forma como a pronúncia soava, e naquele momento parecia se encaixar perfeitamente com ela. Estremeci dos pés a cabeça, para logo em seguida prender a respiração, pois o que veio derrubou todas as barreiras que a "igreja" havia levantado, pois eu estava cometendo um grande pecado e estava adorando.
Seus lábios desceram sobre os meus, quentes, úmidos e delicados, fora só um toque, um toque terno e carinhoso, uma prova de que havia sentimento naquele ato e não a depravação que a igreja pregava. Malvina deixou sua boca sobre a minha por uns segundos, para em seguida prender meu lábio inferior entre os seus, e tocá-lo com a língua. Não foi um beijo, hoje eu sei que não fora um beijo, pois algum tempo depois eu descobriria o que era beijar de verdade, mas fora o suficiente para que minha senhora tomasse para si todo o meu afeto.
Afastamo-nos rapidamente, meu coração batia tão rápido que acreditei que sairia pela boca, meu corpo todo tremia, minhas mãos suavam e na minha mente um único pensamento se fazia presente, "eu vou para o tronco".
Minha senhora encarou-me de forma indecifrável e sem uma única palavra pronunciar, montou Trovão me chamando para que fizesse o mesmo logo em seguida. Obedeci-a sem questionar, confesso que temia um castigo devido à tamanha ousadia que cometi a pouco para com minha senhora.
Trovão galopava muito rápido, fazendo com que retornássemos a casa grande em metade do tempo que levamos pra vir, minha senhora desceu rapidamente, deixando-me ainda sobre o cavalo, entrando na casa grande sem olhar pra trás, uma sensação ruim tomou meu peito, fazendo-me estremecer.
-- O que houve?
Fui retirada dos meus pensamentos por meu pai, que se aproximava do cavalo segurando-o pelo pelas rédeas. Encarei-o ainda confusa, imaginando o quão cômica era minha situação, afinal, minha mãe também era uma escrava que se envolveu com seu "senhor", a única diferença é que "meu senhor" era mulher.
-- Está indisposta! Creio que devido ao sol forte.
-- E o que ainda está fazendo aqui? Vá ficar com sua senhora! É seu dever.
Assenti, descendo de Trovão com a ajuda do meu pai, ao entrar na casa grande não procurei por minha senhora, mas sim me encaminhei até a cozinha à procura de Ana.
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A noite chegou e só voltei a ver minha senhora no jantar, Malvina não pôs os olhos sobre mim uma única vez, deixando-me incomodada de certa forma. No entanto, fiquei aliviada por saber que não seria castigada devido à falta de respeito para com ela, se bem que fora ela quem me tocou não? Não, ninguém acreditaria.
O senhor Leôncio e o senhor Henrique, conversavam animadamente durante o jantar, e confesso ter percebido alguns olhares de ambos, em minha direção, retrai-me temerosa, não sabia o que esperar daquela atitude, não sabia o motivo pelo qual ambos estavam a me analisar com sorrisos misteriosos de parte do senhor Henrique. Como eu reagi? Eu não reagi! Até porque nada eu poderia fazer, a minha única atitude era olhar para minha senhora, temendo que ela visse os olhares e interpretasse de forma errada, acreditando que eu tinha com eles a mesma postura que tivera com ela pouco mais cedo.
No entanto, os dias se passaram e nada acontecera nada em relação ao que acontecera na volta da senzala, porque em relação aos olhares de meus senhores, estava cada vez pior. Hoje eu já conseguia identificá-los, eram olhares de pura malícia, principalmente da parte do senhor Leôncio, já o seu cunhado Henrique, olhava-me de forma carinhosa alem de maliciosa, era como se nutrisse algum sentimento além da depravação.
Malvina não voltou a tocar-me, nem ao menos falar comigo, evitava estar onde eu estava, evitava olhar pra mim, e confesso que isso me magoava de forma inexplicável.
Certa tarde, senhor Leôncio e Henrique estavam no cafezal, haviam ido vistoriar a lavoura e o andamento dos trabalhos, enquanto minha senhora Malvina estava na sala tocando piano, hábito cada vez mais comum. Eu estava andando pelo jardim, quando Belchior aproximou-se.
-- Que tristeza é essa que vejo nos olhos da mais bela flor deste jardim?
Sorri, Belchior não mudava, era um ser único no mundo, encantador.
--Estava pensando, em como é ser livre...
-- É bom, e às vezes nem tanto. Afinal, de nada serve ser livre, poder ir e vir, ser dono do próprio nariz, se sua felicidade depende de uma outra pessoa.
Sorri, um gosto amargo apossou-se de minha boca, pois era exatamente assim que me sentia, minha felicidade dependia de minha senhora, só ela poderia dar-me a liberdade e parecia não desejar isso, se bem que naquele momento eu não sabia identificar, se a tristeza que vinha tomando conta de mim nos últimos tempos, se devia a "não liberdade".
-- E você Belchior?! Nunca pensou em sair daqui?
-- Sim, sim, mas quando isso acontecer pretendo levar minha esposa comigo, para realizáramos sonhos juntos.
Seu olhar era significativo, intenso, como se o "minha esposa" fosse uma indireta. Sorri, dando uma desculpa qualquer me recolhendo para a casa grande logo em seguida, tinha muito carinho por Belchior, mas não queria dar qualquer tipo de esperanças a ele.
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Andava pelo corredor em direção a cozinha, ia atrás de Ana pra saber se ela precisava de minha ajuda nos afazeres da casa, quando ouvi o som que vinha da sala, era Malvina no piano.
Como se estivesse hipnotizada, segui a música estancando na entrada da sala, ela estava linda, com os cabelos mal presos, alguns fios caiam sobre seu rosto enquanto tocava, fiquei ali por incontáveis minutos, apenas admirando-a, com o coração aos pulos, mãos suadas e corpo trêmulo. Definitivamente, eu sentia saudade.
-- Maldição!
Praguejei em voz alta, afinal os maus espíritos seguiam fazendo-me pecar, tendo aqueles pensamentos nada inocentes com minha senhora, balancei a cabeça tentando afastar aquilo tudo, quando deparei-me com olhos verdes encarando-me.
-- De-desculpe senhora!
Abaixei a cabeça dando um passo pra trás, temendo sua reação ao ser pega bisbilhotando-a. No entanto, minha senhora manteve-se em silêncio com sua postura extremamente "superior", até que alguns segundos depois ela levantou-se aproximando-se de mim, andou lentamente ao meu redor, parando em seguida a minha frente.
-- O que você tem com o jardineiro?
Engoli em seco, fora pega totalmente de surpresa com aquela pergunta. Como assim o que eu tinha com Belchior? Desde quando ela desconfiava que tínhamos algo? E porque razão ela estava irritada? Antes mesmo que respondesse ela prosseguiu.
-- Vi vocês dois no jardim! Ele estava próximo de mais pro meu gosto. Íntimos eu diria, deveria se respeitar.
"Pro meu gosto?", e desde quando ela tinha que gostar da minha amizade com Belchior? Se bem que ela era minha senhora, podia tudo. Só então ao analisar seu desgosto em relação a minha amizade com Belchior é que caiu a fixa, ela pensava que eu tinha algo mais do que amizade com ele. Arregalei os olhos explicando-me logo em seguida, atropelando as palavras.
-- NÃO! Eu, eu não tenho nada, nada com ele. Somo amigos! Só isso!
-- Ele sorria pra você!
-- Ele é uma ótima pessoa!
-- Você sorriu pra ele!
-- É uma boa pessoa pra mim, tenho carinho por ele.
-- Gosta dele?
-- Meu amigo apenas...
-- Ele te quer mais do que como amiga!
-- Sinto muito, mas terei que decepcioná-lo senhora!
Acho que agora eu havia acertado nas palavras, ela ficou em silêncio encarando-me durante alguns segundos.
-- Onde está Ana?
-- No porão! Supervisionando o trabalho das lavadeiras...
-- Leôncio e Henrique? Saíram há muito tempo?
-- Não senhora, saíram a pouco menos de vinte minutos, iriam as lavouras, devem ter acabado de chegar lá.
Ela sorriu, de uma forma estranha, com o canto dos lábios.
-- Venha comigo Isaura!
Arrepiei-me inteira, ela não esperou qualquer resposta, passando rapidamente por mim, deixando apenas um rastro de perfume, fazendo-me segui-la com o peito aos pulos, não sabia explicar os motivos, mas meu coração batia feito louco.
Andamos pelo corredor da casa grande, entrando em um cômodo qualquer, apenas quando estava do lado de dentro observando Malvina trancar a porta, é que percebi que estávamos em um dos quartos de hóspedes. Prendi a respiração enquanto ela encostava-se na porta de frente pra mim.
Sua respiração estava alterada, seu peito arfava, seus olhos faiscavam fazendo meu corpo corresponder involuntariamente e minha mente recitar o mantra do “pai nosso”.
Vi-a aproximar-se um pouco de mim, e com a voz extremamente rouca se manifestar.
-- Isaura! Você tem cinco segundos pra deixar esse quarto, caso prefira ficar, esqueça de suas origens, crenças, e permita que eu toque em você.
Estremeci dos pés a cabeça, sabia o que aconteceria ali caso ela fosse um homem, mas poderia acontecer da mesma forma mesmo ela sendo mulher não é? Meu corpo reagia a ela, meu coração gritava por ela, minha mente tinha urgência, eu queria aquilo definitivamente.
Malvina aproximou-se de mim enquanto contava de cinco a um, terminando quando seus lábios já roçavam os meus.
-- Me beije Isaura...
Gemi, enquanto minha boca era tomada com urgência, seus lábios tinham pressa enquanto suas mãos seguravam firme meu corpo de encontro ao seu, eu ansiava pelo amor que me era proposto pela minha senhora. Então deixei-me conduzir.
Fim do capítulo
Continuando. ;)
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