Vinte e Seis
|Olhe mais para os acertos;|
Caroline
— Caroline, acho que você pegou pesado com sua mulher. Custava esperar o uber chegar e ajudar a colocar o traste no carro?
— Custava. O Bruno tem irmã na cidade, cara. Por que ela nem cogitou em ligar para algum parente? Aquele porr* vive em cima dela, Sabine. Já se declarou e tudo — Quase falei do beijo, mas nem quis ficar relembrando esse fato infeliz. —, e ela age dessa forma?
— Ela dá ousadia para as investidas dele?
— Não.
— Pois então não tinha porquê você ter agido assim. Ela só foi solícita, estava ajudando um amigo alcoolizado. Eu, por exemplo, já até enfiei o dedo na garganta de uma amiga bêbada. Portanto, acho que você foi insensível. Nicolle é um amor!
— Aff... Eu fiquei puta e nem pensei muito. Mas depois que sair daqui, converso com ela.
— Converse. Mas antes pondere. Tente ver o lado dela.
— Ok.
— Agora vá lá trocar o figurino, daqui a pouco você entra.
Entrei no palco com a imagem do rosto desapontado dela na cabeça, martelando. No momento da dança só pensei na coreografia, mas ainda a via sentada ali, onde ainda deveria estar, me observando dançar. E era apenas ela no ambiente, não havia mais ninguém além da minha mulher me assistindo.
Culpava-me por ela ter saído desapontada, mas também estava aflita por Bruno ter estragado a nossa noite.
“Ele sempre se mete em nosso caminho e estraga o momento que deveria ser perfeito” — pensei enquanto meu corpo se mexia ao som de This Love, da Camila Cabello.
Fiz tudo rápido e saí do palco sem dar atenção aos gritos e aplausos. Aquilo me irritava cada vez mais. Enquanto alguns imbecis gritavam meu nome, ouvi um deles gritando alto:
— Caroline, gostosa!
Ainda não tinha atravessado as cortinas do pequeno palco, então virei-me para a plateia novamente e fiz o que nunca pensei que fosse fazer ali: mostrei o dedo do meio para o imbecil que me chamou de gostosa e em seguida saí como se nada tivesse acontecido, de cabeça erguida.
— Caroline, amore, o que foi isso? — questionou Sabine, que estava para entrar em cena.
— Cansada desses fodidos me assediando, cara.
— Mas você é paga pra dançar para eles. Sabe que as reações são essas.
— Não é porque danço aqui, que sensualizo, que eles podem me tratar como se eu fosse um objeto sexual. Sou dançarina, mereço respeito.
— Sim, meu bem. Não pense que estou passando pano, mas infelizmente nossa sociedade ainda é muito atrasada, machista, mal educada... Temos muito a evoluir e enquanto não evoluímos temos que engolir certas coisas.
— Engolir assédio, homem machista? Você que engula sozinha. Eu não vou passar por essas coisas e ficar calada, não.
— Vai acabar perdendo o emprego. E você precisa dele...
A encarei, quieta. Ela me olhou com uma espécie de compaixão e sorriu da mesma forma. Sabine tinha razão, eu precisava do emprego e precisava me controlar ou o perderia. Não poderia ser tão impulsiva, não poderia ser tão revoltada como estava sendo. Mas acontece que eu estava tão de saco cheio das injustiças, do machismo, da minha situação toda, que acabava nem pensando em como agir, apenas explodia.
A imagem da minha mãe me veio à mente e de repente eu senti uma saudade imensa dela, de seu abraço e até de seus gritos. Eu havia puxado a ela, minha mãe era como eu, explosiva, nunca abaixava a cabeça quando via que algo estava errado. Eu tinha poucas lembranças dela, mas disso eu me lembrava bem. Meu pai era mais calmo, para ele, a vida era um mar a ser contemplado.
— Mas eu te entendo, Caroline. A carga que anda carregando é bem pesada, não é mesmo?
— Sim — respondi, apenas. Estava aborrecida e voltei a pensar em Nicolle, o motivo maior por eu estar sendo forte e lutando para continuar no emprego. Era ela.
Sabine pousou a mão afetuosa no meu ombro e disse:
— Vá lá fora tomar um ar fresco. Vou trabalhar. Depois a gente conversa direito, tudo bem?
— Ok.
— Quero que me ajude com uma coisa. É sobre a Melina.
— Aff, ainda pretende insistir nessa fodida? — falei, um tanto rude, pela raiva acumulada.
— Sim. Eu acho que estou apaixonada e... Bem, depois a gente conversa. Daqui a pouco.
— Tá, beleza.
Saí para tentar falar com Nicolle. Fui até o estacionamento. Liguei e ela me atendeu após o segundo toque.
— Oi, falo contigo depois. Acabei de chegar ao prédio do Bruno. Vou tentar levá-lo até o apartamento. Estou sozinha, né? E ele é bem pesado, está caindo de bêbado. Se eu tiver sorte, o porteiro ou alguém do prédio me ajuda — despejou, notoriamente irritada.
— Desculpa, tá? Espero que alguém a ajude com o embuste.
— Dá para parar de falar assim, Caroline?
— Enfim, saindo daqui eu vou direto para sua casa. A gente conversa lá.
— Uhum, tá bom. Tchau.
— Tchau. Te amo.
— Uhum... — disse e desligou.
“Porr*, Caroline! Não vacila mais com ela, não, cara” — pensei, já sentindo alguns tremores querendo se apossar de mim. Percebi que uma crise estava vindo, mas encostei minhas costas na parede gélida e fechei meus olhos. Nicolle apareceu para me acalmar. Meu coração começou a acelerar e eu fechei os punhos. Minha respiração, por mais que eu tentasse acalmá-la, começou a descompassar. Mas Nicolle tocou meu rosto, ficou acariciando. Depois segurou meus pulsos com firmeza e começou a sussurrar que estava tudo bem.
— Ei, Caroline, está tudo bem. Se acalma... — disse uma voz diferente da voz da minha mulher. — Ei... — Tocou meu rosto levemente. — Tá tudo bem, menina. Pode abrir os olhos.
Abri os olhos lentamente e me deparei com o velho Inácio.
— TIRA AS MÃOS DE MIM! — gritei.
— O que, está louca? Estou te ajudando, você estava tendo... — Minha respiração estava cada vez mais descompassada. — Menina, você está tendo uma cris...
— Tire suas mãos de mim — disse entredentes e dei um soco no braço que estava estendido enquanto ainda tocava meu rosto.
Saí dali com dificuldade, mas saí. O deixei onde estava e segui para a entrada do bar. Mas antes de entrar, o ouvi dizer:
— O que foi que eu te fiz?
— Assediou uma mulher na minha frente — falei. Mas não sei se alto o suficiente para ele ouvir.
Passei pela portaria e entrei. Ignorei todos que atravessavam meu caminho e assim cheguei ao camarim. Sabine entrou logo atrás de mim, suada, ofegante.
— Caralh*, essa dança foi das boas!
A ignorei, fui direto me sentar e pegar uma garrafa de água que estava na penteadeira. Ela me encarou e entendeu, então logo se aproximou de mim e segurou minhas mãos.
— Que carinha de quem viu um espírito é essa?
Minha respiração ainda não estava das melhores.
— Falei com Nicolle por telefone e depois começou a me dar crise.
— Vocês discutiram?
— Não. Ela só está chateada. Mas não discutimos.
— Então... Por que ficou assim?
— Nunca sei exatamente porque eu fico assim. Preocupação, medo, aflição... Ansiedade.
— Merda! Toma água, vai. Melhora se tomar água?
— Às vezes, sim. Mas é mais psicológico. Eu preciso me acalmar, pensar em coisas boas.
— Se eu te der um abraço acalma?
— Acho que sim.
Então ela aproximou-se rapidamente, abraçou-me suavemente e beijou minha cabeça.
— Acalme-se garota, você ainda tem uma apresentação hoje, não tem?
— Aff...
— É a última da noite. Depois você corre para os braços da sua psicóloga.
— Minha sessão de terapia é só na sexta.
— Você entendeu... Você corre para os braços da sua loira, sua mulher, sua Nicolle. O amor da sua vida, sua alma gêmea.
— Minha calmaria.
— Isso!
Aos poucos fui me acalmando, mas enquanto conversávamos, Melina entrou e parou diante de nós com cara de quem comeu coxinha estragada. E havia pagado caro por ela.
— Rebuceteio agora? Você não perde uma, hem, Sabine?
— Tá com ciúmes, amore? — a cínica riu debochadamente antes de responder minha amiga:
— De você? Nunca, meu bem. Você é mais rodada que baiana em carnaval.
— Ciúmes da Caroline? Ainda não desistiu, lindinha? Ela é praticamente casada com a loira que te deu uma surra. Deixa de ser ridícula...
— Vá se ferrar, Sabine! — falou e nos deu as costas. Começou a caminhar para o outro lado do cômodo.
A ruiva ainda me abraçava, mas não tirava os olhos de sua amada, que estava evidentemente incomodada com nossa aproximação. Vimos quando desfez o rabo de cavalo com muita brutalidade e jogou as presilhas com força na bolsa. Sabine falou:
— Posso ser bem rodada, meu benzinho, mas já falei que paro de ficar com todo mundo se você aceitar ficar só comigo.
— Vá se ferrar, Sabine! Já falei que não rola. Não sinto nada por você. Nunca vou sentir, então sai do meu pé.
— Da uma chance pra ela, Melina. Além de ser uma linda, é uma mulher independente e está disposta a ser só sua. Prato cheio, mão pra toda obra — falei, tentando incentivar o romance entre as duas.
— Toda obra mesmo — brincou a ruiva, soltando alguns risinhos.
— Olha, não comecem, ok?! Me deixem em paz.
Sabine foi até ela e a enlaçou carinhosamente pela cintura, por trás. Mel não se desvencilhou de imediato. Rolou um olhar demorado entre elas e eu fiquei assistindo. Mais uma vez notei que aquele romance tinha mesmo a possibilidade de acontecer, por mais impossível que na maioria das vezes parecesse.
— Me dá uma chance, amorzinho?
Parecia que ia rolar algo, mas fomos impedidas de saber, pois Bob entrou no camarim e estragou o momento.
— Meus amores, Caroline fecha a noite hoje, né?
— Porr*, Bob! — ralhei.
— Que foi?
— Acabou com o momento das duas.
— Quê? Ia rolar algo, como assim? Tem chance isso aí e ninguém me fala nada?
— Puta que pariu, não tem chance porr* nenhuma! Vocês estão delirando? Eu e Sabine não vai rolar nunca, tá?! NUNCA!
— Olha que quem desdenha quer comer, hem? — completou meu chefe.
— Uma hora ela cede aos meus encantos, querido.
— Sonha — falou Mel.
— Sonho todas as noites... — falou Sabine e tocou o rosto de sua amada com carinho — Mas enquanto for só sonho, eu beijo outras bocas, porque sou sonhadora, mas não sou trouxa. Quando você resolver me dar bola, eu beijo apenas a sua.
— Você que lute.
— Se eu fosse você cedia, boba. Com Caroline você não tem a mínima chance, ela e Nicolle são almas gêmeas e ninguém separa.
— Uhum... — falou e riu sarcasticamente enquanto pegava algo na bolsa. — Talvez alguém separe — sussurrou, mas audível o suficiente para ouvirmos.
Levantei-me e dei alguns passos em sua direção.
— O que foi que disse? Por acaso...
— Caroline! — Bob agarrou meu antebraço — Palco te esperando... Bora! Agora!
— Essa...
— Já falei que não quero mais treta aqui dentro. Vamos, para o palco!
Nem troquei o figurino que tinha que trocar, saí do jeito que estava mesmo e fui encarar a minha última apresentação da noite. Graças a Deus era a última! Eu estava mesmo de saco bem cheio.
— Caroline!
— Meu Deus! — exclamei espontaneamente ao levar um susto com a pessoa à minha frente.
— Eu te vi dançando e... vim te dar os parabéns pelo trabalho de dar inveja.
Comecei a ruborizar com a imagem patética da minha ex-colega de faculdade. A garota que mais se achava na classe e que vivia implicando comigo, que ficava debochando de mim junto com seu grupinho de idiotas. A patricinha de Canopus, em pessoa, estava ali para debochar de mim mais uma vez.
— Obrigada, Telma.
— Então você largou a faculdade para dançar na noite? Que incrível, que coragem! Sabe que sempre achei mesmo que Letras não era bem a sua cara? Você era bastante dedicada e tudo, mas... Sei lá, sabe, acho que você não tem muito a cara do curso.
— Ah, pois é... Bom, preciso subir no palco. Preciso rebol*r minha raba para essa plateia que amo. Eu tenho uma raba para rebol*r, sabe? Coisa que você não tem.
— Insignificante...
— Tchauzinho, Telminha!
Subi o primeiro degrau e lhe dei as costas, mas antes de desaparecer de seu campo de visão, sua voz soou irritante:
—Vou fazer uma festa para o meu namorado e... Você bem que poderia me dar umas aulinhas de dança, né?
— Claro.
— Ai, que máximo! Sério? — Abriu um sorriso largo.
— Mas é claro... QUE NÃO.
— Nossa, Caroline... — O sorriso se apagou instantaneamente.
— Eu não sou professora. E se fosse, não daria aulas para você. Tchau.
Fim do capítulo
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