"Velhos amores custam a morrer

Velhas mentiras custam mais ainda a morrer"

~***~

-Certamente não é algo do seu interesse. - respondeu Annabeth de forma fria, tentando transparecer indiferença com o comentário carregado de malícia. Afastando-se do toque da outra campista. -... um dois é tudo o que posso oferecer La Rue, mas acho que você já esperava por isso.

Pode ver que a morena estava se controlando ao máximo, conhecia a garota bem demais e o quanto ela tentara conter o seu temperamento após assumir a posição de maior destaque do Chalé de Ares, respirou fundo por alguns instantes até abrir novamente a porta do recinto, sem brigas, sem palavras rudes, talvez seu dia não fosse assim tão terrível como esperava. Passou por La Rue, com aquele espaço pequeno demais para as duas, não pode se encolher o suficiente e não tocar na morena, não possuía essa opção, um arrepio involuntário correu sua pele, tentou disfarçar, mas seus olhos se prenderam por uma última vez aos verdes... Havia algo neles, mas não queria ficar para descobrir do que se tratava.

Saiu como se nada tivesse acontecido, ainda pode escutar a morena extravasar sua raiva em algo, ficou tentada a fazer notas do pequeno comportamento explosivo, porém apenas balançou a cabeça e suspirou - era Clarisse afinal - não poderia cobrar tanto assim.

Continuou o seu trabalho sem muitos problemas, passando pelos chalés dos outros deuses, alguns muito organizados, outros não tão apinhados de gente e bem, agora ela se dirigia a um em especial que lá no fundo também gostaria de evitar se fosse possível, massageou novamente a fronte ao se aproximar, do chalé rosa pastel, com cristais pendendo das janelas, possuía vários canteiros de rosas - sem espinhos - das mais variadas cores por perto, e estas aninhavam-se nas paredes. Annabeth foi arrebatada por um perfume suave e adocicado que se fazia presente por toda a parte e se tornava um pouco mais forte ao adentrar o local.

Os belos e bem arrumados filhos de Afrodite encontravam-se já em seus postos com sorrisos convidativos, a conselheira do local aproximou-se e a filha de Atena não pode deixar de dar um leve suspiro, Silena Beauregard tinha o seu charme, não tinha como evitar.

-Bom dia, Annabeth. - disse com um sorriso iluminado, isso foi o suficiente para desarmar uma já irritada loira.

-Bom dia. - respondeu meio sem jeito. - podemos começar? - completou após um leve pigarro.

-Claro. - a morena tomou a dianteira assim como os outros líderes fizeram e começou pelos beliches mais próximos.

Chase fazia as notas rápidas enquanto desviava de olhares interessados ou de campistas que simplesmente pareciam mais entretidos em suas próprias imagens nos espelhos distribuídos por toda a parte do que na vistoria em si... Tudo em ordem como o esperado, parecia mais uma casa da Barbie em tamanho natural como Percy bem adorava salientar.

Seguiu até o reservado de Silena após concluírem a área comum, ali podia notar que tudo era milimetricamente ainda mais arrumado, o perfume mais acentuado, as cores em harmonia, a morena encostou-se ao peitoril da janela e cantarolou uma canção qualquer observando a paisagem ao longe enquanto a outra garota continuava seu trabalho. Chase deveria estar com a caneta sobre o papel, tomando notas, mas seus olhos pousaram de forma furtiva sobre a cama da conselheira... Sentiu algo lhe corroer aos poucos e realmente deveria estar ficando louca. Era de conhecimento de todos ou quase todos que Beauregard e La Rue tinham algum tipo de envolvimento, mesmo que não fosse nada assumido ou fixo, pensar que as duas já haviam dividido aquele espaço realmente estava lhe causando algum incômodo?!... Devia estar sob efeito do vinho ainda, só podia ser isso, tomaria notas de jamais beber daquela forma novamente.

-Tem algo te incomodando? - perguntou a morena de olhos azuis tomando a atenção da garota que até então não havia retomado suas notas. Annabeth ainda parecia presa demais em seus pensamentos para elaborar alguma resposta razoável. - desculpe-me... É que eu consigo sentir... Quando se trata de certos assuntos.

Caiu em terra novamente, processando as palavras ditas pela garota. Não conseguia ver algum nexo no que Silena lhe falara ou apenas estava tentando agir de forma racional - ou seja, da forma que sempre tentava levar todos os seus conflitos.  

-Sinto muito... Mas acho que não entendi o que quis dizer?! - não tentou se esconder em suas anotações como fizera com seu amigo Percy, os olhos cinzentos se prenderam aos azuis da outra como se realmente quisesse dedicar toda a atenção possível às suas próximas palavras.

Beauregard se aproximou mais, tinha um sorriso singelo e bonito nos lábios, como se não estivesse cogitando qualquer brincadeira com a filha de Atena, suas mãos alcançaram as da loira retirando-lhe os utensílios e depositando um leve carinho, mesmo desconcertada, Chase não se afastou.

-Vocês precisam conversar... - começou de forma cuidadosa, podia ver os pensamentos nublados através dos olhos tempestuosos. Não queria assustar a campista, porém talvez ela fosse a única e mais sensata a lhe aconselhar no momento. - não vão conseguir sustentar essa situação por muito tempo.

-Deve ser algum engano... Eu realmente não sei do que está falando. - rebateu de forma indiferente, precisava mais que tudo afirmar isso para si, Beauregard era filha da deusa do amor e seja lá ao que ela estava se referindo boa coisa não era.

-Você e Clarisse, Chase. - disparou ainda cuidadosa, porém direta na medida certa. Já não bastasse a teimosia da filha do deus da guerra, agora teria que lidar com o orgulho da filha da deusa da sabedoria. - em algum momento vocês vão ter que conversar ou ambas vão se machucar. - Silena deu um sorrisinho bobo, mas parecia convicta demais em suas palavras.

Annabeth tentou desviar os olhos, enquanto suas bochechas denunciavam seu estado de espírito, suas mãos estavam levemente trêmulas entre as da morena, queria poder correr dali o máximo que suas pernas conseguissem, mas havia afundado naquele ponto como chumbo.

-Sei que parece perturbador, mas talvez seja mais fácil se colocar o seu lado racional um pouco de lado. - comentou levantando o queixo da loira e olhando nos belos olhos, os mesmos da deusa Atena. - e pelos deuses também sei que Clarisse não é nenhum anjo de candura... Mas eu sou filha da deusa do amor e sei que nem sempre ele aparece da forma que desejamos, um dia quem sabe você entenda de fato tudo isso. - concluiu dando um beijo doce no rosto da loira.

-Silena, agradeço por ter me acompanhado, tudo está impecável como sempre. - informou desviando o assunto. - Parabéns... Nota cinco - um sorriso fraco pairou em seus para logo sumir. - uma filha de Ares e Atena... Juntas? - balançou a cabeça negativamente em descrença. - Clarisse tampouco se lembra do que aconteceu entre nós duas.

Tentou esconder o desgosto trazendo alguma frieza ao seu tom de voz, mas tudo o que conseguiu foi se sentir ainda mais incapaz diante aquilo que lhe rondava. Pegou suas coisas, precisava terminar as inspeções, pois ainda cuidaria da patrulha mais a noite.

-Chase?!... - chamou-lhe a atenção uma última vez antes que se retirasse para o próximo chalé. - você beija bem. - confessou com um sorriso charmoso e dando uma piscadela, deixando a outra garota tomada pelo rubor.

~***~

Após tomar um banho e trocar de roupa conseguiu colocar um pouco os pensamentos no lugar, não que seu sangue ainda não estivesse borbulhando, mas ela infelizmente precisava se conter ou simplesmente não conseguia ser rude quando se tratava da melhor amiga. Cruzou a área dedicada aos campistas, onde a noite se reuniam ao redor da fogueira para cantorias e histórias, seus pés lhe levaram a um caminho já conhecido, o chalé dedicado aos filhos de Afrodite. Pouco se importava se Annabeth já havia passado pelo local ou não, mas precisava a todo custo conversar com a morena de olhos azuis e esclarecer alguns pontos.

Adentrou o local sem grande cerimônia, recebendo alguns olhares mistos de curiosidade e também de reprovação. Apesar de serem criaturas quase que completamente opostas, os filhos de Ares e os de Afrodite se davam bem, porém, para alguns era completamente inexplicável o fato das conselheiras do chalé 5 e 10 serem tão próximas devido ao gênio nada amigável e irritante de La Rue.

-Beauregard... - chamou em alto e bom som enquanto os coturnos ditavam o ritmo das passadas até o local onde normalmente se encontrava com a campista. Abriu a porta sem cerimônia, estava irritada demais para se ligar a pequenas convenções sociais, a garota estava olhando o movimento ao longe pela janela, bem como vez ou outra, desviava o olhar para as rosas sem espinhos que se instalaram pelo peitoril, inundando o local com aquele perfume tão característico. - vou perguntar apenas uma vez e quero que seja sincera e direta comigo, sem rodeios... Você fez algo com aquele vinho que nos ofereceu ontem à noite?!

Silena suspirou, não que ela já não esperasse por aquilo, mas conversar com Clarisse nem sempre era uma tarefa fácil. Poderia ter se chateado ou se sentido insultada com a falta de educação ou a pergunta feita, entretanto deu um meio sorriso, cruzou os braços e voltou a atenção a confusa guerreira a sua frente.

-Que bom que conseguiu recobrar sua memória La Rue... Como prefere sem rodeios então não vejo o porquê de não lhe contar a verdade. - disse dando de ombros e se aproximando da mais alta lhe fazendo um leve afago nos ombros. - eu não fiz nada com o vinho, jamais brincaria com você dessa forma, deveria saber bem disso. Mas o vinho é de uma pequena safra especial, desenvolvida a muito tempo por Dionísio com os toques de Afrodite.

A filha de Ares continuava a lhe encarar com os olhos verdes quase que semicerrados, porém mostrava-se menos arredia do que há alguns poucos minutos.

-É um vinho capaz de aflorar sentimentos e os desejos mais profundos, ele não induz quem o bebe, mas digamos que lhe desprende de certas amarras. - explicou da forma mais direta e simples possível, não desviando seus olhos da amiga. -Você é imune a minha magia do amor, sabe disso. - relembrou-lhe Silena calmamente. - acredito que Annabeth também seja, já que assim como a magia de Afrodite não tem qualquer efeito sobre Atena e Ártemis, por serem deusas virgens. - A filha de Ares lhe olhou desconfiada como se perguntasse como ela poderia saber daquilo. - ...Chase me parece do tipo que se importa com essas coisas, que se guardaria para alguém especial. - explicou-se com o olhar vago, como se repassasse antigas memórias.

A semideusa apenas negava veementemente, como se a cria de Afrodite não pudesse estar mais equivocada com tudo aquilo. Não podia ser verdade... Annabeth sentindo algo por ela?! Logo ela?!

-Não... Não pode ser verdade. - rebateu com a voz baixa. Silena sabia que após isso viria à explosão cedo ou tarde. - eu dormi com a Chase ontem, foi apenas um engano... Não sentimos algo uma pela outra. - usou todo o resto de calma que ainda possuía para retirar as mãos da morena sobre si.

-Clarisse, você não precisa mentir pra mim, sabe disso. - Beauregard lhe tocou o queixo e forçou o contato visual novamente. - você tem esse mesmo olhar para a Chase desde que chegou ao acampamento meio-sangue... E Você tinha apenas dez anos.

-Ótimo! Fale mais alto, talvez o Olimpo não tenha te escutado. - a filha de Ares se afastou com uma expressão fechada. - Você não sabe do que está falando...

-Tem certeza disso?! - Silena tinha a voz quebrantada e lhe segurou pelo pulso esquerdo com força, como se quisesse lhe lembrar de algo extremamente importante - você acha que eu também não sofro com isso... Que eu não queria que fosse diferente?! Já se esqueceu da conversa que tivemos com Afrodite!

-Já chega! - a voz baixa e pausada indicava raiva e dor, o olhar cansado se prendeu aos olhos azuis como um pedido mudo para que se calasse antes que se magoassem ainda mais. - Não precisa lembrar-me daquilo que já recordo todos os dias... Mas deixe a filha de Atena fora disso.  

Silena tentou lhe conter, ultimamente as conversas entre as duas se resumiam em pequenas brigas, mas nada que chegasse a esse ponto, precisava fazer algo, pois conseguia captar a intensidade dos sentimentos tempestuosos consumirem a mesma, contudo Clarisse precisava de seu tempo e nem mesmo a filha da deusa do amor conseguiria lhe dar alguma paz naquele momento.

~***~

A filha de Ares decidiu se isolar naquele dia, estava confusa, cansada e com ódio demais para poder compartilhar sua presença já não tão apreciada com qualquer outro semideus. Desde que havia partido para a sua missão em busca do velocino de ouro sentia-se diferente, algo como um vazio sempre a ser preenchido e agora tinha pesadelos cada vez mais constantes... Quando se é um mortal, pesadelos podem ser considerados uma bobagem qualquer, mas quando se tratava de um semideus isso alcançava um nível um pouco mais perigoso, alguma visão, presságio ou qualquer coisa nada inofensiva do tipo.

Vestiu uma roupa mais confortável, deixaria sua lança e escudo de lado por essa vez. Queria apenas correr sem ter que se preocupar com o seu equipamento. Saiu sem chamar atenção e partiu para o seu treino no intuito de esvaziar sua mente, como Quíron havia lhe aconselhado algumas vezes. Conhecia cada canto e pequena trilha do acampamento, até mesmo os lugares que não deveria frequentar sem permissão, crescera ali como alguns poucos campistas e desde então usara seu tempo livre para mapear a área a seu uso... Melhores rotas, ninguém que pudesse lhe incomodar - não que fosse um problema, já que a maioria dos campistas estavam em suas devidas atividades.

Era quase final do dia quando terminou com a corrida na praia, suas pernas bambeavam e o suor lhe escorria pelo corpo, deixou-se cair na areia com a respiração desregulada e a brisa fria a lhe acariciar, observou o mar até o pôr-do-sol manchar o horizonte com suas belas cores antes de retomar o fôlego e enfim pegar o caminho para a trilha dos chalés... Sempre conseguia um pouco de paz quando se isolava naquele canto em especial.

Não compareceu ao pavilhão aquela noite, não queria ver Silena, Annabeth ou qualquer outra pessoa, apenas deixou Mark sob aviso para que o mesmo guiasse o Chalé de Ares pelo resto do dia, aproveitaria o banho e a exaustão para quem sabe conseguir bons sonhos aquela noite.

Ninguém estava no chalé quando retornou ao mesmo, arrastou-se a passos lentos e jogou-se na cama como se não dormisse há dias. Para seu infortúnio fora mais uma noite mal dormida... Nos últimos dias os pesadelos se resumiam as mesmas imagens. Cidades em chamas, gritos de pavor, tudo parecia um grande borrão ia e voltava em sua mente, por vezes podia sentir o gosto salgado do mar e até mesmo de sangue acentuado em sua boca e a brisa fresca, em outros momentos dor e muito frio, porém desta vez acordará com um som bem peculiar... Era a trombeta de concha, algo estava acontecendo no acampamento.

~***~

Naquela mesma noite, mais surpresas foram reservadas aos habitantes da colina meio-sangue, as peças do tabuleiro do destino começavam a ser movidas lentamente, fazendo com que seus meros peões assumissem suas posições mesmo que a contragosto, mesmo que sequer notassem que faziam parte desse grande jogo.

Annabeth estava juntamente com mais algum punhado de semideuses fazendo a guarda naquele dia. Havia-se combinado que grupos fariam rondas noturnas para a vigília do velocino e a árvore de Thalia enquanto as defesas ainda não estavam exatamente fortificadas, tiveram diversas baixas no acampamento durante o ano, todos ali foram realmente postos a prova, precisavam assegurar que nada abalaria a "frágil" segurança instaurada até então.

Truque do destino... O velocino de ouro trouxe muito mais que qualquer outro desejara, não só restaurara a árvore símbolo de segurança da colina, como as terras que haviam sido envenenadas, mas trouxera de volta à vida alguém quem nenhum campista, herói, deus ou semideus poderia adivinhar.

A filha de Athena estava pelo perímetro quando notou algo estranho, havia algo aos pés do Pinheiro. Aproximou-se com cautela e desembainhou sua faca de bronze celestial que brilhou friamente a luz da lua, à medida que seus passos cautelosos lhe aproximavam da figura, sentia um frio lhe tomar o estômago... Era uma garota. Chamou a plenos pulmões pelos seus companheiros, logo mais dois rapazes chegaram igualmente dispersos com a imagem, Annabeth cortava com a faca algumas raízes que prendiam a garota até que fora o suficiente para poderem tirá-la. Não notara as próprias lágrimas enquanto os dedos seguravam o rosto já conhecido e os olhos em tom azul céu abriram-se de encontro com os seus... Thalia Grace, a filha de Zeus estava viva.

-Luke... Annabeth... - sussurrou a morena mesmo ainda desorientada enquanto era amparada pela loira.

Thalia piscou diversas vezes e respirava com certa dificuldade até a forte tontura amenizar um pouco, poderia não ter certeza, mas conhecia aqueles olhos cinzentos, eram os mesmo por quem havia dado a própria vida há alguns anos.

Fim do capítulo