Vinte e Sete
Vinte e Sete
|Não espere que alguém diga que te ama; diga você mesmo;|
Caroline
Avisei por mensagem que estava a caminho e com o vento gélido atingindo meu rosto através da janela aberta do carro, fui apreciando o som e a voz maravilhosa de Camila Cabello em This Love. Era como se eu fosse transportada para um universo diferente do meu, sabe? Um universo mais leve e acolhedor, um lugar no qual eu me encaixava, em que era compreendida, em que era aceita e abraçada, mesmo com todos os meus defeitos. A música tem esse poder de nos acolher, não tem? A música tem o poder de me acalmar. É minha segunda melhor calmaria. A primeira, você sabe bem qual é.
Abri a foto dela no celular e contemplei por longos minutos. “Meu grande amor...” — pensei, com um risinho estampado em meu rosto cansado. “Será que um dia te farei realmente feliz?”, essa era mesmo a minha maior preocupação nos últimos tempos. Ela era uma pessoa tão incrível, tão linda por fora e por dentro, tão doce... que merecia toda a felicidade do mundo. E eu queria muito poder proporcionar parte das coisas boas que ela merecia. Eu não suportava a ideia de ser um problema em sua vida, um estorvo. E por isso estava lutando, para ser também a sua calmaria. Eu sei que todos tem seus próprios motivos para lutar, mas eu... Bem, eu acho que o meu maior motivo era ela.
Olhei para fora, com o dia amanhecendo, o sol surgindo tímido por trás dos grandes morros de Canopus, a cidade onde nasci e vivi todas as dores e alegrias da minha vida; meu lugarzinho no mundo, o cenário das minhas melhores lembranças.
Lembro-me bem de quando era pequena, com cinco ou seis anos de idade, com meu cabelinho curtinho, franja e casaquinhos de algodão e botões, quando meu querido pai me levava para passear junto com o Ted, nosso Pinscher... Ele sempre dizia que os morros de Canopus era como uma obra de arte, um quadro pintado à mão pelo mais ilustre dos artistas. Ele me fazia ver a arte em tudo que me mostrava. Meu pai era um grande homem, tinha alma de artista, apesar de sempre ter sido professor de filosofia.
Eu estava cansada, o sono chegava para me fazer companhia. Divaguei enquanto o veículo rodava pelas ruas quase vazias, mas quando notei o rumo que meus pensamentos haviam tomado, dispersei-os: “Mais um dia amanhecendo; mais uma chance de fazer as coisas darem certo.” — pensei por último, só para não ficar mais pensando em meu pai.
Cheguei e Nicolle destrancou a porta para mim com uma expressão emburrada, os olhos vermelhos de sono, e denunciando que ela havia chorado. A peguei pela cintura assim que entrei e a envolvi num abraço terno e intenso. Fiquei acariciando suas costas e seus cabelos soltos em silêncio, inalando seu cheiro que era sempre tão delicioso e irresistível. Ela não disse nada e nem fez nada, ficou ereta enquanto eu a afagava.
— Desculpa... Ele me tira do sério, amor. Desculpa mesmo.
— Ok — soltou, com a voz embargada. Desvencilhou-se de mim e respirou profundamente. — Vamos dormir, conversamos mais tarde. Estou exausta.
— Vamos.
Após tomar um banho rápido, deitei ao seu lado na cama e a abracei por trás, encaixando meu corpo ao seu. Ficamos de conchinha; ela já dormia, estava exausta em vários sentidos. E eu também estava. Temia que em algum momento a nossa relação desgastasse por conta das minhas atitudes ou falta delas. Ou por causa de alguém muito mal intencionado, feito o Bruno. Temia muito.
Logo me desvencilhei desses pensamentos e beijei seu ombro quase desnudo; portando apenas uma alça fina de sua camisola de algodão. Adormeci poucos minutos depois, sentindo o cheiro delicioso de seus cabelos.
Levantei as nove da manhã, dormi umas quatro horas ou menos. Nicolle já estava fora da cama, então levantei. A encontrei no banheiro, tomando alguma coisa, com um copo de porcelana nas mãos.
— Está com dor de cabeça?
— Não, ansiedade querendo atacar. Estou preocupada com algumas questões, acordei sentindo tremores.
— Porr*! Como assim? Nunca acontece contigo...
Engoliu o comprimido com a ajuda da água mineral da garrafinha. A observei enquanto algumas coisas passavam pela minha cabeça. Fiquei divagando enquanto ela agia, sem me olhar diretamente.
— Que foi, Caroline, está sentindo algo? — perguntou, ao me ver com o olhar distante.
— Pensando, só.
— Em quê?
— Que estou te fazendo muito mal e lhe trazendo diversos problemas. Você nunca precisou tomar esses remédios.
— Sempre tomei para dormir.
— Sim, mas antes de dormir, não assim, do nada. Nunca sentiu tremores sem ter algum motivo muito forte para isso. Então... Acho que está começando a desenvolver ansiedade e acho que a culpa é minha. Percebe o tanto de merd* que anda acontecendo na sua vida? Tudo depois que entrei nela. Então...
— Dá para parar?
— Não, Nicolle! Estou preocupada. Pareço que caí num calabouço e estou te levando junto. Isso me dói. Não quero ver você caindo. Quando começamos, eu prometi que te faria voar de tão feliz e... agora — comecei a chorar involuntariamente —, não consigo nem te levar ao mar.
Ela revirou os olhos e colocou um dos braços no batente da porta, aproximando-se de mim, deixando seu rosto bem perto do meu, fazendo-me sentir sua respiração quente. Me olhou nos olhos e falou firme:
— Estamos numa fase ruim, ok? E estamos nessa juntas, porque já decidi ficar ao seu lado. Não consigo ficar longe de você e nem você de mim, não é mesmo?
— Sim.
— Então, estamos juntas nessa. Mas vou te pedir uma coisa muito importante, Caroline. Porque não quero perder a paciência e nem a esperança em nós.
— Qual é?
— Pensa antes de agir, tenta ser menos impulsiva e achar que todos estão contra você. Para de implicar com o Bruno. Ele é meu amigo. APENAS meu amigo. Já era antes de eu te conhecer. Ignora ele. Ontem ele ficou bêbado demais, perdeu os sentidos; isso não é típico dele. Durante o dia, quando conversamos, ele prometeu que não tentaria mais nada, que sempre seríamos só amigos.
— Bom, tudo bem... Acontece de darmos alguns deslizes mesmo. Espero que ele entenda de uma vez por todas que você jamais será dele.
— Ontem quando o coloquei na cama, junto com o porteiro, que me ajudou a controlá-lo, ele disse: “Se você a ama, espero que sejam felizes”. Disse isso e apagou. Bêbado. Entende?
— Hum... — Comprimi os lábios enquanto refletia. Aproximei-me e a abracei, afundando meu rosto em seu pescoço quente — Nós seremos felizes.
— Seremos. — Beijou meu rosto antes de continuar. — Tenho que entrevistar uma senhora que se candidatou para me ajudar com a casa.
— Sério? Finalmente a senhorita cedeu aos meus apelos.
— Sim. Diante dos últimos acontecimentos, acho que preciso de ajuda em casa. Com a perna ainda meio fraca, não consigo lavar o banheiro, varrer toda a casa, cuidar do jardim etc.
— Eu te ajudo. Mas você precisa de alguém para ajudar mesmo, para quando eu não estiver. E precisa de companhia aqui. Acho que a casa ficará mais divertida, mais iluminada.
— Também acho. Quantos anos ela tem?
— No currículo diz que tem 52. Espero que seja uma senhora legal. Bom, hoje ela vem só para fazer a entrevista. A pia tem louça, pode me ajudar a limpar? Não quero recebê-la com a casa suja, ela vai achar que somos umas porcas. E não somos.
— Não somos. Vamos limpar, amor. Eu vou varrer toda a casa, passar um pano com desinfetante. Pano nos móveis.
— Lavo a louça.
— Trato feito!
— Feito!
“Eu definitivamente tenho a melhor mulher do mundo ao meu lado!” — divaguei, sorridente. Ela raramente perdia a paciência com as minhas burradas; era sempre gentil e generosa comigo e com todos.
— Meu anjo — falei, enquanto ela se afastava.
— Sou mesmo — respondeu, sem me olhar. — Anda logo aí, tá?
Eu fiquei no banheiro para escovar os dentes e os cabelos. Depois fui ajudá-la com a cozinha e com o resto da casa.
†
Enquanto eu ajeitava a sala, varria e passava pano em alguns móveis, ela levou o lixo da cozinha para fora.
— Amor, deixa que eu levo — falei.
— Não. Eu levo. Quero falar bom dia para as minhas plantinhas.
— Tá bom. Dê um cheiro nelas por mim.
— Nas flores?
— Sim. Nas plantinhas.
— Tá bom. Pode deixar, dou — respondeu, sorridente, absolutamente linda, como sempre era. Mas era ainda mais quando sorria alegre daquele jeito.
Ao som de Gaga; Stupid Love, eu aspirava o sofá. Fiquei perdida um pouco na vibe boa da música, até que percebi que ela estava demorando lá fora. Ela poderia estar apenas conversando com suas plantas, mas senti algo estranho e fiquei preocupada. Desliguei o aspirador de pó e fui até a porta, que estava com a parte de vidro fechada, para ver o que minha mulher fazia. “Deve estar mexendo no jardim, Caroline, calma”, pensei.
Mas quando cheguei à porta, a vi se debatendo nos braços de um grandalhão encapuzado, que a ergueu e a colocou dentro do carro preto. Corri o mais rápido que pude, tropecei na grama e caí, mas levantei imediatamente, continuei correndo... Só que foi em vão; o carro saiu em disparada, deixando só um dos pares de chinelo dela para trás.
Ainda corri o mais rápido que pude pela rua quase deserta para tentar, em vão, alcançar o carro o suficiente para enxergar sua placa. Mas não vi nada... NADA. Ele virou na rua à direita e sumiu levando consigo a minha mulher. A minha Nicolle.
Comecei a tremer, mas de puro nervoso, um pânico misturado com raiva, revolta, medo. Voltei para casa correndo e liguei para a polícia. Antes de a viatura chegar, fiquei chorando compulsivamente, com o peito absolutamente disparado.
— Que porr*aaa! Vou matar quem fez isso. — As lágrimas saíam fervendo, o nariz escorria incessantemente.
Não sabia o que fazer, ficava andando de um lado para o outro, na sala.
“Minha bichinha...” — pensei, chorando, indignada — “Meu Deus, eu joguei o quê na cruz? Me desculpe, cara... Me desculpe, sério. Me puna, mas deixe-a fora disso. Ela não merece sofrer, ela é um dos seus melhores anjos.”
Em um impulso, liguei para Bruno. Ele atendeu depois de alguns toques.
— Cara, se você tiver alguma coisa a ver com isso, eu mato você. E NÃO ESTOU BRINCANDO, SEU CANALHA!
— Você está noiada, garota? Ter a ver com o quê, ela terminou com você, foi isso?
— Antes fosse. Ela foi levada... — não conseguia falar, a voz estava falha, conturbada com o choro, a garganta fechada, dolorida. O desespero me tomava.
— Quê, levada para onde?
— Ela, ela... Foi levada num carro preto.
— Meu Deus! — falou e ficou mudo por alguns instantes.
— Bruno, se eu souber que você está metido nisso, pode dar adeus a sua vida, seu filho da puta!
— Cala a boca, sua surtada, eu não tenho nada a ver com isso, não. Já ligou para a polícia?
— Já. Estão a caminho.
— Estou indo aí. Está na casa dela?
— Sim.
— Ok.
A mulher chegou para a entrevista e eu a dispensei. Estava chorando e contei mais ou menos o que havia acontecido. Ela me amparou, entrou e me serviu uma água. Eu bebi dois goles e deixei o resto, estava a ponto de vomitar. As viaturas chegaram logo depois da senhora morena de cabelos crespos e curtos. Duas viaturas, que pararam de frente para a casa, e os agentes entraram.
— Carro preto, parecia um Honda Civic, moderno, novo. Não vi a aplaca, não consegui enxergar, eles saíram muito rápido. Parecia ter dois homens grandes no carro, um dirigindo e o que a pegou nos braços.
— Vamos encontrá-los. Vamos trazer sua mulher sã e salva, fica tranquila, Caroline.
— O que eles querem com a gente, será que tem a ver com o atentado homofóbico que sofremos, será que querem mesmo nos...
— Se tiver relação, logo vamos saber. Mas a prioridade agora é trazê-la de volta. E vamos trazê-la.
— Por favor, não demorem muito...
— Já avisamos a central e todas as viaturas da cidade estão de olho no perfil do carro descrito.
Bruno chegou dez minutos depois dos policiais, com cara de assustado, suado. Identificou-se com os agentes e veio para perto de mim. Eu estava sentada no sofá com os cotovelos apoiados nas pernas, ainda chorosa. Ele ajoelhou-se no tapete e ficou ao meu lado.
— Você viu quem a pegou?
— Um cara encapuzado. Estava todo de preto, não deu para identificar nada.
— Não importa, seja quem for, vamos encontrar os culpados e vamos trazê-la de volta.
— Cara, se quer me ver longe dela, era só ter me sequestrado. Ela não, ela não merece essas coisas.
— Ela te ama, sua idiota, eu jamais mandaria te sequestrar. E eu a amo, jamais faria qualquer mal a ela. Ela é minha amiga...
— Acho bom. — falei e limpei o nariz que escorria, com o dorso da mão direita.
†
Passaram-se vinte e quatro horas e nada de Nicolle aparecer. Eu estava desesperada. Os sequestradores entraram em contato pelo telefone de Bruno e pediu um valor de meio milhão para o resgate. Ele ficou em choque, pois não tinha o dinheiro nem em bens.
— Olha, eu não sei você, mas não vou ficar aqui parada enquanto minha mulher pode estar correndo risco de vida. Se eles deixarem qualquer arranhão nela, eu os mato e te dou uma surra.
— Não temos o que fazer, os policiais estão agindo. Eu não tenho a grana, mas estou pensando em como conseguir. Os pais dela estão vindo e vamos ver se juntos conseguimos levantar o valor — respondeu desanimado.
— Eu vou agir, Bruno. Vou atrás dela, não vou ficar aqui esperando.
— Caroline, deixa de ser louca! Vai onde, como? Precisamos agir com cautela para não piorarmos as coisas.
— Vou à casa daquele velho assediador de mulheres, o Inácio Carneiro.
— Quê? Como?
— Em seu carro.
— Caroline, você... não...
— Ele tem a grana e eu vou conseguir.
Ficou me olhando com os olhos esbugalhados, incrédulo, enquanto eu pegava a chave de seu carro na mesinha de centro e saía, determinada.
Fim do capítulo
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